ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Mortalidade materna em cidade-polo de assistência na regiao Sudeste: tendência temporal e determinantes sociais
Maternal death in town providing leading health assistance in Southeastern Brazil: temporal tendency and social determinants
Diogo Ruffo de Faria1; Renato Cruz de Sousa2; Terezinha de Jesus Nascimento Martins da Costa3; Isabel Cristina Gonçalves Leite4
1. Bolsista PIBIC/UFJF. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
2. Bolsista BIC/UFJF. Faculdade de Medicina da UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
3. Membro do Comitê Municipal de Prevençao à Mortalidade Materna-JF. Departamento de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG - Brasil
4. Professora adjunta da Faculdade de Medicina da UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
Isabel Cristina Gonçalves Leite
Rua Silva Jardim, 227/202 Bairro: Centro
Juiz de Fora, MG - Brasil CEP: 36015-390
E-mail: isabel.leite@ufjf.edu.br
Recebido em: 03/01/2011
Aprovado em: 19/03/2012
Instituição: CNPq e Universidade Federal de Juiz de Fora Juiz de Fora, MG - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: a mortalidade materna consiste em evento prioritário de saúde pública, afetando particularmente mulheres no ciclo gravídico puerperal de classes sociais mais desfavorecidas.
OBJETIVO: analisar, a partir dos dados do Comitê Municipal de Prevenção à Mortalidade Materna de Juiz de Fora, os determinantes sociais envolvidos nesse evento, o perfil reprodutivo dessas mulheres, a acessibilidade e a qualidade dos serviços de saúde.
MÉTODO: estudo retrospectivo, com análise dos 81 óbitos maternos de Juiz de Fora, entre 1996 e 2008. Foram consideradas como variáveis para análise: número de consultas e qualidade do pré-natal, período gestacional, tipo de parto, momento do óbito, causa básica da morte, local de ocorrência, além dos problemas e sugestoes propostos pelo Comitê.
RESULTADOS: a RMM média entre 1996 e 2001 foi de 98,5 por 100.000 nascidos vivos, passando nos seis anos seguintes (2002 a 2007) para 77,8 por 100.000 nascidos vivos. Foi encontrada associação entre número de consultas pré-natais e cor (p=0,02) e também correlação (r=0,90, p-valor=0,01) entre áreas de exclusão social e número de óbitos maternos. Do total de óbitos, 74% foram declarados. A maioria dos óbitos ocorreu no puerpério (69,1%), foi do tipo obstétrico direto (63%) e 64% eram evitáveis.
CONCLUSÃO: a elevada taxa de mortalidade materna associada a precárias condições socioeconómicas e ao potencial de evitabilidade de grande parte dos óbitos maternos revelam a necessidade de políticas públicas mais eficientes.
Palavras-chave: Mortalidade Materna; Indicadores Básicos de Saúde; Estudos Epidemiológicos; Iniquidade Social; Estudos de Séries Temporais.
