RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 17. 3-4

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Artigo Original

Hipotireoidismo e doença auto-imune tireoidiana em diabéticos Tipo 2

Hypothyroidism and autoimmune thyroid disease in Type 2 diabetic patients

Pedro Weslley Souza do Rosário1; Michelle Aparecida Borges2; Tiago Alvarenga Fagundes3; Saulo Purisch4

1. Doutor em Clínica Médica pela Santa Casa de Belo Horizonte
2. Pós-Graduanda em Clínica Médica da Santa Casa de Belo Horizonte
3. Residente em Endocrinologia da Santa Casa de Belo Horizonte
4. Professor Titular de Endocrinologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais

Endereço para correspondência

Pedro Weslley Souza Rosário
Centro de Estudos e Pesquisa da Clínica de Endocrinologia e Metabologia (CEPCEM)
Av Francisco Sales, 1111, 5 andar Ala D, Santa Efigênia
Belo Horizonte - MG, Brasil; CEP 30150-221
E-mail: pedrorosario@globo.com

Departamento de Tireóide da Clínica de Endocrinologia da Santa Casa de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: Este estudo avaliou a prevalência de doença tireoidiana auto-imune e hipotireoidismo em diabéticos tipo 2 sem fatores de risco ou tireoidopatia aparente.
MÉTODOS: Foram selecionados 230 pacientes consecutivos diabéticos tipo 2. Destes, foram excluídos 111 pacientes que já apresentavam fatores de risco para disfunção tireoidiana. Os 119 pacientes restantes tinham exame clínico normal e foram investigados com dosagens de TSH, T4 livre e antiTPO. O grupo-controle foi constituído de 80 pacientes não diabéticos, semelhantes em relação a sexo e idade. Gestantes foram excluídas.
RESULTADOS: AntiTPO foi positivo em 10 (8,4%) e TSH > 5 mUI/l em 11 (9,2%) dos 119 diabéticos tipo 2; e hipotireoidismo franco foi demonstrado em quatro (3,3%). No grupo-controle, antiTPO foi positivo em seis (7,5%) e TSH > 5 mUI/l em sete pacientes (8,7%). Hipotireodismo franco foi encontrado em dois (2,5%).
CONCLUSÃO: diabéticos tipo 2 sem fatores de risco conhecidos não apresentaram maior prevalência de doença auto-imune ou disfunção tireoidiana.

Palavras-chave: Doenças da Glândula Tireóide/epidemiologia; Diabetes Mellitus Tipo 2; Hipotireoidismo.

 

INTRODUÇÃO

A relação entre diabetes tipo 1 (DM1), de etiologia auto-imune, e disfunção tireoidiana, sobretudo hipotireoidismo, é bem conhecida, tanto em crianças e adolescentes1,2 quanto em adultos.2-4 Menos compreendida parece ser a associação entre DM 2 e doença tireoidiana, demonstrada por alguns autores em nosso meio,3,5 mas não por outros.6 Apesar da elucidação do mecanismo ligando essas duas doenças endócrinas poder gerar valiosa contribuição no entendimento dessas condições5,7,8, na prática clínica a questão é: "diabéticos tipo 2 devem ser investigados, mesmo assintomáticos, para doenças tireoidianas ?"

É importante lembrar que, independentemente de serem diabéticos ou não, alguns indivíduos já são considerados de alto risco para disfunção tireoidiana, merecendo investigação laboratorial (dosagem de TSH) mesmo se assintomáticos.9 Assim, quando se conclui que se deve solicitar TSH em diabéticas com mais de 60 anos ou história familiar positiva de disfunção tireoidiana, acrescenta-se pouco, pois essas condutas já são recomendadas independentemente da constatação de diabetes.9 Pode-se ser ainda mais objetivo: "diabéticos tipo 2 que não apresentem fatores de risco para disfunção tireoidiana e sem doença clinicamente aparente devem ser investigados para tireoidopatias ?"

Outro ponto a ser discutido é a importância do grupo-controle nesses estudos, pois apenas a constatação de uma "elevada" prevalência de tireoidopatias em diabéticos tipo 2 não indica necessariamente investigação. Para isto, exige-se a demontração de que essa prevalência é maior que na população não diabética ou de que as tireoidopatias apresentam comportamento diferente (mais agressivo) em diabéticos tipo 2, como, por exemplo mais probabilidade de um nódulo não palpável ser maligno ou repercussões mais graves do hipotireoidismo assintomático não tratado. Sem essas demonstrações, a recomendação de rastreamento é questionável.

Com estas considerações, apresenta-se um estudo envolvendo diabéticos tipo 2 com o objetivo de avaliar a prevalência de doença tireoidiana auto-imune e hipotireoidismo em pacientes sem fatores de risco ou doença clinicamente aparente9, comparando com um grupo-controle.

 

PACIENTES E MÉTODOS

Foram selecionados inicialmente 230 pacientes consecutivos, com idade no diagnóstico de DM entre 25-65 anos, considerados diabéticos tipo 2 (apresentação sem cetoacidose ou hiperglicemia sintomática, sem necessidade de insulina por pelo menos 12 meses após o diagnóstico e ausência de anticorpos antiGAD).4 Destes, não foram incluídos no estudo 111 pacientes (48,2%) que já apresentavam fatores de risco para disfunção tireoidiana e, portanto, com indicação de investigação, mesmo se não fossem diabéticos.9 Consideraram-se nesses 111 também cinco casos que estavam em uso de amiodarona10,11 ou lítio.12 Neste grupo, antiTPO positivo, TSH acima de 5mUI/l e hipotireoidismo franco (T4 livre baixo) foram encontrados em 27, 31,5 e 13,5%, respectivamente. A Tabela 1 apresenta as condições que foram consideradas de risco para disfunção tireoidiana.

