RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. (2 Suppl.3)

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Artigos de Revisão

Avaliação da acidose metabólica em cirurgia de grande porte

Metabolic acidosis in major surgery

Jayme Bueno Castilho1; Giuliano Parreira de Oliveira2

1. Anestesiologista do Hospital Lifecenter e do Hospital Municipal Odilon Behrens. Especialista em clínica médica e terapia intensiva. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Anestesiologista do Hospital Lifecenter, Anestesiologista e instrutor do CET/SBA do Hospital das Clínicas da UFMG; TSA/SBA.Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Av. do Contorno, 4747, 19º andar Bairro Serra
Belo Horizonte, MG - Brasil CEP 30110-090
Email: giuparreira@gmail.com

Instituição: Hospital Lifecenter

Resumo

Distúrbios do equilíbrio ácido-básico são alterações comuns em pacientes graves, geralmente associadas à morbimortalidade elevada. A acidose metabólica é importante causa de disfunção miocárdica e, talvez, indicador de má perfusão periférica. A correta identificação desses desequilíbrios é fundamental para a escolha das intervenções mais adequadas

Palavras-chave: Desquilíbrio Ácido-Base; Acidose Lática; Acidose; Cuidados Críticos; Procedimentos Cirúrgicos Operatório; Anestesiologia

 

INTRODUÇÃO

Durante o ato anestésico, com frequência ocorrem mudanças na ventilação e perfusão, além da infusão de soluções com diversos eletrólitos. Como consequência, alterações no balanço ácido-básico são frequentes e, por diversas vezes, esperadas.

Nos indivíduos hígidos, essas alterações, em geral, são de pequena monta e pouca importância. Porém adquirem grande relevância nos pacientes critica e/ou agudamente enfermos, uma vez que seus sistemas orgânicos passam a trabalhar no limite da capacidade. Nesses pacientes, com a piora do funcionamento dos diversos órgãos e sistemas, a acidose, em particular a acidose metabólica (definida como queda da concentração plasmática de bicarbonato [HCO3-] em distinção à acidemia, onde há elevação da concentração plasmática de prótons [H+] e, assim, redução do pH), torna-se figura frequente e assume papel importante no quadro clínico, desencadeando uma série de eventos que podem resultar em óbito. A literatura não é clara se esses distúrbios são apenas marcadores de gravidade ou fatores independentes relacionados ao prognóstico.1

Com o agravamento da acidose e queda do pH plasmático, há depressão da musculatura miocárdica e lisa, com queda da contratilidade miocárdica e da resistência vascular periférica e consequente hipotensão. A acidose é um dos fatores responsáveis pelo desvio da curva de dissociação da hemoglobina para a direita, com redução de sua afinidade pelo O2, liberando mais O2 para os tecidos. Apesar disso, em acidoses graves, com frequência há hipóxia tissular. Nessa situação, há menor responsividade às aminas vasoativas (sejam endógenas ou exógenas). Além disso, há tendência à troca dos íons H+ (predominantemente extracelular) pelo potássio (predominantemente intracelular). Esse mecanismo pode causar hipercalemia potencialmente fatal.2

É necessário que se façam diversas considerações acerca das repercussões da acidose sobre os pacientes anestesiados. Os efeitos depressivos dos vários agentes anestésicos venosos e inalatórios sobre os sistemas nervoso e cardiovascular em geral são potencializados. Os opióides (bases fracas) têm maior fração não-ionizada na presença de acidose. Desse modo, o tônus simpático pode ser rapidamente reduzido por esses agentes na presença de acidose, causando hipotensões de difícil controle. Além disso, como frequentemente há hipercalemia nesses pacientes, deve-se evitar a utilização de bloqueador neuromuscular despolarizante.

 

DEFINIÇÕES

Ácidos geralmente são definidos por Brönsted-Lowry como espécies químicas capazes de doarem prótons (H+) e bases são espécies capazes de receber prótons. Arrhenius definiu ácido como um composto que reagia com água para formar H+ e bases como compostos que reagiam com água para formar íons hidróxido (OH-). Ácidos fortes prontamente (e quase irreversivelmente) doam seus prótons enquanto ácidos fracos, de modo reversível, doam seus íons H+. Já bases fortes ligam-se prontamente aos íons H+, de modo que bases fracas apenas se ligam nesses íons fracamente, de modo reversível. Os compostos fortes podem influenciar fortemente o pH, porém os compostos fracos apenas fracamente o alteram.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE A AVALIAÇÃO TRADICIONAL PELO MÉTODO DE HENDERSON-HASSELBACH