INTRODUÇÃO
A mortalidade materna é indicador do status da saúde da mulher, de seu acesso à assistência à saúde e da adequação do sistema de assistência à saúde em responder às necessidades. É preciso, portanto, ter informações sobre níveis e tendências da mortalidade materna, não somente pelo que ela estima sobre os riscos na gravidez e no parto, mas também pelo que significa sobre a saúde, em geral, da mulher e, por extensão, seu status social e econômico".1 Além disso, esse indicador de saúde está intimamente associado à distribuição de renda e consegue retratar a iniquidade das áreas ou regioes comparadas.2
Ela é expressa pela razao de mortalidade materna (RMM), que correlaciona o número de mortes de mulheres por causas ligadas à gravidez, parto e puerpério ao de nascidos vivos (NV). É indicador de saúde pública afetado essencialmente pela subnotificação dos óbitos maternos como resultado direto do preenchimento incorreto da declaração de óbito.3,4
Trata-se também de fator de forte impacto social, tendo em vista o atual contexto social no qual a mulher está inserida.5 Em camadas menos favorecidas, elas vêm se destacando nos últimos anos como tendo papel essencial na contribuição da renda familiar,3 além de já representarem cerca de 40% do mercado de trabalho brasileiro. Concomitantemente a essa inserção profissional, cada vez mais as mulheres exercem a autoridade familiar. Essa situação consolida ainda mais o paralelo entre morte materna e desagregação da família. Essa morte também as impede de amamentar as crianças e propiciar o carinho materno, aumentando a mortalidade infantil e novos casos de desnutrição infantil.5
Para Laurenti, "no momento em que se coloca a mortalidade materna como prioridade no mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento e que, inclusive as autoridades responsáveis pela saúde pública começam a reconhecer o problema, é preciso e extremamente importante que essa mortalidade seja muito bem-caracterizada quantitativa e qualitativamente".6 A importância de pesquisas com esse intuito está somada ao fato de que cerca de 90 a 95% das mortes maternas serem evitáveis.7
O objetivo do presente estudo é analisar, à luz dos dados consolidados pelo Comitê Municipal de Prevenção à Mortalidade Materna (CMPMM) de Juiz de Fora, instalado em 1996, os determinantes sociais envolvidos nesse evento, o perfil do histórico reprodutivo dessas mulheres, a tendência temporal, a acessibilidade aos serviços de saúde e a qualidade desse acesso, com ênfase na evitabilidade do evento e nas recomendações do Comitê para a redução dessas mortes.
MÉTODOS
Para descrever a mortalidade materna em Juiz de Fora foi realizado estudo retrospectivo no qual se analisou a totalidade de 81 óbitos classificados como óbitos maternos de mulheres residentes em Juiz de Fora no período de 1996 a 2008 pelo comitê. Os dados utilizados provêm da declaração de óbito (DO), da ficha de investigação e da Ficha resumo, instrumentos adotados pelo Ministério da Saúde para investigação do óbito materno. A investigação de todas as mortes de mulheres em idade fértil constitui-se em estratégia do Ministério da Saúde para se conhecer a real magnitude do óbito materno no país bem como as circunstâncias que envolvem essas mortes, no sentido de reduzi-las. As fichas de investigação e resumo são instrumentos padronizados nacionalmente para uniformizar os estudos dessas mortes. No caso da ficha resumo, ela possibilita sintetizar as informações colhidas no processo de investigação (levantadas nos registros ambulatoriais, hospitalares, em entrevistas domiciliares), fornecendo uma síntese das condições/histórias que antecederam essas mortes. Ela passa, assim, a ser um instrumento de referência para discussão dos casos e posterior consolidação dos dados para análise desse evento.
Durante todo o período do estudo, o instrumento de investigação utilizado pelo Comitê Municipal de Prevenção à Mortalidade Materna foi a ficha de investigação, sendo empregada em 97,5% das investigações desta pesquisa. Já a ficha resumo só foi instituída pelo Ministério da Saúde em 2001, sendo preenchida pelo Comitê Municipal de Prevenção à Mortalidade Materna em aproximadamente 96% (78 óbitos) dos casos a partir daquele ano. A declaração de óbito, por sua vez, foi utilizada na totalidade dos casos.
O presente trabalho utilizou o conceito de morte materna adotado pela OMS: "morte de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o término da gestação, independente da duração ou da localização da gravidez, devido a qualquer causa relacionada com ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação a ela, porém não devida a causas acidentais ou incidentais"8. Foram consideradas como variáveis para análise o número de consultas e a qualidade do pré-natal conforme os critérios do Ministério da Saúde (número de consultas, exames solicitados, momento de início), o período gestacional, o tipo de parto, o momento do óbito (gestação, aborto, parto, ou puerpério), a causa básica da morte, o local de ocorrência, além dos problemas e sugestoes propostas pelo Comitê. Foram incluídas apenas as mortes maternas de mulheres residentes em Juiz de Fora e foi considerado óbito materno declarado quando no campo 49 da DO (causas da morte) a gestação, o parto, o aborto ou o puerpério foram claramente mencionados, independentes dos campos 43 e 44 da DO que se referem, respectivamente, ao fato de a morte ter ocorrido durante a gravidez, parto ou aborto; ou se ela se deu no puerpério.
