RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 20. (2 Suppl.2)

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Relato de Caso

Dificuldades no diagnóstico das doenças respiratórias relacionadas ao asbesto: relato de três casos

Difficulties in diagnosis of asbestos-related respiratory diseases: report of three cases

Ana Paula Scalia Carneiro1; Lucille Ribeiro Ferreira2; Lailah Vasconcelos Oliveira3; Antônio Braz Pereira Júnior4; Andréa Maria Silveira5; René Mendes6

1. Pneumologista do Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador (CEREST) do Hospital das Clínicas da UFMG; doutora em Saúde Pública da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
2. Professora Substituta do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG, Mestre em Saúde Pública, Belo Horizonte, MG, Brasil
3. Médica do Trabalho, Mestre em Saúde Pública pela UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
4. Médico pneumologista, estagiário do Ambulatório de Doenças Profissionais do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
5. Professora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina e Coordenadora do Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador (CEREST-MG) do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil
6. Professor Titular do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil. (aposentado)

Endereço para correspondência

Dra. Ana Paula Scalia Carneiro
Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador (CEREST -MG) da UFMG
Alameda Álvaro Celso 175, 7º andar Bairro: Santa Efigênia
CEP: 30.130-1000. Belo Horizonte-MG
Email: anapaula.scalia@gmail.com

Instituição: Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador (CEREST -MG) da UFMG. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Resumo

As fibras de asbesto são minerais amplamente utilizados em diversas atividades industriais, apesar de sua extrema patogenicidade para trabalhadores e outras pessoas expostas. No entanto, muito escassos são os estudos de casos publicados em nosso estado e em nosso país acerca do tema. Este artigo tem o propósito de compartilhar os principais achados e as características de três casos de doenças respiratórias relacionadas ao asbesto (amianto). Adicionalmente, o artigo tenta identificar as principais dificuldades para o adequado diagnóstico dessas doenças, bem como discute as principais razões pelas quais essas doenças ainda são sub-diagnosticadas e sub-notificadas em nosso país.

Palavras-chave: Asbesto; Doenças Profisionais; Pneumoconiose; Saúde do Trabalhador.

 

INTRODUÇÃO

Apesar de existirem na literatura, evidências epidemiológicas suficientes da relação entre a exposição ao amianto e doenças respiratórias, como asbestose, placas pleurais, câncer de pulmão e mesotelioma de pleura1,2 e da existência de grande número de trabalhadores expostos, não há registros sistemáticos, em Minas Gerais, da ocorrência dessas doenças.

Dessa forma, mesmo num serviço de referência em saúde do trabalhador, como o Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador (CEREST) do Hospital das Clínicas da UFMG (antigo Ambulatório de Doenças Profissionais- ADP), o número de atendimentos a trabalhadores com doenças respiratórias relacionadas ao amianto é pequeno. Da abertura do serviço, em 1985, até 2004, foram avaliados apenas 38 trabalhadores, com confirmação da presença de doenças relacionadas ao asbesto nos três casos relatados a seguir.

O asbesto (ou amianto) é uma fibra mineral que se apresenta na natureza sob duas formas principais: os anfibólios e as serpentinas. Os anfibólios são caracterizados por fibras mais rígidas, facilmente dispersadas ao manuseio, com tendência a longa permanência no organismo humano. Sua utilização está sujeita a fortes restrições em todo o mundo. As serpentinas, cujo principal representante é a crisotila, caracteriza-se por fibras que tendem à aglomeração e são mais facilmente digeridas pelo organismo.3,4 Dentre as características do asbesto que justificaram sua larga utilização, destacam-se a flexibilidade, a quase indestrutibilidade, a resistência ao calor, tensão e corrosão, além de ser um bom isolante térmico e acústico. No Brasil, noventa por cento do consumo interno é destinado à produção de caixas d'água e telhas onduladas. O amianto é ainda utilizado na produção de discos, pastilhas de freio e embreagem de veículos, juntas de vedação, papelão, têxteis e materiais à prova de fogo.5,6

Atualmente, a produção mundial tem diminuído em função da comprovação dos riscos à saúde humana representados pela exposição ocupacional e ambiental e em função da pressão das organizações dos trabalhadores, profissionais de saúde e ambientalistas pelo banimento ou redução da utilização do mineral. Vários países já baniram o uso do amianto e, no Brasil (quinto maior produtor mundial), a discussão em torno dessa possibilidade está gerando enorme polêmica.7,8.

 

R ELATO DOS CASOS

Caso 1

Paciente 65 anos, masculino, procedente de Nova Lima, MG, trabalhou por três anos em processos de britagem e refinagem de fibras de amianto e, por vinte e três, como "braçal" em mineração de ouro. À época da consulta já estava afastado há 41 anos da exposição ao amianto e há 18 anos da mineração de ouro, onde foi exposto à sílica. Ex-tabagista (42anos/maço), tendo interrompido o hábito há treze anos, e hipertenso em uso de medicação. Compareceu ao ADP com queixa de dor moderada em hemitórax direito, sem relação com esforço ou palpação local, de início espontâneo há aproximadamente 30 dias. Apresentava ainda, dispneia aos grandes esforços, sem caráter progressivo. Ao exame físico, apresentava crepitações finas em bases pulmonares. A radiografia de tórax (RX) revelou alargamento do mediastino superior direito (Figura1) que mostrou significativo aumento de volume em dois meses de acompanhamento.

