RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. (4 Suppl.3)

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Artigo Original

Helicobacter pylori na infância: particularidades clínicas e terapêuticas da infecção em crianças e adolescentes

Helicobacter pylori infection in Children: clinical features and treatment of infection in children and adolescents

Francisco Guilherme Cancela e Penna1; Simone Diniz Carvalho2; Rocksane de Carvalho Norton3; Francisco José Penna4

1. Médico-residente do Hospital Governador Israel Pinheiro - IPSEMG, ex-bolsista de Iniciaçao Científica da UFMG
2. Doutoranda do Curso de Pós-graduaçao em Ciências da Saúde da FMUFMG
3. Professora associada do Departamento de Pediatria da FMUFMG
4. Professor titular do Departamento de Pediatria da FMUFMG

Endereço para correspondência

Rocksane de Carvalho Norton
Av. Alfredo Balena, 190 - Bairro: Santa Efigênia
Belo Horizonte - MG CEP 30130-100

Instituiçao: Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG

Resumo

A infecção pelo H. pylori é freqüente em todo o mundo e atinge, em determinadas localidades, até 90% da população adulta. A forma de contágio relaciona-se a condições inadequadas de saneamento e as manifestações clínicas são inespecíficas. O diagnóstico e o tratamento têm importância, pela possibilidade de complicações associadas. Este estudo apresenta características da infecção em crianças e adolescentes atendidos no Ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG.

Palavras-chave: Helicobacter pylori; Infecções por Helicobacter/diagnóstico; Infecções por Helicobacter/terapia; Criança; Adolescente.

 

INTRODUÇÃO

A bactéria Helicobacter pylori foi identificada em 1982 pelos pesquisadores J. Robin Warren e Barry J. Marshall. A associação da infecção por H. pylori à doença péptica gastroduodenal revolucionou os conhecimentos sobre a etiopatogenia da úlcera péptica, possibilitando o tratamento clínico dessa enfermidade.1-8 São incomuns úlceras duodenais H. pylori negativas em crianças e também em adultos.1 Tendo como bases evidências epidemiológicas e biológicas, a Organização Mundial de Saúde, em 1994, admitiu o papel desempenhado por este microorganismo na patogênese do carcinoma gástrico.1-8

A infecção pelo H. pylori é freqüente em todo o mundo, variando conforme as condições socioeconômicas e a faixa etária da população. Em países desenvolvidos, a prevalência em adultos varia de 20 a 55%.2,7,8 Nos países em desenvolvimento, a prevalência atinge até 90% da população adulta 2,9. Em crianças e adolescentes, a prevalência varia de 4 a 32% em países desenvolvidos e de 16 a 92% nos países em desenvolvimento.8 Estima-se a ocorrência de quatro a seis novos casos de úlcera péptica por ano em centros americanos, semelhante à incidência no Hospital das Clínicas da UFMG, que gira em torno de sete novos casos anuais.6 Embora a infecção não tenha repercussões clínicas significativas na maioria dos indivíduos infectados, em 15 a 20% dos casos ela resulta em complicações. Marcadores de virulência do H. pylori, como, por exemplo, os genes cagA, codificam proteínas relacionadas à aderência da bactéria, à resposta inflamatória mais acentuada e a outros efeitos sobre as células gástricas, determinando a virulência da bactéria. Deste modo, cepas cagA têm sido associadas à úlcera péptica em crianças e adultos e ao carcinoma gástrico em adultos.6 Há envolvimento da bactéria em até 100% dos casos de úlcera duodenal, ocorrendo em menor proporção na úlcera gástrica de crianças.1-8

A infecção pelo H. pylori é adquirida na infância, na maioria das vezes, e a via de transmissão mais provável é a fecal-oral, por indivíduos infectados ou, indiretamente, pela água contaminada. Nível socioeconômico baixo, densidade populacional elevada na família, baixo grau de escolaridade e condições precárias de higiene contribuem para aumentar as taxas de transmissão.1,2 A doença acomete mais freqüentemente indivíduos do grupo sangüíneo O e com história familiar positiva.6

A infecção pode ter curso insidioso, com períodos assintomáticos intercalados por fases com sintomas dispépticos.6 Vômito é o sintoma mais freqüente em crianças menores, enquanto dor abdominal predomina nos pacientes com mais de sete anos de idade.1,3,5

