ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Saúde do Trabalhador, hoje: re-visitando atores sociais
Workers' Health, today: re-visiting social actors
Francisco Antonio de Castro Lacaz1; Ana Paula Lopes dos Santos2
1. Professor Associado II da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento de Medicina Preventiva, coordenador do Setor acadêmico Política, Planejamento e Gestão em Saúde
2. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo
Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo
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Email: franlacaz@hotmail.com
Instituição: Universidade Federal de São Paulo
Resumo
Este artigo visa discutir a realidade atual dos principais atores sociais que contribuíram para a construção do campo de saberes e práticas denominado Saúde do Trabalhador nos anos 1970 e 1980, ou seja: o Movimento sindical de trabalhadores; a Academia e os Serviços de Saúde Pública. Trata-se de analisar seus limites e desafios tendo como pano de fundo a reetruturação produtiva e o neoliberalismo, cujos efeitos foram sentidos, no Brasil, especialmente a partir do início dos anos 1990, de maneira importante e desigual por parte dos três atores referidos. Discute a fragilidade do Movimento sindical diante do desemprego, da precarização do trabalho e dos direitos; o produtivismo que assola a Academia no que tange à produção do conhecimento no campo e a atuação dos Serviços de saúde como parte de uma Política social empreendida por um "Estado Mínimo". Aponta os desafios para a retomada do papel protagônico dos três atores na busca do avanço das formulações de políticas nesse campo. Na produção do conhecimento pela Academia; no papel do movimento dos trabalhadores dando sustentação social a esse processo e no papel dos Serviços de Saúde Pública para uma efetiva Política Nacional de Saúde do Trabalhador na perspectiva do fortalecimento do Sistema Único de Saúde.
Palavras-chave: Trabalhadores; Sindicatos; Academias e Institutos; Serviços de Saúde Pública; Saúde do Trabalhador; Conhecimento; Programação; Políticas Públicas de Saúde; Sistema Único de Saúde.
INTRODUÇÃO
Ao se analisar a construção do campo Saúde do Trabalhador (ST) no Brasil, observa-se que vários autores consideram como seus principais atores sociais o movimento sindical de trabalhadores, setores da Academia e intelectuais da saúde que lutaram pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS).1,2 Não se pode esquecer a importante contribuição, para a constituição do campo, da Medicina Social Latinoamericana3,4, da Reforma Sanitária Italiana, de seu "braço sindical", o Modelo Operário Italiano2 e de órgãos internacionais como a Organização Pan-Americana da Saúde5.
Na trajetória do campo, a partir do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os Departamentos de Medicina Preventiva e Social são protagonistas ao formularem a temática indo ao encontro da ação política de sindicatos dos trabalhadores químicos, petroquímicos, bancários, metalúrgicos, metroviários, marceneiros, os quais buscavam a interlocução com a Academia, para fortalecer seu recém-criado órgão de assessoria técnico-científica, o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat) ,em 1980.2,6 Ademais, a militância dos sanitaristas, no período, possibilitou a implantação das propostas operacionais do campo ST nos Serviços da rede de saúde pública, conhecidas como Programas de Saúde do Trabalhador (PSTs). Frise-se que tal experiência ocorre simultaneamente em vários estados do país e, posteriormente, com a proposta de municipalização da saúde, em diversos municípios como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Campinas, Santo André, Porto Alegre, Juiz de Fora, dentre outros.2
Saliente-se que ,mesmo antes da existência do SUS, os PSTs já adotavam diretrizes e princípios posteriormente consagrados em sua constituição, tais como: a universalidade, a integralidade e o controle social, na medida em que todos trabalhadores, independentemente de serem segurados pela Previdência Social eram atendidos. Articulava-se a assistência aos trabalhadores com a vigilância dos locais de trabalho de forma intersetorial e os sindicatos eram partícipes da gestão dos PSTs.7,8
Por outro lado, a retomada da cena política por parte do movimento sindical desde o final dos anos 1970, com as grandes greves no ABC paulista, depois ampliadas por todo o país, traz também, como bandeira de luta, o questionamento da organização despótica do trabalho9, outro importante ingrediente a "alavancar" a luta pela defesa da saúde no trabalho.
