RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 3

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Artigos de Revisão

Atualização em miocardites

Myocarditides update

Estêvão Lanna Figueiredo1; Brunno de Amério Ney2; Fidel Castro Alves de Meira2; Heigler Vinícius Franco Zacarias Leite2; Raphael Cruz Mourão2; Teófilo Eduardo de Abreu Pires2

1. Especialista em Clínica Médica (Sociedade Brasileira Clínica Médica) e Cardiologia (Sociedade Brasileira Cardiologia), mestrando em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina / UFMG, cardiologista dos Hospitais Governador Israel Pinheiro (IPSEMG), Mater Dei e Felício Rocho
2. Acadêmicos do curso de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

Rua Ceará, 195, sala 701, Bairro Santa Efigênia
Belo Horizonte/MG. CEP: 30150310
E-mail: estevao@cardiol.br

Data de submissão: 23/10/03
Data de aprovação: 04/11/04

Realizado na Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte/MG

Resumo

As miocardites (inflamações do músculo cardíaco, podendo envolver os miócitos, o interstício, estruturas vasculares e/ou o pericárdio) são importantes causas de morte súbita e inesperada em adultos com menos de 40 anos de idade e atletas jovens. Têm etiologia diversa, incluindo vírus, bactérias, protozoários, drogas e doenças sistêmicas. Sua fisiopatologia envolve a ativação prolongada das imunidades celular e humoral. Seu curso geralmente é assintomático ou insidioso, havendo considerável dificuldade no estabelecimento do diagnóstico, devido à inespecificidade de seu quadro clínico e à baixa sensibilidade dos exames complementares. O tratamento é basicamente suportivo e direcionado às possíveis complicações ou às causas de base. Possuem prognóstico variável, dependendo da causa-base, sendo pior nas doenças sistêmicas e na infecção pelo HIV.

Palavras-chave: Miocardite/epidemiologia; Miocardite/diagnóstico; Miocardite/quimioterapia.

 

EPIDEMIOLOGIA

As miocardites são definidas clinicamente como inflamações do músculo cardíaco, podendo envolver os miócitos, o interstício, estruturas vasculares e/ou o pericárdio1,2.

A miocardite é doença insidiosa que, geralmente, é assintomática. Estudos post mortem sugerem que a miocardite é importante causa de morte súbita e inesperada, aproximadamente 20% dos casos, em adultos com menos de 40 anos de idade e atletas jovens, apesar de ser mais freqüente em crianças. Outros estudos têm identificado inflamações no miocárdio de 1% a 9% das necropsias.2

As estatísticas nem sempre são confiáveis, entre outros fatores pela dificuldade em se diagnosticar corretamente essa entidade. Para tentar uniformizar o diagnóstico foram criados os critérios histológicos de Dallas (Tabela 1), que provavelmente subestimam a real incidência das miocardites, já que o grau de variabilidade intra-observador é grande. Na verdade, menos de 10% dos pacientes nos quais há suspeita clínica de miocardites têm biópsias positivas por esta classificação histológica2. Pelos critérios histológicos de Dallas existe miocardite, seguramente, quando são encontrados infiltrado linfocitário e miocitólise. O diagnóstico é duvidoso quando somente o infiltrado linfocitário está presente e a biópsia endomiocárdica é considerada negativa para miocardite se nenhuma dessas alterações for observada.

Embora, freqüentemente, muitos casos de miocardite permaneçam sem etiologia definida, vários agentes infecciosos (vírus, bactérias, protozoários e até larvas), doenças sistêmicas, drogas e toxinas são causas conhecidas desta afecção (Quadro 1).

 

 

Entre os agentes infecciosos destacam-se os vírus. Por meio da reação em cadeia da polimerase (PCR), genomas virais são detectados em menos de 20% dos pacientes com quadro clínico de miocardite e de 10% a 34% daqueles com miocardiopatias dilatadas. Os vírus específicos mais comumente associados à patogênese das miocardites em adultos são os adenovírus, coxsakievírus e os enterovírus. O vírus da imunodeficiência humana (HIV-1) causa miocardite em 46% a 52% dos pacientes com AIDS3,4. Mais raramente, o citomegalovírus, o vírus da hepatite C e o vírus da dengue podem causar lesões miocárdicas.

Infecções bacterianas são menos freqüentemente associadas às miocardites em pacientes imunocompetentes. A miocardite mais comum em todo o mundo é a chagásica.

Várias drogas provocam inflamação no miocárdio, tanto por efeito tóxico direto no miócito quanto por mecanismos imunológicos. Uma das mais freqüentes é a produzida pelo agente antitumoral doxorrubicina. A cocaína é uma droga que, cada vez mais, tem sido associada a disfunções agudas do coração, possivelmente por seus potentes efeitos vaso-constritores. Deve ser lembrado, ainda, o álcool, de grande consumo social e importante causador de miocardite2.

