RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 3

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Relatos de Casos

Dificuldades para aplicação do protocolo pós-exposição a material biológico em estudantes de medicina

Dificulties in fulfilling the protocol for medical students exposed to biological material

Susana Satuf Rezende Lelis1; Uirá Maíra Resende1; Augusto César Soares dos Santos Júnior1; Luciano Carneiro de Lima1; Natália de Menezes Campos1; Juliano Henrique Vilas Boas1; Elizabeth Costa Dias2

1. Alunos do 9º período do Curso Médico da UFMG - Disciplina Saúde do Trabalhador
2. Professora da Área Saúde & Trabalho, Depto Medicina Preventiva e Social da FM-UFMG

Endereço para correspondência

Uirá Maíra Resende
Rua São Romão, 258 ap. 302
uira@medicina.ufmg.br

Data de submissão: 23/06/03
Data de aprovação: 20/04/04

Resumo

São analisadas as dificuldades que alunos da Faculdade de Medicina, expostos ao material biológico durante atividades rotineiras de ensino e assistência, encontraram para seguir o Protocolo Pós-Exposição, proposto pelo Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador (SAST) da UFMG, a partir dos relatos de três casos. Entre os problemas identificados estão: falhas na organização das atividades, despreparo dos profissionais e desinformação dos alunos. São sugeridas medidas para o aperfeiçoamento dessa atividade e enfatizada a importância da prevenção.

Palavras-chave: Acidentes e Eventos Biológicos; Riscos Ocupacionais; Exposição Ocupacional/prevenção & controle; Serviços de Saúde Ocupacional

 

INTRODUÇÃO

A pandemia de AIDS nas duas últimas décadas do século XX reforçou a necessidade de proteção aos trabalhadores da saúde de situações de risco de contaminação profissional. Nesta perspectiva, o Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador (SAST)1 da UFMG elaborou protocolo de conduta para os casos de exposição a material biológico potencialmente contaminado, denominado Ficha de Informação de Exposição Ocupacional a Material Biológico (FINEXO) Esse protocolo adaptou as recomendações do Center for Disease Control (CDC)2, dos Estados Unidos da América e do Ministério da Saúde (MS) do Brasil3, objetivando padronizar o atendimento de trabalhadores, técnicos, professores e alunos.

É importante considerar a situação particular dos alunos dos cursos da área da saúde. Não são trabalhadores no sentido estrito do termo, entretanto, compartilham ambientes e condições de trabalho dos profissionais da área de saúde e não dispõem de programas específicos de orientação e assistência bem desenvolvidos. Goetz, Yu e Mudder4, estudando 149 médicos residentes, em cinco hospitais universitários nos Estados Unidos, observaram que 40% relataram acidentes com agulhas, 58% dos quais foram notificados e acompanhados4. Birenbaum et cols. detectaram 9,3% relatos de um ou mais episódios de exposição a sangue ou fluidos corpóreos em alunos do terceiro ano do curso médico de uma universidade estadual americana.5 Diekema, Albanese, Densen e Doebbeling6, estudando as políticas de saúde direcionadas para estudantes de medicina de 126 instituições de ensino nos Estados Unidos, observaram que 86% das escolas participaram do surveye, entre estas, 99,2% exigiam a vacinação HBV, evidências de imunidade ou recusa por escrito por parte dos alunos.Todas ofereciam planos de saúde, pagos integralmente pelos alunos. Estes assumiam os custos com os procedimentos de vacinação em 68% dos casos; dos testes sorológicos pós-exposição em 22,20% e com o treinamento sobre estes problemas em 43,40%. Os autores sugerem a necessidade de rever as políticas de saúde direcionadas aos estudantes.6

O risco de se contrair hepatite B por agulha contaminada é cerca de 30%; de hepatite C, varia entre 2% e 3% e, de AIDS, é menor que 0,5%. O risco de aquisição ocupacional do HIV é, portanto, 100 vezes menor do que do HBV, em uma mesma condição de contágio e supondo-se que o acidentado não seja imunizado anti-HBV. Estudos do CDC mostram que oito entre dez casos confirmados de transmissão ocupacional do HIV ocorrem por ferimentos com agulhas ocas de medicação, que são perfeitamente evitáveis pela adoção dos cuidados recomendados.7

Segundo o protocolo pós-exposição desenvolvido pelo SAST-UFMG, reproduzido na Figura 1, ocorrido um acidente pérfuro-cortante, deve ser feita a limpeza imediata do local. Em seguida, o acidentado deve procurar o SAST para caracterização da exposição, com base na natureza do material biológico; na via de contato; no tipo de contaminação e na carga viral do paciente-fonte. O estado sorológico do paciente-fonte é determinado pelo teste rápido, após seu consentimento. Se a fonte for desconhecida, procede-se como se ela fosse HIV positiva.

 


Figura 1 - Conduta após exposição a material biológico, segundo Protocolo Pós-Exposição - SAST-UFMG, 2002

 

Foram analisados três casos de acidentes, com exposição a material biológico, ocorridos em situação de aula, em alunos da Faculdade de Medicina da UFMG, em 2002. Os relatos foram espontâneos e garantidos o anonimato dos envolvidos. Compreendiam a descrição do acidente; a conduta adotada pelo aluno e o professor ou tutor e as dificuldades encontradas para seguir o protocolo do SAST-UFMG.

Caso 1 - M.S. 24 anos, aluna do 8º período, sofreu acidente pérfuro-cortante com agulha condutora, durante coleta de sangue em criança, em atividade de pesquisa, no ambulatório do Hospital das Clínicas. O orientador da pesquisa que a assistia desestimulou-a a procurar o SAST, sugerindo que verificasse no prontuário do paciente o registro de doença infecto-contagiosa. Na ausência de qualquer registro, considerou o episódio encerrado. Entretanto, a recordação do evento ainda acarreta desconforto e angústia para a aluna.