Na mesma direção, atuava o Movimento Sanitário ao coroar sua trajetória realizando a VIII Conferência Nacional de Saúde em março de 1986, marco fundamental da participação da sociedade na formulação da proposta do SUS, com seu desdobramento na Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, em dezembro do mesmo ano. O tema principal da Conferência foi constituido pela discussão e pela busca da consolidação das experiências dos PSTs, expressão da política de Saúde Pública na atuação/intervenção sobre as relações Trabalho e Saúde.10,11
A breve recuperação desse "pano de fundo" é pertinente, na medida em que se pretende elaborar uma análise da atuação desses atores sociais, na perspectiva de situar os limites e desafios que se colocam, na atual conjuntura, para o avanço das conquistas do campo ST na abordagem teórico-metodológica e nas práticas sanitárias em Trabalho e Saúde.
A re-visita dos protagonistas pela analítica de Foucault
A abordagem que norteou o estudo é qualitativa e se baseia na Arqueologia e Genealogia de Foucault.12,13 Assim, considerando-se os discursos elaborados pelos diferentes atores sociais, pode-se afirmar, sem incorrer em erros, que as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, com base na "monumental reestruturação produtiva do capital, desencadeada nos países centrais desde meados dos anos 1970 e no Brasil especialmente a partir dos anos 1990."14 é o grande pano de fundo que definirá a trilha na qual vai caminhar o campo ST ao configurar os limites da ação de seus atores .
A globalização e o neoliberalismo que se instalam em todo o planeta ,a partir dos governos Reagan nos Estados Unidos e Tatcher na Inglaterra no final dos anos 1970 e início dos 198015, balizam o papel do Estado, com desdobramentos graves no movimento sindical, nas políticas públicas de saúde e educação e no papel social da própria Academia.16 Trata-se do Estado "mínimo" para as políticas sociais, transformando em mercadoria suas atribuições. Mas, ao mesmo tempo, o Estado deve ser "máximo e forte" para impor medidas que significam sérias perdas de conquistas sociais dos trabalhadores, frutos de importantes embates com o Capital e expressas no Estado de Bem Estar Social, pactuado durante as décadas de ouro do desenvolvimento capitalista ocidental, no pós- II Guerra Mundial,até os anos 1970.17
Pode parecer artificial e algo conspiratório considerar que a reestruturação produtiva neoliberal seja o determinante dos recuos nas políticas públicas, na ação dos trabalhadores e na própria inserção social da Academia .As considerações a seguir buscarão sustentar tal argumentação.
As práticas discursivas do movimento sindical de trabalhadores e a Saúde no Trabalho
Como se observa, a saúde no trabalho as violências sobre o corpo do trabalhador, o ausentismo, as condições e processos de trabalho, a vigência ou não de políticas sociais são consequências do fato de que no
[...] chão social, que faz aflorar este inventário, originou-se [...] o vasto processo de reestruturação produtiva do capital, desencadeado em escala global, cujo leitmotiv era a recuperação do padrão de acumulação e a hegemonia dos capitais, abalados desde as explosões sociais do final da década de 1960.14
É uma escalada global do Capital para colocar em outro patamar o processo de acumulação visando recuperar perdas relacionadas à ampla atuação do movimento sindical nos anos 1960 que avançava no alcance de direitos sociais e no controle dos processos produtivos fabris.18
Para atingir tal objetivo havia que alterar o ritmo e a profundidade das políticas sociais conquistadas até então e "satanizar" o Estado como perdulário, ineficiente e paternalista, colocando na pauta a competitividade, o produtivismo embutido na reestruturação flexível, transformando todas as relações sociais em mercadorias a serem adquiridas e mediadas pelo mercado 14. Disso resultou, para os trabalhadores, a desregulamentação e a perda de direitos, pela lógica privatizante e anti-social. Como sub-produto de tal lógica, ocorre:
[...] uma precarização, sem precedentes em toda era moderna, da força humana que trabalha, que oscila entre a busca de trabalhos precários e vivência do desemprego. Há perenidade e superfluidade do trabalho porque os capitais não podem se reproduzir sem a extração do sobre-trabalho. [...] podem se reproduzir intensificando o trabalho daqueles que se encontram no mundo produtivo e expulsando um enorme contingente que não tem mais como ser incorporado e absorvido pelo mundo produtivo.14:7
Premido pela perda de direitos, pela precarização do trabalho e pela realidade do desemprego, o movimento sindical de trabalhadores perde força e recua para buscar a garantia do emprego, o que fragiliza sua capacidade de organizar lutas e embates para além dessa perspectiva. Disso resulta um enfraquecimento da luta coletiva pela saúde no trabalho. Volta-se para as ações individuais cujo exemplo mais candente é o discurso do assédio moral.19 Trata-se da judicialização do conflito social, levando,para as raias dos tribunais ,embates outrora enfrentados pela luta política e pela organização coletiva dos trabalhadores, inclusive por meio de greves e outras ações coletivas sindicais.20
Diante desta realidade, alguns desafios se apresentam no que se refere à produção de conhecimentos, papel central da Academia na sua contribuição para a formulação do campo ST.
