RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. (4 Suppl.3)

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Artigos de Revisão

Triagem auditiva neonatal e o diagnóstico precoce das deficiências auditivas na criança

Neonatal hearing screening and early diagnosis of children hearing loss

Ludmila Teixeira Fazito1; Joel Alves Lamounier2; Ricardo Neves Godinho3; Maria do Carmo Barros de Melo4

1. Fonoaudióloga Mestranda. Pós-graduaçao em Ciências da Saúde. Area de concentraçao Saúde da Criança e Adolescente. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FM-UFMG), Belo Horizonte, MG
2. Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FM-UFMG)
3. Doutor. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Departamento de Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMG)
4. Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FM-UFMG)

Endereço para correspondência

Ludmila Teixeira Fazito
Rua dos Otoni, 909 / sala 907 - Bairro: Sta Efigênia
Belo Horizonte - MG CEP 31150-270
E-mail: ludfazito@yahoo.com.br

Resumo

A detecção precoce da surdez favorece o desenvolvimento global da criança, pois permite estimulação sensorial adequada e em tempo hábil. A triagem auditiva neonatal, por meio de medidas de potencial evocado de tronco encefálico e emissões otoacústicas e avaliações comportamentais, permite identificar entre um grupo de indivíduos os que possuem alta probabilidade de apresentar perda auditiva e precisarao de diagnóstico completo. Este artigo busca fazer uma revisão sobre o papel da triagem auditiva neonatal no diagnóstico precoce dos problemas auditivos na infância e das técnicas mais utilizadas para sua realização, além de discutir as políticas públicas atuais e o papel do pediatra nesse processo. É fundamental que os pediatras reconheçam a importância da realização da triagem auditiva, pois exercem influência significativa na tomada de decisões dos pais.

Palavras-chave: Recém-Nascido, Triagem Neonatal; Surdez; Surdez/diagnóstico; Audição.

 

INTRODUÇÃO

A comunicação é uma das funções mais nobres do ser humano e, por sua vez, possui relação direta com a capacidade que o indivíduo tem de ouvir, compreender o significado do que ouve e de transmitir as informações adquiridas. Basicamente, para se comunicar é necessária uma estrutura funcional constituída por sistemas interligados que serao responsáveis por receber os estímulos auditivos (sistema auditivo periférico), conduzir até o cérebro e processar as informações recebidas (sistema auditivo central) e elaborar respostas de diversas formas, entre elas a produção da fala.

A audição é um sentido primordial para o desenvolvimento da linguagem, porque dela decorrem os mecanismos cerebrais e neurofisiológicos da fala. Nos primeiros anos de vida, uma criança é capaz de dominar um sistema lingüístico idêntico àquele empregado pelas pessoas que a cercam.1

Entretanto, para que o desenvolvimento da linguagem falada se processe, são necessárias três seqüências inter-relacionadas de desenvolvimento: o desenvolvimento da capacidade de receber, reconhecer, identificar, discriminar e manipular as características e processos dos estímulos externos; o desenvolvimento da capacidade de compreender, decodificar, associar a linguagem falada, ou seja, a interpretação dos sons lingüísticos que a criança ouve em seu ambiente; e o desenvolvimento da capacidade de produzir os sons da fala, isto é, a emissão. Sendo assim, a integridade do sistema auditivo é fundamental para que esse desenvolvimento ocorra sem intercorrências.2

A estreita relação entre audição e aquisição de linguagem é própria do ser humano, pois é uma função fechada no tempo e está relacionada a períodos maturacionais que ocorrem muito cedo na vida do bebê.1 O feto já possui a capacidade de receber estimulação auditiva desde a vida intra-uterina. A cóclea humana tem sua formação completa desde a 20ª semana de gestação, ou seja, a partir dessa época o aparelho auditivo periférico é semelhante ao do adulto.3