O diagnóstico é confirmado através da obtenção endoscópica de fragmentos da mucosa gástrica para a realização do teste de urease, da cultura, da histologia e técnicas de biologia molecular ou por técnicas não-invasivas, como o teste respiratório com uréia marcada com carbono 13 (13C), pesquisa de anticorpos anti-H. pylori em soro, urina e saliva e a pesquisa de antígenos de H. pylori nas fezes.1,5,6

O tratamento ideal baseia-se na verificação prévia da sensibilidade antimicrobiana devido às particularidades regionais.1,2,9-11 Recomenda-se o uso de esquemas terapêuticos com taxas de erradicação superiores a 80%.4,5 Estudo realizado em Belo Horizonte com indivíduos entre 15 e 75 anos de idade tratados com esquema tríplice, composto pela associação de pantoprazol, claritromicina e furazolidona, demonstrou que a resistência à claritromicina, o sexo masculino e o status cag A negativo foram os principais fatores associados às falhas terapêuticas.10 O tratamento ideal ainda não foi estabelecido para crianças. O esquema terapêutico mais usado é a associação entre claritromicina, amoxicilina e omeprazol.1,3-5 No Brasil já se observam taxas significativas de resistência bacteriana ao uso de claritromicina e amoxicilina, devido ao uso indiscriminado desses antibióticos na faixa etária pediátrica.6 Metronidazol é uma opção em países com baixo índice de resistência a essa droga, mas no Brasil essa taxa chega a 55%6. Esquemas baseados na furazolidona têm se mostrado de utilidade na erradicação desse microorganismo, com eficácia superior a 84%.10

 

OBJETIVOS

Avaliar aspectos clínicos, histológicos e terapêuticos da infecção por H. pylori entre os pacientes atendidos no Ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), no período de março de 1999 a maio de 2005.

 

PACIENTES E MÉTODOS

Trata-se de estudo de coorte histórico, de avaliação de crianças e adolescentes com diagnóstico de infecção por Helicobacter pylori, atendidas no Ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica, HCUFMG. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas da UFMG.

Dados referentes à identificação, manifestações clínicas, achados de endoscopia digestiva alta (EDA) e histologia, além de tratamentos realizados pelas crianças e adolescentes com diagnóstico de infecção por H. pylori, foram coletados a partir de protocolo padronizado.

A eficácia terapêutica foi determinada por teste respiratório da uréia marcada com carbono 13, após três meses de tratamento. Foi analisada a associação entre manifestações clínicas e achados endoscópicos. Para a determinação da associação entre sintomas clínicos e lesão endoscópica, foi utilizado o teste do qui-quadrado. O nível de significância admitido foi de 5%.

 

RESULTADOS

Foram incluídos 24 pacientes com infecção pelo H. pylori identificados no período referido, sendo 12 do sexo masculino e 12 do sexo feminino, com faixa etária entre 3 e 15 anos.

Entre as manifestações clínicas, dor abdominal recorrente (DAR) ocorreu em 83,3% (20/24) dos casos, náuseas e vômitos em 66,7% (16/24), queimação em 58,3% (14/24). Não houve associação entre a presença de sintomas e a ocorrência de úlcera péptica duodenal (UPD): dor abdominal recorrente x UPD (p=0,711), vômitos e náuseas x UPD (p=0,558) e pirose x UPD (p= 0,884).

Quanto à erradicação do H. pylori, observou-se que tanto os pacientes com úlcera quanto os com gastrite apresentaram taxas semelhantes após o primeiro esquema terapêutico (66,67% e 63,63%, respectivamente). Independentemente do esquema terapêutico utilizado, a taxa geral de erradicação foi de 63,63% (14/22) com o primeiro tratamento. Os demais pacientes necessitaram de dois ou mais tratamentos para a erradicação da bactéria.

Os esquemas terapêuticos mais utilizados foram: Claritromicina + Amoxicilina + Omeprazol (CAO) e Claritromicina + Omeprazol + Furazolidona (COF), com maior taxa de erradicação obtida com o segundo esquema (77,77% x 50%).