A produção científica em Saúde do Trabalhador no Brasil: o novo discurso acadêmico
A constituição do campo de práticas e saberes ST data dos anos 1970, quando se consolida, na América Latina, o processo de industrialização, urbanização e conformação da classe operária industrial urbana como ator social, em paises como Brasil, Chile, Argentina, México.2, 21
Tal situação social esclareceu aspectos epistemológicos do campo, demonstrando o papel que tiveram em sua constituição a Medicina Social Latino-Americana (MSL), a Saúde Coletiva e a Saúde Pública, em suas vertentes sócio-sanitária e programática.2
Ademais, tornaram-se explícitos os limites epistemológicos da Saúde Ocupacional (SO) e da Medicina do Trabalho (MT) na abordagem das formas de adoecimento pelo trabalho que cada vez mais envolvem aspectos do processo de trabalho acoplados à valorização do Capital.22 Um desses aspectos é a organização do trabalho, que envolve as formas de controle, as hierarquias, os rítmos, as exigências etc., somente apreendidos pelo campo ST. Ficava claro, então, que a abordagem da SO restringia-se aos elementos ambientais do meio de trabalho, a fatores de risco de natureza química, física, biológica, mecânica, considerados isoladamente e externos à ação do homem, numa visão a-histórica e redutora da realidade do trabalho10. É relevante balizar tais diferenças, para que não se considere mera questão semântica a diferenciação entre ST e SO.3
Dado que continuam convivendo essas diferentes abordagens, ainda sob hegemonia da SO, é mister definir, com todo rigor, do que se fala, quando se trata das variadas formas de apreender as relações entre Trabalho-Saúde/Doença.2-4,10 Os dias que correm exigem maior rigor científico quando se trata das categorias que buscam desvendar o mundo do trabalho na contemporaneidade, cujas transformações impressas pela globalização neoliberal e reestruturação produtiva exigem avanços no conhecimento de caráter inter (trans) disciplinar para uma melhor compreensão e uma melhor intervenção sobre as relações entre Trabalho contemporâneo e Saúde/Doença.11
Em meados dos anos 1990, empreendeu-se um extenso estudo tendo como objeto as formações discursivas do campo ST enunciadas pela Academia, pelo Movimento Sindical e pelos Serviços Públicos de Saúde.2 Aqui interessa explorar mais de perto como foi analisada, nesse estudo, a produção de 63 teses e dissertações elaboradas num período de cerca de 30 anos, em São Paulo, a partir de 1967. Tratava-se de investigar como as temáticas e as metodologias adotadas evoluíram, buscando apreender de que forma os autores "filiados" ao campo ST influenciavam essa produção em direção a uma abordagem consubstanciada nos pressupostos teórico-metodológicos do campo.
Considerando a constituição teórico-conceitual da ST assinalada acima, percebeu-se que a influência de suas formulações amadureceu gradativamente, ficando claro que foi somente a partir de meados dos anos 1980 que as dissertações e teses passaram a incorporá-las.
Tais considerações são pertinentes para se empreender o diálogo com artigo publicado no final de 2006 que aborda a pesquisa na Pós-Graduação em ST no Brasil.23 Para a autora, as mais de mil dissertações e teses levantadas entre 1970 e 2004, seja a partir de banco desenvolvido 24, que cobre o período de 1950 a 2002, seja pela consulta à base Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e ao portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), para o período de 2000 a 2004, foram todas enquadradas como "pertencentes" ao campo ST.