Os primeiros anos de vida são considerados críticos para o desenvolvimento da audição e da linguagem das crianças. O recém-nascido já apresenta estruturas nervosas especializadas no cérebro, prontas para experiências auditivas, sendo necessário apenas estimulação1,4,5, o que influenciará a habilidade da linguagem. Um bebê que não recebe estimulação adequada durante os dois ou três primeiros anos de vida nunca terá seu potencial de linguagem completamente desenvolvido, não importa a razao de sua privação.1,4,5

A identificação precoce e a intervenção antes dos seis meses de vida na criança deficiente auditiva pode permitir desenvolvimento de linguagem receptiva e expressiva, com surgimento de habilidades sociais e de fala comparável aos das crianças com boa audição da mesma faixa etária.6-8 Deste modo, conhecimentos específicos sobre as etapas de um programa de triagem auditiva neonatal se tornam estritamente necessários.

Neste artigo é feita uma revisão sobre o papel da triagem auditiva no diagnóstico precoce dos problemas auditivos e das técnicas mais utilizadas para sua realização, além de discutirem-se as políticas públicas atuais e o papel do pediatra nesse processo.

 

TRIAGEM AUDITIVA NEONATAL PARA O DIAGNOSTICO PRECOCE

O fracasso em identificar precocemente as crianças com perda auditiva resulta em diagnóstico e intervenção em idades muito tardias. No Brasil, a idade média do diagnóstico varia em torno de três a quatro anos de idade, podendo levar até dois anos para ser concluído.9

O enfoque dado à detecção precoce dos problemas auditivos nos últimos anos gerou a criação de diversas organizações com o objetivo de estimular a implementação de programas de triagem auditiva neonatal. Como exemplo, a recomendação do Joint Committee on Infant Hearing (JCIH), em 1990, indicando a triagem auditiva prioritariamente para os bebês de alto risco; e em 2000 este mesmo comitê estabelece os princípios e guias para os programas de identificação precoce da surdez.10,11

No Brasil, em 1998, criou-se o Grupo de Apoio à Triagem Auditiva Neonatal Universal (GATANU), com objetivo de operacionalizar a triagem auditiva no país. Ainda naquele ano foi criado o Comitê Brasileiro sobre Perdas Auditivas na Infância (CBPAI) e em 1999 foi divulgada a primeira recomendação brasileira para os problemas auditivos no período neonatal. No ano de 2000, implementou-se a Força Tarefa da Pediatria com o objetivo de promover e divulgar para os pediatras ações de prevenção e identificação precoce das perdas auditivas.12,13

Os programas de triagem visam à prevenção, à identificação e ao diagnóstico precoce da deficiência auditiva.1,2,5-7 Entende-se por triagem auditiva neonatal um procedimento simples, rápido e aplicável a um elevado número de indivíduos, buscando identificar aqueles que têm alta probabilidade de apresentar perda auditiva e que necessitam de um diagnóstico audiológico completo.2,5

A prevalência geral dos déficits auditivos incapacitantes situa-se em torno de 3 por 1.000 nascidos vivos, podendo ser de origem congênita, hereditária ou adquirida.14 As perdas auditivas podem dever-se a causas pré, peri ou pós-natais. Entre as causas pré-natais, estao: as infecções intra-uterinas, alcoolismo materno, diabetes gestacional, toxemia gravídica, etc. As causas perinatais podem ser: parto prematuro, hipóxia, hiperbilirrubinemia, hipertensão pulmonar persistente associada à ventilação mecânica e necessidade de oxigenação extracorpórea e septicemia com necessidade de medicamentos ototóxicos. As causas pós-natais podem ser determinadas como: infecções pós-natais, principalmente a meningite, otites médias recorrentes ou persistentes, traumatismo craniano, doenças degenerativas, como síndrome de Hunter, ou neuropatias sensório-motoras, como ataxia de Friedreich e Charcot-Marie-Tooth. Ainda devem ser citadas as síndromes genéticas associadas à perda auditiva, anomalias crânio-faciais, inclusive as malformações de pavilhao auricular e meato acústico e a história familiar de surdez na infância5. Os recém-nascidos que apresentam tais intercorrências são considerados de alto risco para problemas auditivos ao nascimento. 5-11,12-14