A avaliação do equilíbrio ácido-básico é tradicionalmente realizada com base nos estudos de Henderson- Hasselbalch e modificações de Siggaard-Andersen, com a inclusão da determinação do Intervalo Aniônico (AG, Anion Gap), o excesso de bases (BE, Base Excess) e bicarbonato (HCO3-). Esse método é amplamente utilizado para identificar e quantificar a acidose metabólica, tendo como principal vantagem a facilidade de seu entendimento e aplicabilidade em situações clínicas comuns. Trata-se, porém, de um método que simplifica grosseiramente os distúrbios em pacientes criticamente enfermos.1,3,4

O AG é descrito em mEq/L e utilizado para a medida de ânions não mensurados no plasma. É calculado pela diferença entre os principais cátions e ânions no plasma, por meio da fórmula:

 

 

O AG tem valores normais entre 12 ± 2mEq/L. Valores acima de 16mEq/L sugerem a presença de ânions não mensuráveis no plasma. O AG pode ser alterado pela hipoalbuminemia, elevação de ânions não-mensurados, hipercarbia e hiperlactatemia, situações frequentes em pacientes críticos.5,6,7 A redução de 1g/dL na concentração da albumina reduz o AG em 2,75mEq/L. Nessas situações, a utilização do Anion Gap corrigido (AGC) pela albumina e lactato é vantajosa.4,8-14:

(Albumina normal = 40 g.L-1)

 

 

O BE também é descrito em mEq/L e definido como a quantidade de ácido forte necessária para titular o sangue para o pH 7,40 com PaCO2 de 40mmHg a 37ºC. Tem como valor normal entre -3 e +3 mEq/L. O BE, na prática, "remove" o elemento respiratório do distúrbio ácido-básico e identifica a contribuição metabólica para a interpretação do pH e [H+]. Valores inferiores a -5mEq/L são sugestivos de acidose metabólica. Na presença de hipoalbuminemia, cada decréscimo de 1g/dL na albumina sérica reduz em 3,7mEq/L o excesso de base.10,11 Uma importante limitação do BE é que não é possível definir se a acidose é causada por lactato, cetoácidos ou hipercloremia.

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE A AVALIAÇÃO PELO MÉTODO FÍSICO-QUÍMICO DE STEWART-FENCL-FIGGE

Esse método de avaliação dos distúrbios ácido-básicos foi desenvolvido em 1981 pelo físico canadense Peter Stewart após observar que o método tradicional não oferecia informações sobre o mecanismo da disfunção.12-14 O modelo baseia-se em três princípios:

Lei da Eletroneutralidade;
Lei da Conservação das Massas;
Lei da Ação das Massas.

A Lei da Eletroneutralidade que determina que, numa solução aquosa, a soma dos íons com carga positiva deve ser igual à soma dos íons com carga negativa, foi aplicada no conceito da diferença de íons fortes (Strong Ion Difference, SID). A SID é calculada por meio da fórmula (todos em mEq/L):

 

 

Indivíduos normais tem valores entre 40-42mEq/L. À medida que SID se aproxima de zero, há "acúmulo" de ânions e aumento da acidez. SID também é referido como SID aparente (SIDa), uma vez que ânions não mensurados podem estar presentes.

É necessário também o entendimento do conceito de SID efetivo (SIDe) que leva em consideração a participação de ácidos fracos no equilíbrio elétrico e que, pela lei da Eletroneutralidade, contrabalança a SIDa. Assim, SIDe tem o valor de -40mEq/L e é determinada, principalmente, por moléculas dissociadas de proteínas plasmáticas (aproximadamente 78% albumina) e fosfato (aproximadamente 20%). É calculada pela fórmula:

 

 

(PaCO2 em mmHg, Albumina em g/dL e Fosfato em mg/dL)

Desse modo, é criado o conceito de Gap da diferença dos íons fortes (SIG), que é a diferença entre SIDa e SIDe. Quando SIG for maior que 2, sugere que os ânions não-mensurados ultrapassaram os cátions; quando menor que zero, sugere o contrário.

A Lei da Conservação das Massas diz que a quantidade de uma substância permanece constante exceto se adicionada, removida, gerada ou destruída. Esse fato é importante, pois a concentração total de uma substância incompletamente dissociada é a soma da concentração de suas formas dissociadas e não-dissociadas. Essa lei foi aplicada aos ácidos fracos não-voláteis. A concentração total de ácidos fracos não voláteis (ATOT) não está bem estabelecida e as medidas variam entre 12-24mEq/L.

