RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. (4 Suppl.4)

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Artigo Original

Integralidade da saúde no Programa de Saúde da Família: proposta de um indicador

Health integrality in the Family Health Program: proposal of an indicator

Claúdia Maria Costa1; Marcus Vinicius Polignano2

1. Discente da residência multiprofissional de Saúde da Família da Faculdade de Medicina da UFMG
2. Professor Adjunto do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG

Endereço para correspondência

Claúdia Maria Costa
Rua República Argentina, 728/301
Belo Horizonte - MG CEP 30310-540
E-mail: julipolignano@ hotmail.com

Instituiçao: Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo

A consolidação do Programa de Saúde da Família (PSF) no Sistema Unico de Saúde no Brasil está centrada em princípios fundamentais, sendo que a integralidade representa um dos seus elementos-chave. Este trabalho discute esse conceito e propoe a formulação de um indicador de integralidade de assistência à saúde, tomando-se por base o conjunto de ações propostas para uma equipe de PSF. Demonstra-se sua viabilidade pela aplicação em ações efetivamente desenvolvidas por uma equipe de saúde da família de Belo Horizonte-MG.

Palavras-chave: Programa de Saúde da Família; Assistência Integral à Saúde.

 

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal Brasileira de 1988, inspirada na Conferência Nacional de Saúde de 1986, que garantiu a saúde como um direito de cidadania e instituiu o Sistema Unico de Saúde (SUS), incorporou o paradigma da produção social da saúde na medida em que ampliou o conceito incorporando as condições de vida e trabalho, que deverá ser "garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". 1

Nesse sentido, ser saudável não significa apenas não estar doente. Implica a possibilidade de se atuar na produção da própria saúde, quer mediante cuidados tradicionalmente conhecidos, quer por ações que influenciem seu meio ambiente, por ações políticas para a redução de desigualdades, educacionais, por ação intersetoriais ou de participação da sociedade civil nas decisões que afetam sua existência. Para usar uma expressão bem conhecida, significa o exercício da cidadania.

Para viabilizar a concepção do paradigma da produção social da saúde no SUS, consolidaram-se, no mesmo texto constitucional, os princípios fundamentais para a sua construção, que são: a universalidade, a integralidade, a hierarquização, a equidade, a descentralização e a participação social. Segundo Barata et al.2, tem sido proposta uma organização desses princípios em dois grandes grupos, a saber: doutrinários (ou éticos), que se referem aos objetivos finalísticos do sistema, incluindo a universalidade, a equidade e a integralidade; e organizacionais (ou operativos), referentes aos processos que permitiram o cumprimento das principais diretrizes do SUS, que incluem os princípios de descentralização, regionalização e hierarquização da rede de serviço e participação da população. Destes, destaca-se a integralidade como um dos princípios éticos mais importantes para a consolidação do paradigma da produção social da saúde.

O conceito da integralidade abrange questoes relativas ao biológico, ao ambiental e ao social, a compreensão dos indivíduos nas suas características físicas, mentais e sociais, a integração da assistência médica curativa hierarquizada e de complexidade com a prevenção e a promoção da saúde e do autocuidado ao cuidar da família e do coletivo.3,4

Para que o conceito de integralidade seja aplicado aos indivíduos como direito de cidadania, ele deve ser incorporado como um princípio fundamental e norteador da organização das ações e dos serviços de saúde, pois não há como ter integralidade da assistência à saúde se não houver universalidade, hierarquização, participação social, intersetorialidade, interdisciplinaridade e resolubilidade.5,6,7 E para expressar o conceito da integralidade, é necessário criar um processo de avaliação quantitativa que permita transformar as ações em indicadores mensuráveis de tal forma que seja possível avaliar se esse princípio do SUS está sendo efetivamente alcançado 8,9,10.

O presente trabalho tem como objetivo discutir a questao da integralidade aplicada à organização do Programa de Saúde da Família (PSF), uma vez que o mesmo já incorpora alguns conceitos fundamentais para alcançá-la, tais como a interdisciplinaridade, a compatibilização do atendimento clínico com a prevenção e a promoção de saúde11,12. Para avaliar a efetivação desse princípio, está sendo proposto um indicador de integralidade de assistência à saúde (IAS), tomando-se por base o conjunto de ações propostas para uma equipe de PSF.