A falta de rigor na classificação das dissertações e teses quanto ao pertencimento à MT, SO e ST expressa certa "frouxidão" epistemológica, que não permite avançar no conhecimento dessa produção científica que, além de mostrar o avanço "impulsionad[o] pelo desenvolvimento dos programas de pós-graduação"23:107 em Saúde Coletiva, expressou, especialmente, do início dos anos 1980 ao início de 1990, o contexto social em que despontou a importância do movimento pela ST no país.2
Além da produção de conhecimento, é necessário assinalar a atuação da Academia na assistência, em Ambulatórios de Doenças do Trabalho, cenários de práticas para estudantes e de referência para a rede de Serviços de atenção à saúde dos trabalhadores, como ocorre na Universidade Federal de Minas Gerais, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na Universidade de São Paulo.2
Cabe uma observação relativa à situação das pesquisas sobre Trabalho-Saúde/Doença, ao se analisar os últimos anos da produção acadêmica no país. Aqui, é mister concordar-se com a crítica à construção do conhecimento em ST na atualidade11 pela ausência da interdisciplinaridade, característica marcante nos estudos iniciais do campo. Afirmam os autores que agora está ocorrendo um "reducionismo" epistemológico com
[...] o predomínio da construção de conhecimento fragmentado [...], unidisciplinar, quando não repetitivo e tecnicista, resultante de pesquisas e [...] pontuais desenvolvidas com abordagens próprias de cada disciplina: ou só da epidemiologia, ou só das ciências sociais e humanas, ou só da toxicologia, ou só da engenharia, dentre outras.11:802
Se o objetivo é dar uma contribuição para o conhecimento da produção acadêmica brasileira em ST, não se pode abster de apontar suas lacunas e falhas .Isso é importante particularmente num momento em que as mudanças e transformações do mundo do trabalho e a fragilidade da representação dos trabalhadores14 exigem a articulação de um movimento solidário entre acadêmicos, trabalhadores e gestores de saúde. Mostra-se fundamental o resgate das formulações originais do campo ST, com uma visão crítica, na perspectiva da humanização do trabalho e de sua transformação numa atividade emancipadora.
Nesse sentido, um dos desafios atuais mais importantes colocados aos estudos em ST é como utilizar a categoria processo de trabalho, principal marco referencial do campo2,4 aplicando-o aos estudos do trabalho no setor terciário ou de serviços. Aqui, há importantes contribuições de uma certa sociologia do trabalho que aponta para elementos conceituais que poderão desamarrar os nós que atam estudos nessa área. Trata-se de conceitos que permitem avançar no conhecimento das especificidades dos processos de trabalho no setor de prestação de serviços em sua relação com a saúde dos trabalhadores que aí laboram.
Ao se debruçar sobre o conceito de serviço25, a noção de simultaneidade pode ser uma ferramenta potente ao se abordar o trabalho em estudos empíricos, em sua relação com a saúde. Isso porque o consumo do serviço ocorre ao mesmo tempo em que é produzido, colocando o trabalhador em contato direto com o consumidor, em co-presença, o que pode exercer pressão no tempo da produção dos serviços, como se observa na fila dos caixas de bancos ou dos serviços de saúde. Daí deriva outro conceito relevante, o de co-produção26 já que, na produção flexível, o que importa não é mais a produção em escala, característica do fordismo/taylorismo, mas sim a produção acoplada às demandas da clientela. Situação essa que, no caso dos serviços, depende basicamente da postura do cliente/consumidor. Frise-se que a co-produção tem como "sub-produto" o auto-serviço em que o consumidor age no processo de trabalho, trazendo como consequência a queda do número de postos de trabalho. Além disso, no trabalho em serviços ,interfere sobremaneira a emoção envolvida e sua "administração", o que traz efeitos para a saúde mental no trabalho.
Enfim, são esses aportes que farão avançar o conhecimento em ST e a idéia de inter(trans)disciplinaridade, que deve pautar os estudos, mesmo sabendo que deverão consumir maior tempo de maturação, execução e publicação. Para se obter tal avanço, é essa forma de abordar as relações Trabalho-Saúde que se impõe, apesar da pressão produtivista que hoje caracteriza a produção acadêmica, devido aos padrões mercantilistas que norteiam as investigações científicas.