 


Figura 1 - SIG é a diferença de SIDa e SIDe e representa o AG. (Reproduzido de Kellum JA. Metabolic acidosis in the critically ill: lessons from physical chemistry. Kidney Int 1998; 53: S-81)

 

Na prática, ATOT é calculada pela seguinte fórmula:

 

 

K é comumente relatada como entre 4,76 e 6,47 [12].

Finalmente, a Lei da Ação das Massas define o equilibrio de dissociação do ácido carbônico.

Assim, temos três variáveis independentes (SID, ATOT e PaCO2) que determinam a concentração do H+ e, por conseguinte, o pH. Pelo modelo de Stewart, apenas essas variáveis são importantes e o pH ou HCO3- só será modificado se essas variáveis se alterarem.

 

MECANISMOS COMPENSATÓRIOS

As respostas às mudanças na concentração de íons H+ podem ocorrer de modo imediato (utilizando tampões orgânicos), por meio de compensações respiratórias e de compensações renais lentas (e mais efetivas).

Os principais tampões orgânicos, junto a seus pares conjugados, são: bicarbonato (H2CO3 / HCO3-), o mais importante tampão extracelular; hemoglobina (HbH / Hb-); fosfato (H2PO4- / H2PO42-) e amônia (NH3 / NH4+), importantes tampões urinários; e proteínas intracelulares (PrH / Pr), importantes para o compartimento intracelular. A movimentação de íons entre os meios intracelular e extracelular (H+, Na+ e K+) também contribui com o tamponamento de ácidos.

O tampão bicarbonato é efetivo em correções de alterações metabólicas, porém é pouco efetivo em alterações respiratórias, uma vez que a concentração de CO2 dissolvida no plasma é muito pequena. Além disso, as alterações na concentração do bicarbonato não refletem a gravidade em acidose respiratória.

Já a Hemoglobina (Hb) é o mais importante tampão não carbônico no meio extracelular. Uma vez que o CO2 é transportado ligado à Hb, esta se torna mais importante nas correções de distúrbios respiratórios que metabólicos.

Alterações ventilatórias são importantes na compensação do PaCO2 e são mediadas pela alteração da concentração de H+ no líquor e subsequente ativação de quimiorreceptores centrais. Na acidose metabólica, a redução do pH sanguíneo desencadeia um mecanismo com o objetivo de reduzir a PaCO2. De fato, há redução de 1-1,5mmHg na PaCO2 para cada redução de 1mEq/L na concentração de bicarbonato plasmático. Cabe ressaltar que essa compensação nunca é completa.

Os rins regulam o pH sanguíneo de vários modos. Há aumento da reabsorção de HCO3- nos túbulos proximais (em um processo de troca Na+ / H+, com reabsorção de 80-90% do bicarbonato filtrado) e nos túbulos distais (não dependente da troca com Na+, com reabsorção dos 10-20% restantes). Esse processo resulta em reabsorção de bicarbonato e sódio e eliminação de ácido. Além disso, no processo de excreção do fosfato, há produção de bicarbonato e eliminação de ácido. Ainda, a amônia (NH3) é excretada como NH4+, em processo que resulta na absorção de Na+ e geração de bicarbonato, além da excreção de ácido.

 

CAUSAS DE ACIDOSE METABÓLICA

Como comentado anteriormente, diversos relatos na literatura afirmam que a utilização de metodologia corrigida do AG pela albumina e lactato (AGC) auxilia, na beira do leito, o diagnóstico da correta causa da acidose metabólica, direcionando corretamente o tratamento.

Assim, duas situações ocorrem: acidose metabólica com AG elevado, onde há aumento dos ácidos fortes não voláteis e acidose metabólica com AG normal.

Acidoses Metabólicas com AG normal

Diversas são as causas de acidoses com AG normal. Essas acidoses geralmente estão associadas à hipercloremia, uma vez que o cloreto "substitui" o bicarbonato perdido.