 


Figura 1 - Radiografia de tórax mostrando alargamento do mediastino superior direito

 

A tomografia computadorizada (TC) evidenciou infiltrado intersticial basal periférico, sobretudo à esquerda, associado a espessamento da cissura oblíqua, bandas parenquimatosas e espessamento dos septos interlobulares (Figura 2). Revelou ainda, presença de massa medindo cerca de 4 cm em seu maior diâmetro, localizada na periferia medial do lobo superior direito e outra massa medindo cerca de 5,5cm em seu maior diâmetro, de localização paratraqueal direita (Figura 3), além de lesões hepáticas podendo corresponder a metástases.

 


Figura 2 - Tomografia computadorizada de tórax evidenciando infiltrado intersticial basal periférico, espessamento da cisura oblíqua, bandas parenquimatosas e espessamento dos septos interlobulares

 

 


Figura 3 - Tomografia Computadorizada de tórax evidenciando massa na periferia do lobo superior direito e outra massa de localização paratraqueal direita

 

A espirometria evidenciou distúrbio ventilatório obstrutivo leve. À broncoscopia, foi descrita uma grande compressão extrínseca do terço distal da traqueia, acometendo também carina principal e brônquio fonte direito. O lavado bronco-alveolar não apresentava sinais de malignidade. A punção-biópsia do fígado revelou neoplasia pouco diferenciada. Diante da suspeita diagnóstica de câncer de pulmão não oat-cell e da impossibilidade de tratamento cirúrgico, foi indicada quimioterapia com carbaplatina. Após os três primeiros ciclos, o paciente evoluiu com queda do estado geral, emagrecimento, paresia de membro inferior direito associada a dor lombar e retenção urinária. A cintilografia óssea mostrava áreas focais hipercaptantes em: crânio, coluna vertebral, gradil costal bilateral, escápula direita e pelve óssea. O paciente evoluiu para óbito em poucos meses. Impressões diagnósticas: asbestose e câncer de pulmão relacionado à exposição ao asbesto.

Caso 2

Paciente 52 anos, masculino, procedente de Ibirité, MG, trabalhou como forneiro por 18 anos em empresa de fundição de alumínio, realizando limpeza manual do interior dos fornos revestidos com amianto, durante aproximadamente os primeiros cinco anos desse período. Ex-tabagista (12 anos/maço), sem passado mórbido. Queixava dispneia aos grandes esforços de início há três anos. Negava tosse, sibilância ou dor torácica. Ao exame físico, apresentava murmúrio vesicular diminuído difusamente com crepitações finas em bases pulmonares e sibilos à expiração forçada. O RX de tórax (Figura 4) evidenciou presença de extensas placas pleurais, bilaterais, inclusive na superfície diafragmática esquerda, calcificada.

 


Figura 4 - Radiografia de tórax evidenciando extensas placas pleurais bilaterais na parede torácica, além de placa pleural diafragmática à esquerda calcificada

 

A TC mostrava além das referidas placas pleurais, bandas parenquimatosas exuberantes e enfisema paraseptal (Figura 5).

 


Figura 5 - TC de tórax mostrando placas pleurais na parede torácica, bandas parenquimatosas exuberantes e enfisema paraseptal

 

A espirometria evidenciava distúrbio ventilatório obstrutivo moderado sem resposta ao broncodilatador. Melhorou razoavelmente com o uso crônico de salmeterol. Encontra-se clinicamente estável, em controle ambulatorial. Impressões diagnósticas: asbestose e placas pleurais relacionadas à exposição ao asbesto.

Caso 3

Paciente 71 anos, masculino, procedente de Nova Lima, trabalhou durante nove anos em mineração de amianto, estando afastado da exposição há 24 anos. Tabagista (60 anos/maço), ex-etilista, além de passado de psoríase. Queixava tosse produtiva com pequena quantidade de expectoração amarelada, principalmente pela manhã, dispneia ao caminhar no plano, hiporexia e perda de quatro quilos em um mês. Ao exame clínico, apresentava aumento do diâmetro ântero-posterior do tórax, sons respiratórios diminuídos com roncos difusos, hipofonese e arritmia de bulhas cardíacas. Apresentou baciloscopia de escarro negativa. A espirometria evidenciou insuficiência ventilatória obstutriva leve, sem resposta ao broncodilatador. O RX tórax evidenciou hipotransparências de aspecto linear e irregular nas bases com estrias e consolidações em faixa (Figura 6). Impressão diagnóstica: asbestose.

 


Figura 6 - Radiografia de tórax evidenciando hipotransparências de aspecto linear e irregular nas bases com estrias e consolidações em faixa

 

 

DISCUSSÃO

Os casos relatados demonstram apresentação clínica usual das doenças respiratórias relacionadas ao amianto .A despeito disso, os diagnósticos foram tardios e realizados depois de os pacientes terem passado por vários outros serviços de saúde.