Entretanto, se a triagem auditiva fosse realizada apenas nas crianças com indicadores de risco para a surdez, cerca de 50% das perdas neuro-sensoriais congênitas não seriam identificadas.5,11 Sendo assim, em 1994 o Comitê Americano endossa a triagem auditiva neonatal universal. Portanto, um programa de Triagem Auditiva deve ter como objetivo avaliar todos os recém-nascidos e a metodologia utilizada deve detectar todas as crianças com perda auditiva igual ou maior a 35 dB NA no melhor ouvido.10,11

Para um programa de triagem adequado e efetivo, recomenda-se: utilizar métodos eletrofisiológicos em ambas as orelhas, avaliar no mínimo 95% do total de nascimentos, manter falso-positivo abaixo de 3%, índice de encaminhamento para avaliação audiológica completa pós-triagem inferior a 4% e índice de falso-negativo idealmente igual a zero.5,6,10-14 A triagem deve ser entendida como um procedimento necessário, benéfico e justificável, quando se considera a importância que a detecção precoce tem para favorecer o desenvolvimento adequado da criança.5,11,15

 

MÉTODOS PARA TRIAGEM AUDITIVA

A aplicação apenas de medidas eletrofisiológicas é mais recomendada pelos órgaos internacionais já mencionados. Entretanto, o Comitê Brasileiro de Perdas Auditivas na Infância ressalta que, mediante a impossibilidade da utilização dos métodos eletrofisiológicos (muitas vezes de difícil acesso), é possível a realização da avaliação comportamental com a pesquisa do reflexo cócleo-palpebral, ressalvadas as devidas limitações desse procedimento.5,11,15

A avaliação do comportamento auditivo é obtida por meio da observação das mudanças de comportamento motor da criança após estimulação auditiva geralmente realizada com instrumentos musicais calibrados.16 As respostas observadas podem ser divididas em: respostas reflexas e respostas de processamento auditivo. As respostas reflexas são elementares, controladas pelo sistema nervoso central e dependem da relação da via auditiva (entrada) com a via motora final (saída), a qual permite a exteriorização do comportamento. São respostas reflexas do recém-nascido: o reflexo cócleo-palpebral e o startle ou sobressalto. O primeiro diz respeito à contração rápida do músculo orbicular do olho após estímulo auditivo de alta intensidade, o último se refere à extensão de membros superiores e inferiores, como a reação de Moro, diante do estímulo auditivo intenso.16

Entende-se por métodos eletrofisiológicos os potenciais evocados auditivos e as emissões otoacústicas, cada um deles com suas vantagens e desvantagens.12

Os potenciais evocados auditivos consistem no registro da atividade elétrica que ocorre da orelha interna até o córtex cerebral, em resposta a estímulo acústico. Podem ser classificados de acordo com vários critérios, sendo a mais utilizada a classificação quanto à latência da resposta.17 Entre os potenciais evocados existentes, o mais utilizado é a audiometria de tronco encefálico ou brainstem-evoked response audiometry (BERA).17

As emissões otoacústicas (EOA) foram descobertas e definidas por Kemp, em 1978, como a liberação de energia sonora produzida na cóclea. As medidas das EOA são intimamente relacionadas com a integridade das células ciliadas externas, da orelha interna.18 A emissão otoacústica, por ser um método de fácil aplicação e testagem rápida, vem sendo o mais utilizado no Brasil associado à pesquisa do reflexo cócleo-palpebral; entretanto, não é capaz de detectar alterações que acometem o sistema auditivo retro-coclear.

A implantação de um programa de triagem auditiva deve ter como principal objetivo não só a detecção precoce dos problemas auditivos, mas proporcionar estimulação sonora adequada para a maturação das vias auditivas centrais e desenvolvimento da função auditiva e da linguagem oral. Para isto, é preciso garantir a adaptação dos aparelhos de amplificação sonora e intervenção educacional adequados, e em tempo hábil.19 Esta, talvez, seja uma das maiores dificuldades de se estabelecer um programa de triagem ideal, principalmente quando se pensa em uma proposta de saúde coletiva.