O modelo de Stewart contribuiu de modo importante para a escolha do fluido utilizado nas ressuscitações volêmicas. As soluções comerciais de cristalóides disponíveis são, basicamente, a solução salina (SF 0,9%), Ringer Lactato e solução glicosada (SGI 5%) e os colóides, em sua maioria, são suspensos em solução salina. A utilização não judiciosa das soluções salinas pode causar Acidose Hiperclorêmica. Ao contrário do imaginado comumente, a causa não é diluição do bicarbonato, uma vez que Stewart afirma que o HCO3- é uma variável dependente. O SID da solução salina é zero (a concentração do Na+, cátion forte, é igual a do Cl-, ânion forte). Grandes infusões de SF 0,9% reduzem o SID extracelular e plasmático que se opõe à diluição de ATOT, gerada pela infusão de fluido (que resultaria em alcalose metabólica), ocasionando, então, acidose metabólica. Há evidências de que a acidose hiperlactatêmica resulte em efeitos anti-inflamatórios e a acidose metabólica hiperclorêmica apresente efeitos pró-inflamatórios.15 Essa observação gera o questionamento se a ressuscitação com colóides ricos em cloro poderia resultar em efeitos deletérios. Já as soluções balanceadas (SID maior que o plasmático para contrabalançar a alcalose diluicional de ATOT), como o Ringer Lactato, parecem ser mais vantajosas.

As acidoses tubulares renais (ATR) são causadas por deficiência intrínseca dos rins em eliminar os ácidos corretamente na presença da taxa de filtração glomerular adquada. ATR é classicamente subdividida em quatro tipos.

A ATR tipo I ou Distal é causada por disfunção das células do túbulo coletor (células intercaladas). Ocorre redução da capacidade de acidificação urinária associada a excreção de K+ no lugar do H+, causando hipocalemia. Além disso, devido ao tamponamento ósseo pelo excesso de íons H+, há hipercalciúria e hiperfosfatúria e, na presença de pH urinário alcalino e hipocitratúria (por maior reabsorção tubular do citratro), pode ocorrer precipitação de fosfato de cálcio com desenvolvimento de nefrolitíase. Correção adequada da hipocalemia com citrato de potássio é uma boa opção terapêutica, pois o citrato é convertido em HCO3- no fígado, sendo melhor tolerado que o NaHCO3. O citrato inibe a precipitação do fosfato de cálcio; e o K+, presente na fórmula, trata a hipocalemia.

A ATR tipo II ou Proximal consiste em perda de bicarbonato por defeito em sua reabsorção. Assim, a acidificação proximal torna-se inadequada, em geral associada à poliúria, natriurese e caliurese. Além disso, várias substâncias normalmente absorvidas no túbulo proximal (aminoácidos, glicose, fosfato e ácido úrico) não o serão, constituindo a Síndrome de Fanconi. Nessa situação, há glicosúria mesmo sem hiperglicemia, hipofosfatemia (podendo causar raquitismo) e hipocalemia. Ainda, a lesão tubular proximal pode ser responsável por deficiência de Vitamina D, contribuindo para hipofosfatemia e redução da mineralização dos ossos. Diversas são as causas para a ATR tipo II e ,dentre elas, estão a forma hereditária pura e as associadas às doenças tubulares e intersticiais que podem comprometer o túbulo proximal, como amiloidose, mieloma múltiplo, rejeição de transplante renal e intoxicação por chumbo. No tratamento, é necessária a reposição de base por meio do citrato de potássio, além de vitamina D e fosfato, em casos de síndrome de Fanconi.

A ATR tipo III consiste dos tipos I e II combinados.

A ATR tipo IV ou Hipoaldosteronismo Hiporreninêmico consiste em deficiência de aldosterona, seja por resistência renal a seu efeito, seja por queda na produção do hormônio. Diabéticos com nefropatia inicial e usuários de anti-inflamatórios não hormonais e de inibidores da Enzima Conversora da Angiotensina (IECA) podem apresentar-se com essa síndrome. Com isso, menos Na+ é reabsorvido e menos K+ e H+ são secretados ao túbulo coletor, causando hipercloremia e hipercalemia. Em geral, a acidose costuma ser leve e reverte com o controle da hipercalemia com o uso de diuréticos de alça.

Perdas gastrointestinais de HCO3- devem ser lembradas, como as por diarréia (causa mais comum de acidose metabólica hiperclorêmcia), uso de colestiramina, fístulas entéricas, biliares e pancreáticas ou ureterossigmoidostomia (pode ocorrer absorção de cloreto em troca da secreção de HCO3- na mucosa colônica, além de absorção de NH4+ urinário).

A Nutrição Parenteral Total pode também ser causa de acidose metabólica hiperclorêmica devido ao metabolismo dos aminoácidos utilizados.