Caso 2 - T.M.D., 21 anos, aluna do 9º período, sofreu acidente pérfuro-cortante com agulha condutora ao reencapar a agulha, em procedimento na Cirurgia Ambulatorial. Procurou imediatamente o SAST, acompanhada da paciente-fonte, para atendimento e solicitação de exames sorológicos, segundo o Protocolo. O procedimento de coleta do sangue foi demorado e a própria aluna foi encarregada do transporte das amostras ao laboratório (em local distinto da coleta), sob forte pressão psicológica. Os resultados dos testes perderam-se no laboratório e foram entregues à própria aluna, após o tempo-limite previsto para o início da profilaxia. A aluna não foi orientada quanto à necessidade de retorno ou realização de novos exames.

Caso 3 - P.T.S., 24 ANOS, aluna do 9º período, contato de sangue com superfície ocular, em aula, pois não usava óculos de proteção, durante ressecção de lesão dermatológica. Foi desestimulada pelo professor a procurar o SAST, sob a alegação de que a chance de complicações era pequena. Ainda assim, procurou o Serviço, acompanhada do paciente-fonte, com atendimento e solicitação dos exames, conforme o Protocolo. Colhido o sangue, a própria aluna teve de levá-lo ao laboratório. Os resultados dos exames da paciente-fonte somente foram entregues após o tempo-limite para o início da profilaxia.

 

DISCUSSÃO

Apesar da impossibilidade de se fazer uma análise segura, com base em apenas três casos, esses relatos permitem identificar problemas para a adoção do Protocolo Pós-Exposição a material biológico, preparado pelo SAST-UFMG, entre os quais chamam a atenção:

  • os alunos não recebem treinamento específico sobre os procedimentos em caso de acidente. Assim, sob o efeito da carga emocional que cerca o evento, ficam à mercê de informações incorretas ou conflitantes.
  • os professores e tutores parecem pouco familiarizados com a rotina a seguir. Bem intencionados, para tranqüilizar o aluno que se acidentou, acabam por desestimular a adoção do Protocolo.
  • falta orientação sistemática sobre os procedimentos adequados em caso de exposição, apoiado por cartazes ou orientação escrita, e sobre a importância de se lavar o local com água e sabão durante, pelo menos, cinco minutos, em caso de contato do material com a pele, e procura de atendimento especializado no SAST, juntamente com o paciente-fonte.
  • há pouco ou nenhum suporte ao sofrimento e à ansiedade dos alunos acidentados, sem descuidar do cumprimento do Protocolo. Além disso, constitui uma sobrecarga desnecessária ao aluno acidentado a responsabilidade de conversar com o paciente-fonte sobre a necessidade do exame, de providenciar a coleta de sangue e de transportar o material colhido ao laboratório.
  • há indícios de negligência no atendimento dos alunos acidentados, traduzidos na demora para a realização dos exames, na liberação dos resultados e na falta de orientação dos procedimentos a serem adotados a seguir. A distância física entre o SAST e o laboratório - onde são feitos os testes - e a falta de integração e comunicação entre eles dificultam o cumprimento do Protocolo. Problemas como o extravio na entrega dos resultados dos exames e pouca atenção à correta orientação do acidentado também necessitam ser equacionados.
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    CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

    Apesar de o protocolo pós-exposição ao material biológico adotado pelo SAST-UFMG seguir os padrões preconizados pelo CDC e o MS, os acidentes deste relato, ocorridos com alunos do curso médico, mostram dificuldades técnicas e organizacionais que necessitam ser corrigidas e/ou aperfeiçoadas.

    Entre as recomendações, destaca-se a necessidade de desenvolver atividade sistemática de orientação aos alunos, professores e a todos os trabalhadores da saúde sobre a importância da prevenção e os cuidados a serem tomados na ocorrência de um acidente. Deve ser enfatizada, também, a importância da vacinação anti-hepatite B.

    O tema reveste-se de importância tanto pela responsabilidade da Universidade para com a saúde e o bem-estar de seus alunos e servidores, quanto pela oportunidade pedagógica de incorporar atitudes e formas de trabalhar com segurança, necessárias à vida dos futuros profissionais.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Serviço de Atenção à Saúde do Trabalhador - SAST/UFMG. Ficha de Informação de Exposição Ocupacional ao material biológico (FINEXO). Belo Horizonte; 2001. (mimeo).

    2. Center for Disease Control (CDC). U.S Department of Health and Human Services. HIV/AIDS Workplace Policy Development. [Citado em: 28 out. 2003]. Disponível em: www.cdc.gov.

    3. Ministério da Saúde. Manual de Diretrizes Técnicas para elaboração e implantação de Programas de Prevenção e Assistência das DST/AIDS no local de Trabalho. Brasília: Ministério da Saúde; 1998.

    4. Goetz A, Yu CM, Muder R.R. Entering first-year residents' experiences and knowledge of infection control of hepatitis B and HIV, at five university-affiliated hospitals. Acad Med 1992;67:275-6.

    5. Birenbaum D, Wohl A, Duda B, Runyon, M.,Stearns,B.,Willett,m. Medical Students' Occupational Exposures to Potentially Infectious Agents. Acad Med 2002;77:185-9.

    6. Diekema DJ, Albanese MA, Densen P, Doebbeling, B.N. Student health policies of U.S. medical schools. Acad Med 1996;71:1090-2.

    7. Jensen D. Management of hepatitis C+ needle stick injuries. Abstracts of the 41st Interscience Conference on Antimicrobial Agents and Chemotherapy, 2001, December 16-19; Chicago, Illinois.