 

 

Dos 119 pacientes restantes, nove estavam em uso de L-T4 e tiveram a terapia reduzida para metade da dose com nova dosagem do TSH após seis semanas; se TSH normal, continuava-se reduzindo até completa suspensão da L-T413, comprovando ou não o hipotireoidismo nesses casos. Todos os 119 pacientes tinham exame clínico normal e foram investigados com dosagens de TSH, T4 livre e antiTPO. O grupo-controle foi constituído de 80 pacientes encaminhados a um laboratório privado para realização de check-up, semelhantemente ao grupo de diabéticos (Tabela 2), e foram investigados da mesma forma. Grávidas foram excluídas em ambos os grupos.

 

 

Anticorpos antiTPO e TSH foram determinados por imunoquimioluminescência (ICMA), com valores de referência de até 35 U/ml e 0,3-5 mUI/l, respecticamente. T4 livre foi dosado por radioimunoensaio, com valor de referência de 0,75 a 1,8 ng/dl.

Este estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da nossa Instituição.

 

RESULTADOS

AntiTPO foi positivo em 10 (8,4%) e TSH acima de 5mUI/l em 11 (9,2%) dos 119 diabéticos tipo 2 sem fatores de risco para disfunção tireoidiana ou tireoidopatia aparente (TSH elevado em 40% dos casos antiTPO positivo versus 6,5% com anti-PO negativo). Hipotireoidismo franco (T4 livre baixo) foi demonstrado em apenas quatro casos (3,3%), 20% no grupo antiTPO positivo versus 1,8% nos pacientes antiTPO negativo.

No grupo-controle, o antiTPO foi positivo em seis (7,5%) e TSH > 5 mUI/l em sete pacientes (8,7%). Hipotireodismo franco foi encontrado em apenas dois casos (2,5%). Desta forma, as prevalências de anti-TPO positivo, TSH elevado e hipotiroidismo franco, objetivos do estudo, não foram maiores em diabéticos tipo 2 sem fatores de risco ou doença tireoidiana aparente, quando comparados ao grupo-controle.

 

DISCUSSÃO

Neste estudo, quando excluídos pacientes que já deveriam ser avaliados com dosagem do TSH, independentemente do diabetes,9 não se demonstrou maior prevalência de doença auto-imune tireoidiana e hipotireoidismo em diabéticos tipo 2, comparado ao controle. Em oposição, Pimenta et al.3 mostraram elevada prevalência de tireoidopatias nesses pacientes, maior que no grupo-controle, motivando a recomendação de dosagem de TSH em todo diabético.3,14 Entretanto, no referido estudo,3 doença auto-imune (tireoidite de Hashimoto e doença de Graves) foi encontrada em 10% dos pacientes com DM2 versus 9,3% no controle e hipo ou hipertireoidismo em 20,3% versus 18,6%. Desta forma, disfunção tireoidiana não foi mais freqüente em diabéticos tipo 2 que no controle e o que na verdade diferenciou os diabéticos do controle foi a doença nodular atóxica.

Reconhece-se que em qualquer série uma prevalência elevada de disfunção tireoidiana foi encontrada em diabéticos tipo 2, variando de 9,2% (nesta) a aproximadamente 20%3,5, o que, em princípio, justificaria rastreamento desses pacientes com TSH. No entanto, alta prevalência também tem sido demonstrada na população geral em nosso meio15,16 ou no grupo-controle dos estudos.3,5 Além disso, muito possivelmente, grande parte dos diabéticos tipo 2 com hipotireoidismo tem fatores de risco conhecidos para disfunção tireoidiana, sendo difícil estabelecer uma relação de independência do diabetes. Neste sentido, chama-se a atenção para o fato de quase metade dos diabéticos avaliados neste estudo já apresentar fatores conhecidos para disfunção tireoidiana. Assim, reforça-se que na presença de condicões de risco9, comuns nos diabéticos tipo 2, o TSH deve ser realizado nesses pacientes, como em qualquer outro, mas, na ausência dessas condições, a relação diabetes e disfunção tireoidiana carece de mais dados.

Admitindo uma prevalência semelhante à de pacientes não diabéticos, quando isoladas outras condições, o rastreamento com TSH não seria justificado em diabéticos tipo 2 sem outros fatores de risco ou ter-se-ia que realizá-lo também na população geral. Restaria o argumento da maior gravidade do hipotireoidismo assintomático em diabéticos tipo 2. Em relação ao hipotireoidismo subclínico, na maioria dos casos, ainda que efeitos negativos sobre os lípides17 e função endotelial tenham sido demonstrados e que esses fatores sejam relevantes nos diabéticos tipo 2. Deve-se admitir que a recomendação de tratamento ainda não encontra evidência suficiente9 e nenhum tratamento diferenciado tem sido reservado a diabéticos tipo 2 a este respeito.9,12 Finalmente, o hipotireoidismo franco, mas assintomático, tem impacto controvertido sobre o diabetes, não sendo nítida que a repercussão seja de tal gravidade que se justifique o rastreamento.18 A repercussão do hipotireodismo assintomático em diabéticos não foi avaliada neste e em outros estudos.3,5

 

CONCLUSÕES

Concluiu-se que diabéticos tipo 2 sem fatores de risco conhecidos9 não apresentaram maior prevalência de doença auto-imune ou disfunção tireoidiana e a recomendação de dosagem de TSH em todo diabético carece de mais estudos, considerando-se que não existe evidência suficiente de que o tratamento do hipotireoidismo em diabéticos tenha impacto diferenciado e resulte em relevante benefício que justifique sua detecção, mesmo quando a prevalência não difere da população geral.

 

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