No que se refere à adequação ou não do pré-natal, parto/aborto e puerpério, o CMPMM utilizou como embasamento para análise o que existe preconizado nos protocolos, manuais do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado da Saúde-MG (linha guia), tendo em vista que esse campo da ficha resumo não vem acompanhado de um instrutivo. No manual do Comitê Morte Materna do Ministério da Saúde há apenas descrição dos fatores que devem ser relevantes para análise no caso dos critérios de evitabilidade dessas mortes.
As causas foram separadas conforme sua associação a doenças da gravidez, do parto e puerpério em: obstétricas diretas; obstétricas indiretas; não obstétricas, também chamadas de não relacionadas.3,9
No tocante aos determinantes sociais, foi adotado o conceito de microárea de exclusão social. As microáreas de exclusão social (MAES) constituem células territoriais com os mais diferentes graus de precariedade nas condições de vida, consideradas não apenas sob o aspecto econômico, mas também quanto à urbanização (infraestrutura e habitação), à titularidade da terra e aos riscos de caráter físico-ambiental no local de sua inserção.10
Os dados obtidos foram digitalizados utilizando-se o programa Epi-Info versão 6.0. Para comparação de variáveis qualitativas foi aplicado o teste do χ2; e para comparação de médias, o teste t. A análise entre área de exclusão social e numero de óbitos foi feita utilizando-se a correlação de Pearson, com nível de significância de 5%. As características populacionais foram apresentadas como médias, frequências e desvio-padrao.
Este projeto foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (parecer n 046/2009) e pelo Comitê Municipal de Prevenção à Mortalidade Materna de Juiz de Fora.
RESULTADOS
No período de 1996 a 2008 foram contabilizadas 81 mortes (Figura 1).
Para melhor análise da tendência desse indicador utilizou-se RMMs médias de seis anos consideradas em conjunto, tendo em vista mais robustez dos dados em comparação com as outras formas de divisão temporal. Para o período de 1996 a 2001, a RMM média encontrada foi de 98,5 por 100 mil nascidos vivos, passando nos seis anos seguintes (2002 a 2007) para 77,8 por 100 mil nascidos vivos. Verificou-se que nos 12 anos houve redução de 21% do primeiro para o segundo período.
As características gerais da amostra estratificadas por cor da pele estao expressas na Tabela 1.
Foi analisada a correlação entre o número de domicílios situados em áreas de exclusão social e o número de óbitos maternos em cada regiao administrativa do município de Juiz de Fora. Foi identificada correlação positiva entre as duas variáveis (r= 0,90; p-valor= 0,01).
Entre os casos em que foi utilizada a ficha resumo as fontes dos dados foram as seguintes: entrevista domiciliar em 61,1% (22/36) dos casos, entrevista com profissionais de saúde em 33,3% (12/36), laudo de necropsia em 8,3% (3/36), prontuário hospitalar em 86,1% (31/36) e registros ambulatoriais em 44,4% (16/36).
Os campos 43 e 44 da declaração de óbito (DO) só foram incluídos na análise a partir do ano 2001, com a introdução da ficha resumo, podendo somente ser avaliado em aproximadamente 59,3% das mortes deste estudo. Destas, o campo 43 foi preenchido em 77,1% (37/48), enquanto o 44 o foi em 72,9% (35/48); 74% (37/50) das mortes foram declaradas segundo análise do CMPMM.
Em relação ao momento do óbito, a maioria (69,1%) ocorreu durante o puerpério, sendo seguido pelo de gestação (27,2%), parto (2,5%) e no aborto (1,2%). Quanto às causas de óbito, 63% foram classificadas como sendo obstétricas diretas, 28,4% como obstétricas indiretas e 8,6% inconclusivas. As causas básicas de morte que mais se destacaram na avaliação do Comitê foram as obstétricas diretas, ressaltando-se entre elas: as síndromes hemorrágicas (descolamento prematuro de placenta, placenta prévia, hemorragia pós-parto), infecção puerperal, gravidez terminada em abortamento e hipertensão complicando a gravidez, parto e puerpério.
