RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 17. 3-4

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Artigo Original

A situação atual da psiquiatria e do atendimento em saúde mental

The actual situation of psychiatry and of the mental health system services

Betty Liseta Marx de Castro Pires

Mestre em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente

Endereço para correspondência

Av. Alfredo Balena, 190 - 2º. Andar
Belo Horizonte - MG
e-mail: bettylis@medicina.ufmg.br

Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Medicina da UFMG - Departamento de Saúde Mental

Resumo

INTRODUÇÃO: é feita análise geral sobre a situação da saúde mental e a atuação da psiquiatria.
MÉTODOS: Foi feita revisão da literatura atual que permitisse uma visão mais ampla da dicotomia Psiquiatria/Saúde Mental, dentro do contexto geral dos sistemas de saúde, com especial referência às controvérsias diagnósticas e suas implicações tanto para a prática clínica quanto aos riscos para os pacientes.
RESULTADOS: é apresentada uma proposta para a relação médico-paciente com vistas a melhorar a prática clínica a partir da estratégia de investigação que denomina "Escuta Diagnóstica", baseada no diagnóstico das Estruturas Clínicas de LACAN, em seu primeiro ensino.
CONCLUSÃO: a proposta aqui apresentada constitui estratégia para o estabelecimento de hipóteses diagnósticas qualitativas precoces em Saúde Mental, a partir das estruturas clínicas estabelecidas pela Psicanálise lacaniana.

Palavras-chave: Psiquiatria; Saúde Mental; Assistência em Saúde Mental; Técnicas de Diagnóstico e Procedimentos; Relações Médico-Paciente

 

ESCOPO DO PROBLEMA: CRISES RECORRENTES NA SAÚDE MENTAL

Rey1 tece a avaliação mais ampla sobre os sistemas de saúde na Austrália. O autor denuncia e se queixa de que há seis contribuintes diferentes para os serviços de Saúde Mental na Austrália, que lamentavelmente não são coordenados entre si: os clínicos generalistas, psiquiatras privados, psicólogos privados, hospitais privados, serviços de saúde governamentais e comunitários e organizações beneficentes não-governamentais.

Alerta para um problema mais preocupante: o de que psiquiatras e enfermeiras não querem trabalhar nos serviços públicos - ou os deixam ou não querem ingressar neles. Esse autor cita Hickie, que fez um manifesto para mudança no sistema de Saúde Mental australiano, requerendo fundos para estabelecer metas nacionais para serem alcançadas em Saúde Mental (SM), para promover intervenções precoces nos jovens, promover tratamento efetivo nos cuidados primários e outros requisitos. Os autores não acreditam que esses princípios vão resolver a presente crise.

Posteriormente, comentam Rey e Dudley2: "poder-se-ia pensar que esta iminente avalanche de informações produziria clínicos mais fáceis de serem envolvidos." Entretanto, isto não está acontecendo na Psiquiatria. Os autores consideram fundamental a integração dos profissionais privados e governamentais.

Assim, tem-se uma noção preliminar do contexto mais global em que se inserem as diversas crises, debates, discussões e controvérsias que contemporaneamente agitam a área da SM. Uma das controvérsias mais recentes é exatamente acerca dos critérios nosográficos das atuais Classificações Estatísticas de Diagnóstico em Saúde Mental (DSM-IV3 e CID-104) - vide Akiskal et al.7 - o que pode interferir até mesmo nos dados epidemiológicos, o que será visto a seguir.

 

DADOS EPIDEMIOLÓGICOS

O diagnóstico de "depressão" tem seus limites pouco precisos, inclusive intracategóricos, que são baseados na gravidade do quadro, com graus diferentes de incapacidade e disfunção visíveis objetivamente, ou seja, rotulados por intensidade ou por um processo quantitativo mensurável.

Ebmeier et al.8, numa revisão dos últimos cinco anos de desenvolvimento em pesquisa para depressão, descrevem os recentes avanços e controvérsias. Reconhecem que um dos fatores de interferência é o sistema de diagnóstico: o DSM-IV3 inclui na depressão várias formas moderadas da doença. Dentro desse conceito amplo, podem-se observar vários dados epidemiológicos interessantes citados por esses autores:

pulmões com transparência e desenho vascular preservados;

depressão é muito comum, começa em qualquer idade, com idade média de início na terceira década.