 

METODOLOGIA

A metodologia de avaliação da integralidade baseada num indicador foi formatada a partir da construção de índices que procuram quantificar as ações de saúde propostas e executadas pelo PSF.

Dado que cada equipe é responsável pela atenção à saúde de determinado território, é possível avaliar, por meio de alguns índices, se realmente aquela população de referência está sendo"cuidada integralmente".

No quadro 1 estao listadas as ações típicas de uma equipe de PSF que serviram de base para a construção dos índices e indicadores.

 

 

A integralidade das ações desenvolvidas pelo PSF junto à população de determinado território pressupoe que os grupos etários e especiais estao sendo atendidos, que existe resolutividade e boa cobertura à população que procura as ações por demanda espontânea e programada e que a equipe de PSF executa ações de gestao e promoção de saúde.

Dada a complexidade do conceito de integralidade, o INDICADOR DE INTEGRALIDADE DE ATENÇÃO A SAUDE (IAS) proposto inclui na sua composição o indicador de demanda assistencial (IDA), o indicador de demanda programada (ADP), indicador de prevenção (IP) e o indicador de gestao e promoção de saúde (IGPS), sendo expresso na fórmula:

IAS = [ IDA + iDP+ IP+ IGP]/ 4

O "IAS" apresenta variação de 0 a 10, sendo que quanto maior for a pontuação obtida, melhor será a integralidade da atenção à saúde.

Cada indicador que compoe o 'IAS' apresenta o mesmo gradiente de pontuação, que varia de 0 a 10.

Para testar o método de avaliação da integralidade aplicada ao PSF, foi escolhida a unidade Vereda, local de estágio da residência multiprofissional de PSF da UFMG em 2004, localizada num bairro de periferia do município de Ribeirao das Neves (Minas Gerais), com população adscrita de 4.380 pessoas.

Os dados obtidos referem-se ao mês de dezembro de 2004.

 

RESULTADOS

Para entender a construção do Indicador de Integralidade de Atenção à Saúde (IAS), será demonstrado o cálculo de cada componente nele incluído.

Indicador de demanda assistencial (IDA)

Utilizado para avaliar a demanda assistencial, que a equipe de PSF atende na sua área de abrangência. Para compor este indicador, é proposto um conjunto de índices descritos na Tabela 1.

 

 

O indicador de demanda assistencial é calculado pelo somatório de todos os índices citados na Tabela 3 dividida por 5, o que, no caso citado, dará o valor de 6,1.

 

 

 

 

A análise do componente de avaliação da demanda assistencial demonstrou que a integralidade no componente assistencial está comprometida. Apesar da equipe de PSF procurar atender e acolher toda a demanda que lhe chega, ela tem dificuldade para encaminhar os pacientes para as especialidades, ter contra-referências dos pacientes encaminhados e efetivar exames laboratoriais solicitados. As urgências parecem ter prioridade de atenção no sistema.

Indicador de Demanda Programada (IDP)

Proposto para aferir se a equipe está acompanhando grupos especiais e realizando atividades programadas e é composto por um conjunto de índices descritos na Tabela 2.

O Indicador de Demanda Programada (IDP) é calculado pelo somatório de todos os índices explicitado na Tabela 3 dividido por 8, o que, no caso citado, dará o valor de 5,4.

A análise do Indicador de Demanda Programada (IDP) demonstrou que a integralidade, no que tange a este item, está comprometida, pois, apesar de haver, por parte do serviço, e talvez até da própria população, um foco de atenção para o grupo etário até um ano de idade, a cobertura da atenção dada às faixas etárias seguintes até os 14 anos vai diminuindo gradativamente e, aparentemente, essa preocupação passa a ser retomada para o grupo etário acima dos 60 anos; a cobertura dada aos grupos especiais como hipertensos e diabéticos não atinge a todos. Portanto, no que se refere ao acompanhamento de grupos etários e especiais, pode-se perceber que a preocupação é parcial, fragmentar, assistencialista e, portanto, não comprometida com um contexto maior de integralidade.