 

FISIOPATOLOGIA

Os conhecimentos sobre a fisiopatologia das miocardites advêm, em grande parte, de estudos com camundongos (Figura 1). Estes são infectados por vírus cardiotróficos, como os coxsakievírus. Esses microorganismos replicam-se no citoplasma dos miócitos, causando necrose, e são fagocitados por macrófagos, numa primeira fase, podendo levar à morte em quatro dias. Em alguns camundongos, a fase inicial não-inflamatória não é imediatamente letal e é seguida por miocardite significativa entre quatro e 14 dias de infecção. Essa segunda fase da infecção viral é caracterizada por infiltrado inflamatório, incluindo células natural killer e macrófagos, com a subseqüente expressão de citocinas pró-inflamatórias2.

 


Figura 1 - Linha de tempo da miocardite viral experimental em ratos
Fonte: Adaptado de Feldman & McNamara (2000).

 

A ativação dos macrófagos provavelmente resulta da liberação de partículas virais no interstício, e de interferon-g pelas células natural killer. As citocinas pró-inflamatórias têm importantes papéis no desenvolvimento de inflamação crônica. O fator de necrose tumoral ativa células endoteliais, recruta células inflamatórias e exerce significativo efeito inotrópico negativo. Mas, em contrapartida, é importante para a eliminação das partículas virais. Os interferons combatem a proliferação dos vírus, o que também é realizado por imunidade celular (infiltrados de células T antígeno-específicas, linfócitos T-helper CD4 e CD8, anticorpos antivirais)2.

Apesar de as respostas imunes normalmente funcionarem para eliminar os vírus e permitirem a cicatrização, em muitos casos da infecção do miocárdio, elas provocam ainda mais lesões aos miócitos e ativação imunológica agressiva.

Estudos recentes identificaram vários achados em pacientes com miocardiopatia dilatada idiopática que suportam a hipótese infecciosa-imune dos estudos animais. Há um desequilíbrio entre células T-helper e citotóxicas, uma superexpressão de complexos de histocompatibilidade e produção aumentada de auto-anticorpos no soro. Idade, exercício físico, desnutrição, gravidez, puerpério, alcoolismo, uso de corticosteróides e hipoxemia são condições relacionadas à miocardite. Alguns autores sugerem que, além da exposição a estes vários fatores, é necessário que os pacientes tenham predisposição genética para desenvolverem miocardite e, subseqüentemente, dilatação miocárdica2.

 

DIAGNÓSTICO

O quadro clínico é bastante variado, incluindo pacientes assintomáticos com alterações eletrocardiográficas, pacientes com sinais e sintomas de insuficiência cardíaca e grave disfunção ventricular esquerda, com ou sem dilatação cardíaca. Os pacientes podem se apresentar com história de quadro gripal recente, acompanhado por febre, mal-estar e artralgia. Achados laboratoriais comuns são leucocitose, elevação da velocidade de hemossedimentação (VHS), eosinofilia e aumento dos marcadores séricos de necrose miocárdica. O eletrocardiograma pode re velar arritmias ventriculares, bloqueios cardíacos e pode simular alterações do infarto agudo do miocárdio ou da pericardite1,2.

A presença de taquicardia é usual, sendo às vezes desproporcional ao grau de elevação da temperatura corporal. A primeira bulha cardíaca freqüentemente é abafada e pode haver terceira bulha. Um sopro sistólico apical, transitório, pode aparecer, mas é rara a ocorrência de sopros diastólicos1.

A biópsia endomiocárdica permanece como o padrão-ouro para o diagnóstico de miocardite, apesar de sua limitada especificidade e sensibilidade. Mas o diagnóstico não deve se basear no quadro histológico isoladamente, devendo-se pesquisar a presença de marcadores auto-imunes e estudos de histocompatibilidade1,2.

A fração miocárdica da creatinofosfoquinase (CKMB) freqüentemente se eleva, assim como as troponinas T e I, como evidências de lesão miocárdica com alta sensibilidade, sendo úteis na investigação de casos suspeitos.

Pelo fato de os pacientes com doenças imunológicas sistêmicas (lúpus eritematoso sistêmico, polimiosite e esclerodermia) poderem se apresentar com miocardite, deve-se dosar a VHS e testes reumatológicos em pacientes com insuficiência cardíaca inexplicável e sinais e sintomas de acometimento do tecido conjuntivo. Esses pacientes têm, tipicamente, um ventrículo hipofuncionante, mas de tamanho normal, além de dispnéia e hipóxia de esforço, que são desproporcionais ao grau de disfunção cardíaca1,2.

Estudos recentes sugerem que a pesquisa de genomas virais pela PCR, em biópsias endomiocárdicas, pode fornecer informações importantes quanto ao diagnóstico e prognóstico das miocardites, além de poder diferenciar suas causas virais e auto-imunes. Por exemplo, a persistência de RNA de enterovírus em pacientes com miocardiopatia dilatada é forte fator de pior prognóstico3.