Acidoses Metabólicas com AG elevado

Esse grupo é caracterizado pelo acúmulo de ácidos fortes não voláteis. Assim, esses ácidos se dissociam em H+ e seus ânions. O H+ reage com HCO3- produzindo CO2. Os ânions ocupam o lugar do HCO3-, resultando na elevação do AG.

Hiperlactatemia refere-se à concentração elevada do ânion lactato que pode ser formado pela dissociação do ácido lático endógeno ou ser fornecido exógenamente por soluções com lactato. Acidose lática é definida por pH <7,35 com concentração de lactato >5mmol.l-1 e tipicamente resulta da produção endógena de ácido lático.16-27

O lactato endógeno é, quase exclusivamente, um L-isômero; as soluções comerciais com lactato (Ringer Lactato) são misturas racêmicas. Os gasômetros disponíveis em salas de Reanimação, CTI's e Blocos Cirúrgicos em geral utilizam uma reação com lactato oxidase; os gasômetros disponíveis em laboratórios utilizam a lactato desidrogenase. Ambos detectam apenas o isômero levógero. Apesar de recentes relatos na literatura sugerirem que o lactato, pH, bicarbonato e BE venosos obtidos de uma veia central tenham correlação com os obtidos de amostra arterial, os dados ainda são insuficientes e inconclusivos para sugerir tal mudança.28 Além disso, parece não haver correlação entre sangue arterial e venoso periférico, apenas o venoso central.29

Nos pacientes criticamente enfermos, ocorre hipóxia secundária a hipoxemia, hipoperfusão ou incapacidade de utilização do oxigênio. Assim, o lactato é proveniente do metabolismo anaeróbio, entre os quais os músculos e o intestino estão entre os principais suspeitos. Entretanto, a fonte do lactato nesses pacientes não é consistente e pode depender dos processos patológicos e do momento clínico do paciente. As evidências de que o intestino seja fonte de lactato são limitadas e podem ser confundidas pelo uso simultâneo de beta-agonistas.18-21 Evidências sugerem que os músculos são consumidores de lactato durante endotoxemia e os pulmões podem ser fontes de lactato, pelo menos nas situações de Injúria Aguda Pulmonar.22,23

A normalização dos valores do lactato é um indicativo de bom prognóstico em sepse e pode ser utilizado como marcador de gravidade de doença.24,25 Assim, a acidose lática parece ser um marcador sensível mas pouco específico de isquemia celular e mau prognóstico.

Classicamente, divide-se a acidose lática em dois subtipos. A acidose lática tipo A associa-se com isquemia tissular e respiração anaeróbica. A acidose lática tipo B pode ser secundária a um processo patológico subjacente (subtipo B1), a um processo farmacológico (subtipo B2) ou a um distúrbio metabólico (subtipo B3).

Diversos mecanismos podem levar à elevação do lactato. A enzima piruvato desidrogenase, responsável por transformar o piruvato em acetil-CoA, é inibida pela endotoxina. Deficiência de Tiamina, absoluta ou funcional, está associada com redução da função cardíaca e neurológica. Até 20% dos pacientes criticamente enfermos podem ter deficiência de tiamina.26 Diversas drogas beta-agonistas, como adrenalina, salbutamol e dobutamina, podem estimular a glicólise e produzir piruvato que, por sua vez, devido à inibição da piruvato desidrogenase, pode ser convertido em lactato. A metformina é normalmente excretada na urina e, em casos de injúria renal, pode ocorrer acidose lática associada com seu uso, sendo o mecanismo multifatorial e ainda não totalmente compreendido.27 Durante a ressuscitação volêmica agressiva com utilização de SF 0,9% e infusão de adrenalina, a hipercloremia resultante associada com a acidose lática do tipo B pode ser interpretada como má perfusão não corrigida necessitando de mais volume e aminas, em um ciclo vicioso. Na prática, a utilização de noradrenalina torna esse cenário pouco frequente.

Cetoacidose diabética é uma descompensação do Diabetes Mellitus tipo I e é frequente causa de internação, geralmente por tratamento insuficiente, transgressão dietética ou infecções subjacentes. É importante causa de morbimortalidade nesses pacientes, principalmente se tratada tardiamente.

As cetonas são ácidos fortes e circulam como ânions e as mais importantes nesses pacientes são o acetoacetato e o beta-hidroxibutirato, ambos produzidos em mitocôndrias hepáticas. O acetoacetato é predominantemente produzido em condições de oferta de O2 adequada e o beta-hidroxibutirato é produzido em condições anaeróbicas mas apenas o primeiro entra no ciclo dos ácidos tricarboxílicos.