A atual Política de Atenção à Saúde do Trabalhador no SUS: o discurso da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast)
Já foi dito que a ação dos três atores levou à implantação das propostas de atenção em ST na rede de saúde, antes do SUS, o que se deu por meio do modelo dos Programas de Saúde do Trabalhador (PST).2
As ações em ST na rede do SUS, após o marco legal da Constituição Federal de 1988 e da Lei Orgânica de Saúde - Lei 8080/90, assumem novas formas de organização que eram, até então, pautadas nos PST.11 Havia a defesa da criação de Centros regionais e distritais de saúde dos trabalhadores que seriam referências para a rede de atenção básica e acreditava-se que a conformação especializada contribuiria para a concentração das ações de saúde dos trabalhadores apenas em tais Centros.8 Visando potencializar os parcos recursos destinados às ações em ST, a opção política é pela criação dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador, CRST, ou seja, por serviços especializados, de nível secundário, na rede SUS.27
Posteriormente, com a Renast28, o Ministério da Saúde (MS) prioriza o investimento nos CRST hoje a principal estratégia da Política Nacional de Saúde do Trabalhador para o SUS. A Renast propicia um fluxo contínuo de financiamento para as ações em ST desenvolvidas pelos Centros habilitados pelo MS.29 Objetiva integrar tais ações no SUS, nos três níveis de complexidade, por meio de atividades de assistência, vigilância e educação. Em 2005, a nova Portaria30 busca sua ampliação e fortalecimento, com a habilitação de 200 serviços, em todo Brasil; a inclusão das ações de ST na rede de atenção básica;a implementação das ações de vigilância e promoção;a instituição e a indicação da Rede de Serviços Sentinela; a caracterização de Municípios Sentinela em ST. Hoje, todos os estados do Brasil e o Distrito Federal possuem Centros de Referência, agora identificados como Cerest.
Pode-se dizer que a estratégia dos Cerest permitiu avanços setoriais, acúmulo de experiências e conhecimentos técnicos. Mas ainda resta como grande desafio a articulação intrasetorial das ações, seja nos níveis básicos de atenção, seja nos níveis especializados e nas instâncias de vigilância. As experiências dos Cerest, após a implantação da Renast, carecem de mais estudos sistemáticos e de publicações. No que tange a sua proposta, expressa nas Portarias Ministeriais e ao cenário contemporâneo, algumas considerações são pertinentes: o aumento quantitativo de Cerest de 2002 a 2008 é da ordem de 2,9 vezes29 e, embora inferior à habilitação de 200 Serviços previstos na Portaria de 2005, representa um crescimento significativo. Nesse sentido, a indução financeira, via Renast, tem propiciado a expansão da rede de Cerest em todo o país. Constata-se29 um excedente de recursos em quase todos eles, sendo necessário um acompanhamento sistemático dos problemas identificados na execução financeira, para a construção de mecanismos adequados de regulação. Contudo, ainda que o número estabelecido de Cerest seja alcançado, é importante a investigação do dimensionamento ideal para sua implantação, de acordo com o levantamento das situações de risco, do perfil epidemiológico da população de trabalhadores adscrita e das áreas de abrangência.
Outro aspecto relevante é que, ao longo dos anos, os Cerest foram centralizando suas ações e passaram a dar ênfase aos atendimentos médico-ambulatoriais para trabalhadores adoecidos. Muitos deles tornaram-se porta de entrada e se distanciaram dos demais níveis de atenção do SUS. Dessa maneira, foram se configurando mais como Centros de especialidades em doenças relacionadas ao trabalho, do que em referência de ST para a rede. Pelo que estabelece a Portaria de 2005, o fortalecimento dos Cerest dar-se-á pela inclusão das ações de ST na atenção básica. Apesar dessa orientação, vários Cerest estruturaram-se na linha assistencial, munindo-se de equipamentos de fisioterapia e terapia ocupacional entre outros, adquiridos com recursos da própria Renast. Sem articulação com a vigilância, a tendência desse modelo é apresentar um impacto pequeno na intervenção sobre os ambientes e processos de trabalho nocivos à saúde.31
Além disso, a falta de tradição, familiaridade e conhecimento dos trabalhadores da saúde com a temática produz a crônica incapacidade em diagnosticar, estabelecer a relação das doenças com o trabalho e intervir com resolutividade a partir da rede básica. Devido a sua potencialidade, a formação em ST para os trabalhadores da rede configura-se como relevante estratégia politica a ser conduzida numa perspectiva de educação permanente. Dessa maneira, a anamnese ocupacional, o diagnóstico e a notificação compulsória de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho poderiam incorporar-se ao processo de trabalho em saúde, seja nos Programas de Saúde da Família e de Agentes Comunitários de Saúde, seja na urgência e emergência. Os trabalhadores do SUS poderiam entender o trabalho como fator capaz de gerar agravos à saúde. A formação seria, então, um importante dispositivo para a descentralização da ST e potencializaria a integralidade da rede.