Aproximadamente 64,0% (23/36) dos óbitos foram considerados pelo Comitê Municipal de Prevenção à Mortalidade Materna como evitáveis, 16,7% (6/36) como provavelmente evitáveis, 13,9% (5/36) inevitáveis e 5,6% (2/36) inconclusivos, com base nos dados obtidos. Os fatores de evitabilidade foram estratificados em cinco grandes categorias: comunidade/família/gestante: 55,2% (16/29), profissional: 72,4% (21/29), institucional: 72,4% (21/29), social: 44,8% (13/29) e intersetorial: 24,1% (7/29).
Os locais de parto e óbito das maes foram divididos em cinco categorias (Tabelas 2 e 3). Em relação ao acolhimento integral da gestante, o Comitê dividiu a atenção em três momentos - pré-natal, parto/aborto, puerpério - e avaliou a sua adequação (Tabela 4).
Os principais problemas apontados pelo Comitê do Município de Juiz de Fora, relacionadas à mortalidade materna do município, estao representados abaixo na Tabela 5.
DISCUSSÃO
A literatura descreve que o declínio da mortalidade materna em países desenvolvidos vem ocorrendo desde a década de 1940. A comparação desse indicador entre países desenvolvidos, como Canadá e Estados Unidos, que apresentam razao de mortalidade materna inferior a 9/100.000 NV, e países em desenvolvimento, como Bolívia, Peru e Brasil, com razoes superiores a 100/100.000 NV, evidencia muito bem a disparidade entre esses dois blocos. Um dos maiores desafios dos países em desenvolvimento é promover, de fato, substancial redução da mortalidade materna.11
Em 1990 foi implantado o Sistema Nacional de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC), que auxilia na maior cobertura desses eventos, aumentando a precisão do denominador. 9
A partir de dados disponíveis no DATASUS,12 em 2009, último ano cadastrado, a RMM brasileira foi de 72,93/100.000 NV. Nesse mesmo ano, Juiz de Fora apresentou valor igual ao da regiao Sudeste no que diz respeito a esse indicador. A Portaria nº 493 de 13 de maio de 2006 do Ministério da Saúde estabelece que uma RMM acima de 20 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos é considerada elevada. Assim, é evidente que ações mais efetivas do governo devem ser tomadas urgentemente.
Na série histórica analisada neste estudo observa-se que há em Juiz de Fora uma oscilação das RMMs, sendo esses valores em todos os anos elevados, a partir dos parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde, conforme citado. Portanto, para melhor avaliação do comportamento da razao de mortalidade materna, considerando as grandes oscilações do período, é importante analisá-la considerando razoes médias (RMMs agrupadas para um determinado período). Apesar de no presente caso a população estudada e o evento em questao não serem pequenos ou infrequentes, optou-se pelo cálculo da razao média para minimizar flutuações anuais aleatórias, sem que essas impliquem melhora ou piora efetiva do indicador.13
A RMM pode ser influenciada pelo sub-registro de óbitos (óbitos não registrados em cartório) ou de subnotificações, este último como consequência imediata do mau preenchimento da DO pelos médicos. Com a implementação dos Comitês Municipais de Prevenção à Mortalidade Materna, essa subnotificação tem diminuído, na medida em que todos os óbitos de mulher em idade fértil são pesquisados para identificar morte materna. Já no que se refere ao denominador, o número de nascidos vivos era obtido dos registros no cartório, o que desencadeava vários problemas, como registros tardios e sub-registros. Como o desenvolvimento do SINASC, a coleta dos dados ocorre tanto em hospitais quanto em cartório, aumentando, assim, a qualidade destes.14