Dentre os fatores que dificultam o estabelecimento do nexo dessas doenças com o trabalho, destacam-se o longo período de latência, a variabilidade da relação dose-resposta das mesmas e a desinformação ou esquecimento por parte do paciente de contato pregresso com o asbesto. Devem ainda ser lembrados o desconhecimento por parte dos profissionais de saúde dos riscos decorrentes da exposição ao asbesto e dos quadros clínicos provocados pelo mineral, a não realização por parte dos médicos da anamnese ocupacional e a inexistência de um sistema eficiente de vigilância de doenças relacionadas ao trabalho no país.

Em relação ao caso 1, não se pode afirmar que o asbesto seja o responsável direto pelo câncer pulmonar. O paciente era ex-tabagista e havia ainda sido exposto à sílica também considerada carcinogênica9, embora não apresentasse sinais radiológicos de silicose. Nesse caso, múltiplos fatores concorreram para a etiologia do câncer pulmonar, podendo ter ocorrido interação entre eles. O sinergismo entre a exposição ao asbesto e o tabagismo na geração de casos de câncer de pulmão já está bem descrito na literatura.1,4 Essa hipótese se fortalece face os achados radiológicos típicos de asbestose apresentados pelo paciente. A asbestose é considerada um bom "marcador" da exposição ao amianto e está fortemente associada à maior incidência de câncer de pulmão.1,10,11

Quanto à hipótese diagnóstica de asbestose, formulada nos três casos relatados, deve se considerar que o diagnóstico mais sensível e específico é realizado por meio da análise histológica e mineralógica de amostras de tecido pulmonar. As biópsias são indicadas em poucas situações, não tendo sido realizadas nos casos em questão. Segundo a American Thoracic Society12, a presença de anormalidades radiológicas típicas de fibrose intersticial difusas (opacidades tipo s, t, u de acordo com a Classificação Radiológica da Organização Internacional do Trabalho13, associadas à história consistente de exposição ocupacional ao asbesto, autoriza o diagnóstico, mesmo sem a presença de alterações funcionais.4

No Brasil, estima-se em 25.000 o número de trabalhadores expostos na indústria extrativa e de transformação do amianto e em cerca de 225.000 o número de expostos em trabalhos de manutenção de veículos, fora o enorme número de possivelmente expostos na construção civil.4,14 Apesar disso e das precárias condições de trabalho em nosso meio, o número de casos notificados de doenças relacionadas ao amianto é muito pequeno. Uma revisão da literatura brasileira identificou registros em publicações médicas de menos de 100 casos de asbestose, dois casos de câncer de pulmão e quatro de mesotelioma pleural atribuídos ao amianto.2 Acrescenta-se que, recentemente, houve diagnóstico de dois casos de mesotelioma pleural no CEREST-MG em colaboração com a Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, cujo nexo ocupacional em relação ao asbesto foi confirmado.

Ressalta-se que, apesar de não terem sido feitas análises da poeira nos ambientes de trabalho dos três casos relatados, ao que tudo indica o tipo de asbesto era crisotila.

A falta de diagnósticos e notificação desses casos impede que a sociedade visualize os efeitos perversos da utilização industrial desse mineral.8,15,16 Além disso, diversas pesquisas apontam não existir um "limite seguro" de exposição ocupacional ao amianto. Destaca-se que o limite utilizado no Brasil (2fibras/mL) é tecnicamente obsoleto. Outros países utilizam limites dez vezes inferiores e ainda assim apresentam um excesso de mortes de 6,7 trabalhadores em mil expostos.2 Atualmente se admite que mesmo os níveis de exposição recomendados nos Estados Unidos (0,1 fibra/cm3) estão associados com um risco de 5/1000 casos de câncer de pulmão e 2/1000 casos de asbestose.2,7

Dessa forma, os casos descritos chamam atenção para o grave problema de saúde pública representado pelo uso do amianto e alertam os médicos e outros profissionais de saúde para a importância da realização da anamnese ocupacional e da sistemática investigação de doenças respiratórias relacionadas ao amianto, em trabalhadores com história de exposição a esse mineral.

 

REFERÊNCIAS

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9. Hughes JM, Weill H, Rando RJ, Shi R, McDonald AD, McDonald JC. Cohort mortality study of North American industrial sand workers. II. Case-referent analysis of lung cancer and silicosis deaths. Ann Occup Hyg. 2001;45(3):201-7.

10. Capelozzi VL. Asbesto, asbestose e câncer: critérios diagnósticos. J Pneumol. 2001;27(4):206-18.

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13. Organização Internacional do Trabalho. Leitura Radiológica das Pneumoconioses. São Paulo: Fundacentro, 1990.

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15. Kogevinas M, Boffetta P, Pearce N. Occupational Exposure to carcinogens in developing countries. In: Pearce N, Matos E, Vainio H, Boffeta P, Kogevinas M. Occupational Cancer in Devoloping Countries. Lyon: IARC; 1994. p.63-96. IARC Scientific Publications, N. 129.

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