Outra dificuldade na articulação intrasetorial da ST diz respeito à distribuição dos Cerest de forma regionalizada, num SUS municipalizado. Além dessa, há também a dificuldade de articulação dos Cerest com outras instituições relacionadas à Saúde do Trabalhador, bem como com as organizações de trabalhadores em todos os seus municípios de abrangência. Por isso, apesar da organização regional, muitos deles têm limitado e priorizado sua atuação sobre o município-sede. O que se coloca é a forma pela qual a Renast contribuirá para processos de pactuação dos procedimentos de assistência, vigilância e informação entre os municípios de abrangência dos Cerest.
A precarização dos vínculos e relações de trabalho, o crescimento da informalidade e do desemprego apontam para novas demandas, interferindo de forma incisiva na participação dos trabalhadores e seus sindicatos no controle social e principalmente sobre as práticas de vigilância instituídas. O reflexo disso sobre o campo ST é que sindicatos e trabalhadores assumem uma postura mais passiva e pontual, demandando dos Cerest respostas técnicas e de curto prazo.
Hoje, mais do que nunca, a atuação integrada da assistência com a vigilância e a educação em saúde, com a participação ativa de trabalhadores, sindicatos e instituições afins deve ser estimulada. Nesse sentido, a Vigilância em Saúde do Trabalhador, VST, como ação transversal de interface com as vigilâncias sanitária, epidemiológica e ambiental, mediante participação contínua e sistemática de seus diferentes atores, é um instrumento estratégico para produzir mudanças no cenário atual. O termo VST é recorrente nas Portarias e Manuais de gerenciamento da Renast. Mas sua concepção e sua forma de atuação não estão claramente delineadas. Pode-se afirmar que a estratégia atualmente adotada pelo MS, apesar de ainda incipiente ,de construção e publicação de protocolos de notificação visando a vigilância, auxiliaria na superação de algumas dificuldades observadas.
A Renast também prevê a criação dos Serviços e Municípios Sentinelas, responsáveis pela organização e pela difusão de informações, que seriam a base das ações articuladas de vigilância em ST. A notificação compulsória dos acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, no Sistema de Informação de Agravos de Notificação do SUS (Sinan Net) auxilia a organização dessa informação. Apesar dos Serviços Sentinelas, do Observatório em ST e da Notificação Compulsória dos agravos, a informação em ST produzida no âmbito do SUS ainda não dá visibilidade social à problemática. Nesse contexto, as estatísticas da Previdência Social, mesmo que restritas aos trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas, ainda se constituem na principal fonte de informações disponíveis, limitando a potencialidade da informação articulada e integrada em rede, base da intervenção. Por fim, a construção de instrumentos para a avaliação da qualidade da intervenção em ST auxiliaria no acompanhamento do modelo proposto, fornecendo subsídios à análise dos retrocessos e avanços em direção à atenção integral no SUS.
No entanto, o que se constata é que o discurso e a atuação dos últimos governos tendem para a privatização, contenção de gastos e seleção de demandas, em detrimento das ações no campo das políticas sociais, de conformidade com as recomendações de organismos financeiros internacionais.
CONCLUSÕES
Diante desse quadro, conclui-se que a reestruturação produtiva neoliberal modifica a correlação de forças entre Capital e Trabalho, interferindo nas políticas públicas de saúde, na ação dos trabalhadores e na própria inserção social da Academia. As transformações impostas ao mundo do trabalho na contemporaneidade exigem, ainda mais, a aliança dos atores sociais do campo ST, na construção de conhecimento para intervir sobre essas realidades, velhas e novas.
No Brasil,cabe, aos antigos (e novos) atores sociais em ST, promover a necessária transformação dessa realidade, enfrentando o desafio de criar brechas e trilhas para a efetiva implantação das políticas públicas de saúde.
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