O Ministério da Saúde brasileiro vem buscando medidas que visem minimizar a distorção quantitativa da RMM no país e, nesse sentido, algumas atitudes já foram estabelecidas. Em 1997, foi acrescentada mais uma via na declaração de óbito, permitindo que os óbitos hospitalares sejam conhecidos pelo sistema de mortalidade (SIM), independentemente do registro civil.9 Em janeiro de 1998, os registros de nascimento e óbito tornaram-se gratuitos.15
Neste estudo houve mais alto número de morte de mulheres não brancas do que de mulheres brancas, o que se assemelha aos encontrados na literatura em revisão realizada previamente.16 É consenso que as mulheres brancas apresentam melhores níveis de escolaridade e renda do que as outras em conjunto e é sabido também que as mulheres mais pobres apresentam menos acesso à assistência e mais filhos, fatores de risco para a morte materna. A incrementação do quesito "cor" nos documentos oficiais já foi um passo importante para a caracterização desse problema, porém a sua solução ainda é distante, sendo necessários a sensibilização e o treinamento dos profissionais da saúde para o preenchimento adequado dessse item. 17
Ações praticadas durante o pré-natal são importantes para o prognóstico materno, apesar de este não ser capaz, na maioria das vezes, de prevenir complicações inerentes ao parto, como septicemia e hemorragia. O pré-natal caracteriza-se por três pontos: ter garantia de bom estado nutricional da mae, promoção à saúde materna e prevenção de riscos.17 O número de consultas pré-natal entre as mulheres não brancas foi mais baixo do que entre as outras. Isso pode ser justificado, conforme dito anteriormente, pelo alto nível de renda e escolaridade por parte das primeiras, o que acarreta menos compreensão da importância da prevenção e menos acesso à assistência. Além disso, conforme indicado na literatura,18 um número de consultas pré-natal inferior a quatro associa-se ao mais alto número de gestações (cinco ou mais gestações), o que é fator de risco para a morte materna.
A baixa escolaridade das mulheres pode interferir nas suas possibilidades em obter e utilizar as informações sobre contracepção e saúde, reduzindo suas oportunidades de inserção no mercado de trabalho, e de obtenção de melhor renda. A garantia de mais escolaridade facilitaria o acesso e a utilização de métodos contraceptivos mais adequados contribuindo para a redução das gestações indesejadas e dos riscos de morte materna.18
Segundo Souza et al.19, em 2008, verificou-se mais concentração de morte materna (quase dois terços) entre as mulheres com menos de oito anos de estudo (64,3%) e com renda familiar inferior a três salários mínimos; essa proporção confirmou a relação entre morte materna e baixo status socioeconómico, entre os quais baixa escolaridade e baixa renda. O presente estudo corrobora essa afirmação, uma vez que, quanto maior o número de domicílios situados em áreas de exclusão social, maior o número de óbitos maternos. Esse achado destaca a importância da adoção de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida da população em Juiz de Fora, assim como medidas que visam diminuir a desigualdade socioeconómica entre as zonas administrativas.
Para iniciar o processo de investigação, é de suma importância a declaração de óbito. O local onde o óbito ocorreu ou onde foi emitida a DO tem no máximo 48 horas de prazo para enviar a primeira via desse documento oficial para o gestor municipal do Sistema de Informação de Mortalidade. Todo esse trâmite deve estar organizado e funcionando plenamente. Sendo assim, outros passos da investigação podem ocorrer, como a entrevista domiciliar.20 Por reconhecer o papel da mortalidade materna como relevante indicador de saúde, é fundamental avaliar permanentemente a qualidade dessas informações visando à sua correção e mais confiabilidade do sistema, especialmente quanto ao seu papel de orientar a formulação e o monitoramento das políticas públicas de prevenção contra o óbito materno.