Várias abordagens não-invasivas são usadas para identificar pacientes com miocardite. Cintilografia antimiosina pode identificar inflamação miocárdica na ausência de evidências histológicas, evidenciando especificidade superior, mas sensibilidade inferior às análises imuno-histológicas. A ressonância nuclear magnética e o ecocardiograma digital também podem localizar e estimar a extensão da inflamação em pacientes com quadro presumível de miocardite. O diagnóstico desta afecção é dependente, em grande parte, da suspeita clínica1,2.

Estudos recentes descrevem pacientes com miocardite aguda mascarando quadro de infarto agudo do miocárdio. Geralmente são jovens e sem fatores de risco para doença coronariana, juntamente com sinais, sintomas e alterações eletrocardiográficas consistentes com isquemia miocárdica ou infarto. O diagnóstico correto, nestes casos, inclui o cateterismo cardíaco2.

 

TRATAMENTO

Cuidados suportivos são as primeiras medidas a serem tomadas na terapêutica dos pacientes com miocardite. Aqueles pacientes com sintomas de insuficiência cardíaca devem ser internados para receberem terapêutica farmacológica adequada, sob monitorização. A digoxina aumenta a expressão de citocinas pró-inflamatórias e a mortalidade em modelo animal de miocardite viral, devendo ser prescrita com muita cautela e somente em baixas doses2.

Em pacientes com sintomas de descompensação cardíaca grave, pode ser necessário o emprego de drogas inotrópicas endovenosas ou de dispositivos de assistência ventricular, bem como o implante de desfibriladores, na presença de arritmias ventriculares graves. O repouso absoluto no leito deve ser encorajado na fase de viremia, e deve-se evitar, ao máximo, o uso de drogas pouco necessárias, para se reduzirem as chances de miocardite alérgica1,2,5.

Apesar de a fisiopatologia da miocardite envolver a ativação prolongada das imunidades celular e humoral, o uso de imunossupressores não é preconizado rotineiramente, exceto nos casos de doença auto-imune sistêmica. Tal medida se apóia no fato de a resolução histológica da inflamação miocárdica não se correlacionar com a melhora da função ventricular. Além disso, a incidência de melhora espontânea no desempenho funcional do ventrículo esquerdo é significativa2.

A evolução dos pacientes com miocardite é bastante variável. Alguns estudos recentes têm sugerido que, paradoxalmente ao que poderia ser esperado, aqueles pacientes que se apresentam com quadro clínico de miocardite fulminante (mais sintomáticos e gravemente debilitados) e que são adequadamente tratados apresentam evolução mais favorável em relação àqueles que se apresentam com a forma aguda ou subaguda6,7. O prognóstico é variável, dependendo da causa base, sendo pior nas doenças sistêmicas e na infecção pelo HIV6.

A freqüente associação de miocardites com infecção por vírus tem levantado a hipótese de que as terapias e vacinas antivirais poderiam ser úteis no seu tratamento. Ainda não há conclusões definitivas a esse respeito2,6,7.

 

CONCLUSÕES

Embora as miocardites sejam reconhecidas há dois séculos, seu curso insidioso, a baixa sensibilidade dos métodos diagnósticos e a complexidade da resposta imune dificultam o desenvolvimento de estratégias terapêuticas. Novas opções de tratamento compreendem os antivirais, vacinas e aparelhos de suporte hemodinâmico. A recente descoberta das bases genéticas da doença cardíaca imunológica pode fornecer pistas importantes para a compreensão e tratamento desta entidade.

 

REFERÊNCIAS

1. Wynne J, Braunwald E. The cardiomyopathies and myocarditis. In: Braunwald E, Editor. Heart disease: a textbook of cardiovascular medicine. 5th ed. Philadelphia: W B Saunders; 1996. p.1404-63.

2. Feldman AM, McNamara D. Myocarditis. N Engl J Med 2000;343(9):1388-96.

3. Mc Carthy RE 3rd, Boehmer JP, Hruban RH, Hutchins GM, Kasper EK, Hare JM, Baughman KL. Long-term outcome of fulminant myocarditis as compared with acute (nonfulminant) myocarditis. N Engl J Med 2000;342(9):690-5.

4. Karliner JS. Fulminant myocarditis. N Engl J Me d 2000;342(9):734-5.

5. Barbaro G, Di Lorenzo G, Grisorio B, Barbarini G. Incidence of dilated cardiomyopathy and detection of HIV in myocardial cells of HIV-positive patients. N Engl J Med 1998;339(16):1093-9.

6. Lipshultz SE. Dilated cardiomyopathy in HIV-infected patients. N Engl J Med 1998;339(16):1153-4.

7. Liu PP; Mason JW. Advances in understanding of myocarditis. Circulation 2001;104:1076-82.