As fitas urinárias utilizadas na detecção de cetonas utilizam como reagente o nitroprussiato e detectam apenas acetoacetato. Em situações de choque com cetoacidose metabólica, onde o beta-hidroxibutirato pode ser produzido em quantidades até três vezes maiores que o acetoacetato, a utilização da urina para diagnóstico pode confundir já que haverá poucas cetonas, mas, paradoxalmente, com a melhora do quadro, ocorrerá aumento das cetonas. A quantificação plasmática de cetonas evita esse erro.

A Insuficiência Renal pode resultar em acidose metabólica com AG elevado, principalmente com filtração glomerular inferior 20mL/min, uma vez que os ácidos produzidos endogenamente não serão eliminados.

 

TRATAMENTO

É notória a capacidade do corpo humano de tolerar a acidose. De um fisiológico pH 7,4 ([H+] = 40nmol/L) até uma acidose grave com pH 6,7 ([H+] = 175nmol/L) há um aumento da concentração de H+ de 4 vezes; uma elevação dessa intensidade com outros íons seria, provavelmente, fatal, especialmente com o K+. Todavia a acidose está indubitavelmente associada com piora hemodinâmica, respiratória, cerebral e metabólica.2

Algumas questões devem ser respondidas ou, pelo menos, pensadas diante de um quadro de acidose metabólica ou acidemia:

1. A [H+] é diretamente deletéria?
2. A associação de ânions ácidos é nociva?
3. Há combinação das duas situações acima?
4. A anormalidade primária (sepse, por exemplo)é o evento nocivo e os distúrbios ácido-básicos são secundários a ela?

A maioria das acidoses é tratada quando a causa primária é rapidamente identificada e adequadamente tratada. E tal abordagem consiste em estabilidade fisiológica e suporte clínico intensivo. Dados da literatura sugerem que essa abordagem, direcionada à causa, como o Early Goal Directed Therapy, geralmente resulta em melhor prognóstico.30-33 Assim, antibióticos devem ser dados em casos de infecções, ressuscitação volêmica com soluções ricas em cloro deve ser evitada, ajustes na ventilação mecânica devem ser realizados em casos de acidose respiratória. Casos de insuficiência renal podem ser tratados com Terapia de Substituição Renal. Importante também é rever as medicações em uso pelos pacientes e realizar ajustes na dose de insulina, se for o caso. Nos casos de insuficiência hepática, tratamentos mais recentes como as tecnologias extracorpóreas permitem a eliminação de toxinas ácidas, a citar: metanol, etanol, etilenoglicol, propilenoglicol, cetonas e aldeídos, salicilatos, mioglobinas, bilirrubinas, metformina, carbamazepina, fenitoína, valproato, teofilina, aminofilina, lidocaína, metotrexate, tolueno, entre vários outras.34

O uso de tampões como o Bicarbonato de Sódio (NaHCO3) é largamente realizado, apesar da falta de consenso sobre indicações e benefícios. O "Espaço do Bicarbonato" é um conceito definido pelo volume de distribuição do HCO3- administrado EV. Teoricamente, corresponde ao espaço do líquido extracelular (25% do peso corpóreo), mas também depende do HCO3- inicial e da duração da acidose. A administração no período peri-operatório corrige a acidose, mas há pouca evidência sobre benefício ou prejuízo ao paciente.33 Infusões desnecessárias de NaHCO3 geralmente não são recomendadas e estão associadas a alcalose de rebote, falência cardíaca, hipernatremia e depleção de cátions extracelulares.

Inicialmente deve ser eliminado o componente respiratório, por meio de ajustes na ventilação mecânica. Se não for suficiente, pode ser iniciada reposição de NaHCO3. O end-point para a reposição de tampões ainda não foi estabelecido, mas parece ser algo entre pH 7,20 e 7,25.

Outros tampões incluem lactato de sódio, Carbicarb (mistura de bicarbonato e carbonato de sódio) e THAM (tris-hidroximetil-aminometano), porém ainda não há evidência da superioridade desses produtos.

Por fim, para guiar a conduta diante de um quadro de acidose metabólica, Morris e Low34 indicam o fluxograma da Figura 2.

 


Figura 2 - Conduta sugerida para diagnóstico e tratamento da acidose metabólica
Fonte: adaptado de Morris CG, Low J. Metabolic acidosis in the critically ill: Part 2. Causes and tratment. Anaesthesia, 2008, 63, pages 396-411.

 

 

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