MDD (major depressive disorder) leva à incapacidade em mais de 50% dos pacientes. A disfunção é considerada conseqüência direta do humor deprimido.

há aumento da mortalidade associada à MDD. O risco relativo na depressão subclínica não foi menor que na depressão clínica. As análises não examinaram potenciais fatores de confusão, como doença crônica ou estilo de vida. O mecanismo de aumento da mortalidade, portanto, não está claro.

a maior contribuição para o aumento da mortalidade na depressão pode ser do risco de suicídio neste grupo de pacientes, situando-se entre 15 e 19%.

um sexto das pessoas numa comunidade vai sofrer de depressão ao longo de sua vida.

Os mesmos autores descrevem os estudos de Genética e Farmacogenética, das alterações na performance cognitiva secundárias ao estado depressivo e das alterações anatômicas e funcionais do cérebro in vivo. Tentam abordar os conceitos psicopatológicos subjacentes, como se segue:

Apesar de que os termos emoção ou afeto e humor sejam freqüentemente intercambiáveis na prática clínica, humor é tradicionalmente não emoção, mas uma predisposição sustentada, ou vieses da emoção, expressa como afeto, ao longo de uma dimensão única que vai da elação à depressão.8

Neste ponto dessa citação, parece importante destacar que a concepção dos autores para um substrato psicopatológico está sustentada em um continuum da "dimensão única", que interfere diretamente na nosologia e, portanto, no diagnóstico e na terapêutica.

Os mesmos autores ainda afirmam:

A ausência de evidências compreensíveis e confiáveis dos riscos, a percepção de interesses industriais dos clínicos, assim como os vieses das publicações, que são melhor conhecidas por qualquer autor de revisões sistemáticas, tem erodido a fé pública no tratamento medicamentoso da depressão e sua regulação.8

 

DOENÇAS MENTAIS EM POPULAÇÕES PEDIÁTRICAS

Segundo Leslie et al.9, uma em 10 crianças e adolescentes tem doença mental grave o suficiente para causar algum nível de incapacidade. Vários vão continuar com disfunção na vida adulta. Ainda segundo esses autores:

a prevalência dos transtornos do humor nos jovens (MDD - transtorno depressivo maior, DD - distimia e BPD - bipolar) chega a 16 a 22% na adolescência tardia.

os diagnósticos pediátricos primariamente associados ao uso dos inibidores seletivos de recaptação da serotonina (SSRIs) têm sido transtornos de ansiedade em crianças de um a 11 anos e transtornos do humor em adolescentes de 12 a 17 anos.

estudo dos testes de drogas para segurança e eficácia em pacientes pediátricos: não há evidência de eficácia dos AD-Ts (antidepressivos tricíclicos) na população pediátrica.

Segundo Lock et al.10, transtornos depressivos são relativamente comuns entre adolescentes, com prevalência de 3 a 8%. Dizem ainda:

Depressão na adolescência é também freqüentemente recorrente, com até 75% tendo uma recorrência em cinco anos.

O suicídio é a terceira causa de mortes entre adolescentes entre 10 e 24 anos.

Berk e Dodd11, estudando a suicidabilidade emergente no tratamento e resposta diminuída aos antidepressivos (AD) em pacientes jovens, relatam:

o uso de AD para tratar crianças e adolescentes é controverso.

MDD - transtorno depressivo maior - é um constructo muito extenso e inclui vários subtipos clínicos.

BD - transtorno bipolar - tem idade de início mais precoce que MDD.

a polaridade inicial da doença na BD é freqüentemente a depressão. É mais provável os pacientes se apresentarem pela primeira vez ao tratamento durante a fase depressiva que durante as fases maníaca ou hipomaníaca.

Ver-se-á como essa apresentação inicial depressiva é o principal fator de confusão com o diagnóstico de MDD unipolar, desde que os pacientes com mania ou hipomania não se apresentam ou não são levados para tratamento.

Os autores tentam elucidar o que eles mesmos chamam de "confusão bipolar", descrevendo:

existem poucos estudos estabelecendo a eficácia dos ADs no transtorno bipolar e alguma evidência de que eles podem induzir ciclagem rápida, viragem e mania.

mania induzida pelos ADs é freqüentemente mista, com aparências maníacas e depressivas misturadas.

o aumento do risco de suicídio é uma característica particular dos estados mistos, potencialmente explicando por que a ideação suicida pode emergir com tratamento antidepressivo (AD).

uma explicação mais plausível é que o transtorno bipolar incipiente é freqüentemente não-diagnosticado precocemente em crianças e adolescentes e os efeitos diferentes dos ADs neste grupo são resultado de misturas de diagnósticos diferentes.