 

DISCUSSÃO

A infecção pelo H. pylori é cosmopolita, com altas taxas de prevalência associadas a condições precárias de saneamento. Na maior parte dos casos, a infecção é adquirida na infância e se dá por ingestao da bactéria. Em países com pior nível socioeconômico, a transmissão ocorre por contato direto, vômitos, saliva e até por água não tratada, o que justifica a alta prevalência da infecção.1-8,12

A bactéria tem sido associada à gastrite crônica, úlcera péptica gastroduodenal, carcinoma gástrico e linfoma gástrico do tipo MALT (Mucosal Associated Lymphoid Tissue).1-8,12,13

Como a infecção pelo H pylori é assintomática ou com manifestações clínicas inespecíficas, o diagnóstico é, quase sempre, obtido pela endoscopia digestiva alta solicitada para o esclarecimento de sintomas dispépticos e/ou dor abdominal recorrente1. Nesta série todos os pacientes foram submetidos à EDA para esclarecimento de dor abdominal recorrente, vômitos, náuseas ou pirose. Os sinais e sintomas mais freqüentes foram dor abdominal recorrente (83,3% dos casos) e náuseas e vômitos (66,7% dos casos). Resultados semelhantes foram obtidos em estudos realizados por Ogata et al.13. Ulcera duodenal foi diagnosticada em 40% (8/20) dos pacientes com DAR e em 37,5% (6/16) daqueles com náuseas e vômitos. Não houve associação significativa entre a presença de sintomas e o diagnóstico endoscópico/histológico, conforme também demonstram estudos de Boukthir14.

Os esquemas terapêuticos mais utilizados foram Claritromicina + Amoxicilina + Omeprazol (CAO) e Claritromicina + Furazolidona + Omeprazol (CFO). O esquema CFO obteve índice mais baixo de recidiva, com erradicação da bactéria em 77% das crianças (7/9). Entre os pacientes que usaram o esquema CAO, o índice de cura foi de 50% (6/12). A menor eficácia do esquema CAO em relação ao CFO, na faixa pediátrica, tem apoio em outros estudos. Unico esquema terapêutico foi necessário em 63,63% dos pacientes com gastrite e em 66,67% daqueles com úlcera duodenal.

O controle de cura foi feito com o teste respiratório (13C), que possui sensibilidade e especificidade variáveis em diferentes estudos. Para Suerbaum et al., a especificidade e sensibilidade são superiores a 90%7 e para Ogata et al., a sensibilidade é de 93,1% e especificidade de 78,9%.13 O teste deve ser feito no mínimo oito semanas após o fim do tratamento e com suspensão prévia de inibidores de bomba de prótons por uma semana.15

 

CONCLUSÃO

A taxa de infecção por H. pylori é variável no mundo e atinge até 90% em determinadas populações carentes. Sinais clínicos como dor abdominal recorrente, pirose, náuseas e vômitos indicam, quando há epidemiologia positiva, a realização de endoscopia digestiva alta e exame histopatológico da mucosa gástrica para o diagnóstico diferencial. A ausência de sintomatologia clínica específica associada à infecção e a possibilidade de complicações de longo prazo, como o carcinoma gástrico e o linfoma gástrico do tipo MALT, justificam abordagens diagnóstica e terapêutica adequadas, além do controle da erradicação por meio do teste respiratório.1-8

O índice de cura obtido em nossa casuística aproxima-se do existente na literatura. O maior sucesso terapêutico do esquema que utiliza a furazolidona, em comparação com claritromicina e amoxicilina, está em consonância com as publicações encontradas.10,11

 

REFERENCIAS

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11. Machado RS, da Silva MR, Viriato A. Furazolidone, tetracycline and omeprazole: a low-cost alternative for Helicobacter pylori eradication in children. J Pediatr (Rio J). 2008;84(2):160-5.

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13. Ogata SK, Kawakami E, Pedroso MZ, Patrício FRS, Santos AM. Evaluation of invasive and non-invasive methods for the diagnosis of Helicobacter pylori infection in symptomatic children and adolescents. São Paulo Med J. 2001;119:67-71.

14. Boukthir S, Aouididi F, Mazigh Mrad S, Fetni I, Bouyahya O, Gharsallah L, Sammoud A. Chronic gastritis in children. Tunis Med. 2007;85:756-60

15. Coelho LGV, Zaterka S. II Consenso Brasileiro sobre Helicobacter pylori. Arq Gastroen