Indicador de Prevenção (IP)

Proposto para aferir se a equipe está realizando atividades categorizadas como preventivas, é composto por um conjunto de índices descritos na Tabela 3.

O Indicador de Prevenção (IP) é calculado pelo somatório de todos os índices citados na tabela 3 dividido por 4, o que, no caso citado, dará o valor de 8,4.

Observa-se, pela composição do indicador, que as atividades preventivas estao bem incorporadas pela equipe de PSF e pela população, merecendo destaque a cobertura vacinal, especialmente das crianças. As atividades de prevenção de colo de útero e pré-natal precisam ser ampliadas, para atingirem todas as mulheres que necessitam. O serviço parece ter preocupação com controle das doenças transmissíveis, embora o índice citado não seja capaz de esclarecer se todos os casos existentes foram efetivamente diagnosticados.

Indicador de Gestao e Promoção de Saúde (IGP)

Para que se possa atingir a integralidade da atenção à saúde, é fundamental que a equipe de PSF trabalhe a promoção da saúde e, para isso, é imprescindível que haja uma gestao participativa e intersetorialidade. É fundamental que outros setores institucionais, além da Secretaria Municipal de Saúde, auxiliem na resolução dos problemas da comunidade, assim como é fundamental que ela própria se envolva e participe na busca de soluções.

Neste sentido, o Indicador de gestao e promoção de saúde (IGP) inclui os índices expressos na Tabela 4.

 

 

O IGP é calculado a partir do somatório dos índices listados na Tabela 4 dividido por 5, obtendo-se o valor de 2,5, média muito baixa.

A análise do componente de avaliação de gestao e promoção de saúde demonstra que a integralidade, no que tange a este item, está comprometida e que as ações relativas à promoção de saúde não foram ainda incorporadas pela equipe de PSF. Apesar de a equipe realizar reunioes periódicas das quais participam todos os membros, o que possibilita manter um bom nível de entendimento quanto ao desenvolvimento das ações propostas, não existe efetivo envolvimento da comunidade na discussão e planejamento das ações de saúde, assim como não existe envolvimento de nenhum outro setor que não a Secretaria Municipal de Saúde nas ações propostas.

Utilizando-se a fórmula de cálculo proposta para Indicador de Integralidade de Atenção à Saúde (IAS), obteve-se o valor de 5,6 numa escala que vai até 10, demonstrando que a equipe de PSF avaliada terá que envidar mais esforços a fim de atingir a integralidade à saúde como um princípio estruturante da sua prática.

 

DISCUSSÃO

O instrumento de avaliação desenvolvido neste trabalho demonstrou a sua utilidade como método para aferir alguns aspectos importantes relacionados à integralidade da atenção oferecida a uma população de determinada área de referência de PSF.

Dispondo os diferentes indicadores que compoem o indicador geral de integralidade da atenção à saúde PSF (Figura 1), é possível visualizar, na sua aplicação em uma equipe, o comprometimento de cada indicador específico no processo de integralidade. Percebe-se, pelo gráfico, que é necessário melhorar a assistência à demanda e estabelecer melhor a demanda programada. É possível, também, verificar que as atividades preventivas já foram de alguma forma incorporadas ao dia-a-dia das ações do PSF, enquanto o componente da gestao e promoção de saúde encontra-se mais comprometido, demonstrando que será necessário muito esforço para recompor este elemento dentro do conjunto.

 


Figura 1 - Componentes do Indicador de Integralidade da Atenção à Saúde (IAS)

 

CONCLUSÃO

Os resultados do teste permitem concluir ser possível criar uma metodologia para avaliar a integralidade da assistência que está sendo fornecida à população de determinado PSF, a fim de que se possa repensar a prática do SUS local centrada nesta importante diretriz operacional.

É importante mencionar que o indicador proposto leva em conta somente variáveis quantitativas e que a qualidade dos serviços propostos não está sendo avaliada, o que seria um componente importante no princípio de integralidade do cuidado à saúde.

Não é pretensão deste trabalho esgotar todos os aspectos e conceitos relacionados à integralidade da atenção à saúde, mas, sim, reforçar a importância deste princípio do SUS como norteador das ações de saúde, ao mesmo tempo, e demonstrar a capacidade de aferição deste conceito.

 

REFERENCIAS

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