Alguns estudos apontam como obstáculos que podem dificultar a triagem auditiva e a confirmação do diagnóstico a falta de informação dos pais e dos pediatras, assim como as dificuldades socioeconômicas, com prejuízo para o acesso aos exames disponíveis.20-24

 

POLITICAS PUBLICAS DE SAUDE AUDITIVA

Os programas de triagem neonatal devem incluir ações de saúde pública para atingir toda a população. Recentemente, no Brasil, o Ministério da Saúde determinou a implantação de redes de saúde auditiva por meio das Portarias Ministeriais 2.073, 587 e 589.25-27 A Portaria 2.073/GM, de setembro de 2004, institui a Política Nacional de Saúde Auditiva, determinando as ações públicas para a saúde auditiva nos níveis de atenção básica, de média e alta complexidade. 25

Por meio dessas Portarias ficam garantidos ao recém-nascido portador de deficiência auditiva detectado nos programas de triagem: o diagnóstico audiológico completo e necessário, a adaptação correta dos aparelhos de amplificação sonora individuais (protetização) e a intervenção educacional adequada, pelo Sistema Unico de Saúde.

Em 2007, através da Resolução SES 1321, a Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais instituiu o Programa Estadual de Triagem Auditiva Neonatal, definindo critérios, normas e procedimentos para a prestação de serviços de triagem auditiva no estado28. Esse programa prevê o credenciamento de 45 maternidades-pólos que serao responsáveis por rastrear auditivamente, a partir das emissões otoacústicas e avaliação comportamental, todos os recém-nascidos no estado de Minas Gerais. Portanto, a criança tem hoje garantido pelo estado o direito à triagem auditiva neonatal por emissões otoacústicas e à avaliação comportamental; e, em casos de alterações nos exames, poderá ser encaminhada para os programas de diagnósticos garantidos pelas portarias ministeriais, formando hoje a Rede de Saúde Auditiva.

 

IMPORTANCIA E PAPEL DO PEDIATRA NA SAUDE AUDITIVA DA CRIANÇA

O importante papel do pediatra nos primeiros dias de vida e no acompanhamento do desenvolvimento global de crianças é indiscutível. Ele é responsável pela saúde integral do bebê e o principal e o primeiro a orientar as famílias sobre a importância da triagem auditiva neonatal universal.29 A atuação do pediatra é imprescindível para que os programas de detecção precoce dos problemas auditivos na infância sejam bem-sucedidos.24 É necessário, portanto, que tais profissionais possam reconhecer a importância da realização da triagem auditiva em todos os recém-nascidos, identificar os fatores de risco para surdez e orientar os responsáveis pela criança sobre a necessidade de investigação especializada da audição. Diversos estudos realizados com pediatras a respeito do seu conhecimento sobre os problemas auditivos na infância concordam quando afirmam que eles demonstram preocupação com o diagnóstico precoce da surdez, bem como enfatizam a importância deste para a socialização e o desenvolvimento da linguagem.23,24,30-33

Por outro lado, tais estudos também ressaltam o desconhecimento de muitos pediatras sobre a triagem auditiva neonatal e que a maioria ignora os métodos de avaliação infantil disponíveis e as condutas a serem adotadas quando a criança falha na triagem ou quando ela possui indicadores de risco para surdez.23,24,30-33 Como o pediatra é o profissional que tem maior contato com a criança e a família, exerce influência significativa na tomada de decisões para a realização ou não da triagem auditiva neonatal.

 

CONCLUSÕES

A triagem auditiva neonatal tem se mostrado um excelente recurso para favorecer o diagnóstico precoce das deficiências auditivas. É fundamental sua maior divulgação no meio médico para difundir ainda mais suas vantagens para a saúde pública.

 

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