Tanto o campo 43 quanto o 44 da DO indagam se a morte ocorreu no ciclo gravídico ou puerperal e têm se mostrado bastante sensíveis na detecção da morte materna21. Entretanto, conforme descrito no presente estudo, há significativa porcentagem de DO em que esses campos não se encontram preenchidos. Isso pode se dever à ambiguidade presente nas perguntas da DO, o que deixa o médico em dúvida no momento do preenchimento. Tal problema pode levar à subestimação da morte materna e teria sido evitado caso o Ministério da Saúde tivesse testado a clareza de tais perguntas a partir de estudos anteriores à anexação ao documento, além da necessidade de divulgação da importância desses novos campos junto aos médicos, principalmente os obstetras.21
Em confluência à pesquisa realizada por Ribeiro et al., em 2002, a maioria dos óbitos ocorreu durante o puerpério. Algumas possibilidades podem ser levantadas a respeito disso: falta de integração entre o período gravídico e puerperal, consequência de complicações do pré-natal ou parto que culminaram no período em questao, entre outras.22 Para que esse problema seja amenizado é necessário seguir as recomendações oferecidas pelo Ministério da Saúde, a partir da publicação "Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher", na qual são preconizadas duas revisões puerperais em todas as maes: a primeira, chamada de precoce, deve ocorrer entre o 7º e o 10º dia de puerpério, investigada para transtornos psiquiátricos, comuns nesse período, e realização de exame físico, além de instruções acerca do aleitamento materno. Já na tardia, entre o 30º e 42º dia puerperal, toda a análise da primeira deve ser refeita.23
De forma semelhante aos achados apresentados pelo Ministério da Saúde em outras regioes brasileiras, a maior parte dos óbitos maternos identificados foi do tipo obstétrico direto (aqueles decorrentes de complicações obstétricas durante o ciclo gravídico ou puerperal, proveniente de intervenções, tratamento incorreto, omissões ou por dois ou mais desses fatores), em sua maioria evitáveis: refletem a necessidade de garantir atenção integral e de qualidade à mulher, desde a orientação quanto à saúde reprodutiva, planejamento familiar, assistência adequada ao pré-natal, referência às gestantes de risco, vinculação e acompanhamento de qualidade ao parto e ao puerpério até o tratamento das emergências obstétricas.24 A seguir estao listadas as principais propostas do CMPMM visando à melhoria da assistência ao pré-natal, parto e puerpério (Tabela 6):
Na Argentina, Ramos25 realizou ampla avaliação da mortalidade nessa fase, com o objetivo de fortalecer o sistema de vigilância das mortes maternas e reorientar as políticas de saúde reprodutiva. Em cooperação com a Organização Mundial de Saúde (OMS), desenvolveu estudo multicêntrico de base populacional, abrangendo seis estados com alta RNM. Identificaram como principais causas de mortalidade materna o aborto, seguido de hemorragias, infecções/septicemia e transtornos hipertensivos. Entre os fatores de risco, a ausência de atenção obstétrica essencial, a atenção ativa nas emergências obstétricas, contribui para elevar o risco de morte materna. Os dados apresentados pela pesquisa revelam que o município de Juiz de Fora apresenta quadro semelhante.18
CONCLUSÕES
Este estudo, além de indicar a grandeza da mortalidade materna em Juiz de Fora, Minas Gerais, cidade-polo regional de grande importância na Zona da Mata mineira, mostra também fatores a ela associados, como assistência médica durante todo o período gravídico e aspectos sociodemográficos. Isso se torna ainda mais relevante na medida em que se constatou o fato de a maioria das mortes serem consideradas, segundo a avaliação do CMPMM, evitáveis e do tipo obstétricas diretas, sendo assim, resultado direto de déficits na assistência à saúde da mulher no ciclo gravídico puerperal.
Diante do impacto desse evento na sociedade, como a desestruturação familiar, é evidente a necessidade de políticas públicas mais eficientes, visando ao atendimento integral das gestantes e à implementação de medidas de promoção da saúde com foco nesse grupo. Este estudo pretende contribuir para isso, na medida em que possibilitou a criação e análise de um banco de dados informatizado das mortes maternas ocorridas em Juiz de Fora, possibilitando acompanhamento e melhor compreensão desse agravo no município.
REFERENCIAS
1. World Health Organization-WHO, United Nations International Children’s Emergency Fund-UNICEF. Revised 1990. Estimates of Maternal Mortality. A New Approach by WHO and UNICEF. WHO/FRH/MSM/96. 11 UNICEF/PZN/96.1. Geneva:WHO/UNICEF; 1996.
2. Laurenti R, Mello-Jorge MHP de, Gotlieb SLD. A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Rev Bras Epidemiol. 2004;7(4):449-60.
3. Sousa MH, Cecatti J G, Hardy EE, Serruya SJ. Morte materna declarada e o relacionamento de sistemas de informação em saúde. Rev Saúde Pública. 2007;41(2):181-9.
4. Riquinho DL, Correia SG. Mortalidade materna: perfil sóciodemográfico e causal. Rev Bras Enferm. 2006;59(3):303-7.
5. Gomes FA, Nakano AMS, Almeida AM de, Matuo YK. Mortalidade materna na perspectiva do familiar. Rev Esc Enferm USP. 2006;40(1):50-6.
6. Laurenti R. Marcos referenciais para estudos e investigações em mortalidade materna. Rev Saúde Pública. 1988;22(6):507-12.
7. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Departamento de Assistência e Promoção à Saúde. Coordenação Materna Infantil. Manual dos Comitês de Mortalidade Materna. Brasília: COMIN; 1994.
8. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10ª Revisão. CBCD, São Paulo; 1995.
9. Laurenti R, Mello-Jorge MHP, Gotlieb SLD. Reflexões sobre a mensuração da mortalidade materna. Cad Saúde Pública. 2000;16(1):23-30.
10. Juiz de Fora. Atlas Social Juiz de Fora – Diagnóstico.[Citado em 2010 mar 18]. Disponível em: http://www.atlassocialjf.pjf.mg.gov.br/
11. Mota SMM, Gama SGN, Filha MMT, A investigação do óbito de mulher em idade fértil para estimar a mortalidade materna no Município de Belém, estado do Para, Brasil. Epidemiol Serv Saúde. 2009;18(1):55-64.
12. Brasil. Ministério da Saúde. IDB 2006. Indicadores e dados básicos. [citado em 2009 fev 09]. Disponível em: http://www.datasus.gov.br .
13. Organização Mundial de Saúde, Centro Colaborador da OMS para a Classificação de Doenças em Português. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. CID 10. 10ª rev. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 2004. V. 2, Manual de Instrução.
14. Gallotti PHC, Lentz MHE, Petters GVR, Knobel R. Perfil da mortalidade materna em Santa Catarina. Enferm Global. 2006;5(8):1-11.
15. Mello-Jorge MHP, Gotlieb SLD, Soboll MLMS, Baldijão MFA, Latorre MRDO. O Sistema de Informação sobre nascidos vivos – SINASC. São Paulo: Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde para Classificação de Doenças em Português, Universidade de São Paulo; 1992.
16. Martins AL. Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil. Cad Saúde Pública. 2006;22(11):2473-9.
17. Calderon IMP, Cecatti JG, Vega CEP. Intervenções benéficas no pré-natal para prevenção da mortalidade materna. Rev Bras Ginecol Obstet. 2006;28(5):310-5.
18. Soares VMN, Schor N, Tavares CM. Vidas arriscadas: uma reflexão sobre a relação entre o numero de gestações e mortalidade materna. Rev BrasCresc Desenvol Hum. 2008;18(3):254-63.
19. Souza KV, Almeida MRCB, Soares VMN. Perfil da mortalidade materna por aborto no Paraná: 2003-2005. Esc. Anna Nery Rev Enferm. 2008;12(4):741-9.
20. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise de Situação em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica do óbito Brasília : Ministério da Saúde; 2009.
21. Oliveira MHC. Óbitos em mulheres em idade fértil (MIF): um estudo de validação de preenchimento da Declaração de Óbito [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Publica; 2006.
22. Costa AAR, Ribas MSSS, Amorim MMR, Santos LC. Mortalidade materna na cidade do Recife. Rev Bras Ginecol Obstet. 2002;24(7):455-62.
23. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticos de Saúde. Área Técnica de Saúde da Mulher. Parto, aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher/Ministério da Saúde, Secretaria de Políticas de Saúde, Área Técnica da Mulher. Brasília: Ministério da Saúde; 2001.
24. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2004- uma análise da situação de saúde. Evolução da Mortalidade materna no Brasil. Brasília: MS; 2004.
25. Ramos S, Karolinski A, Romero M, Mercer R. A comprehensive assessment of maternal deaths in Argentina: translating multicentre collaborate research into action. Bull World Health Organ. 2007;85(8):615-22.
Copyright 2025 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License