Assim, vê-se como os dados estatísticos e epidemiológicos podem ser confundidos por classificações nosográficas imprecisas, fundadas em observações pela clínica do olhar que são baseadas em aparências sintomáticas dos fenômenos e na avaliação quantitativa do índice de gravidade.

Após esta revisão dos dados epidemiológicos e clínicos disponíveis na literatura, serão apontadas algumas dificuldades metodológicas inerentes às próprias pesquisas em SM.

 

A QUESTÃO DO USO DE ANTIDEPRESSIVOS EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES - A CONTROVÉRSIA DA "SUICIDABILIDADE"

Wegner12 relata que:

Em setembro de 2004, o Comitê Consultivo Pediátrico da Food and Drug Administration (FDA) advertiu à FDA para requerer aos fabricantes de AD a inclusão nas bulas dos medicamentos de uma advertência - o black box warning - sobre o aumento do risco de suicidabilidade das populações pediátricas em uso de AD. Isso soou como um alarme.

Essa advertência teve várias conseqüências entre o público, a mídia, mas principalmente entre a comunidade pediátrica e entre os médicos de cuidados primários de crianças, com relação às condutas terapêuticas e recomendações para monitoramento com controle mais assíduo dos casos em tratamento. A comunidade psiquiátrica, por sua vez, se viu indagada sobre quais as razões para esse achado e se pôs a trabalho, como será visto.

Conforme Birmaher e Brent11, análises conduzidas pela British Medical Healthcare Product Regulatory Agency (MHRA) e pela FDA mostraram risco aumentado de 1.8, ou seja, duas vezes maior de suicidabilidade (emergente ou agravada em ideação ou conduta suicida) nas populações pediátricas em uso de AD comparadas a placebo. Isto significa a média de risco de suicidabilidade de 4% com drogas contra 2% com placebo, em ensaios com 4.300 pacientes.

Críticas metodológicas às definições de "suicidabilidade"

Leslie et al.7 relatam as informações que foram disponíveis para o Comitê Consultivo Pediátrico da FDA, cujo material foi recebido de três fontes:

a) Testemunhos narrativos de famílias, profissionais de saúde e consumidores;

b) Dados classificados pela Universidade de Colúmbia e reanalisados pela FDA;

c) Dados do Estudo TADS (Estudo dos Tratamentos para Adolescentes com Depressão): feito com pacientes de 12 a 17 anos com diagnóstico de MDD, em tratamentos com fluoxetina comparados com placebo.

Esses autores tecem várias considerações acerca das evidências e das controvérsias a elas relacionadas, entre as quais:

eventos sugestivos de possível suicidabilidade foram caracterizados sob o termo "labilidade emocional." A FDA requereu à indústria farmacêutica (fabricantes da paroxetina Glaxo-SmithKline) que separasse todos os termos sugestivos da ideação suicida, tentativas ou execução do ato.

Os autores apontam falta de uniformidade metodológica nos estudos, destacando que as definições de "suicidabilidade" não foram padronizadas nos diferentes estudos. O Comitê Consultivo Pediátrico da FDA sugeriu o desenvolvimento de esquema padronizado para reclassificar todos os eventos adversos sugestivos de suicidabilidade.

Leslie et al.9 relatam ainda as recomendações do Comitê relativas a pesquisas e regulamentos, entre as quais:

garantia, para a FDA, de independência, autoridade e liberdade de influência econômica e política para exigir ensaios de drogas de alta qualidade.

alertam que, devido à raridade desse tipo de eventos adversos, "estudos provavelmente não serão conduzidos pelas companhias farmacêuticas individualmente e vão requerer substancial suporte fiscal e científico dos Institutos Nacionais de Saúde".

De passagem, pode-se verificar que os Comitês científicos têm visão ampla e rigor que lhes permitem perceber a extensão do problema quanto ao financiamento das pesquisas, o que não significa necessariamente que esses problemas possam vir a ter alguma solução, mesmo em médio a longo prazo.

Cipriani et al.14, em referência a três estudos citados, fazem críticas metodológicas:

estudos controlados randomizados incluíram populações de pacientes selecionados seguidos por pequenos períodos de tempo - a variável de saída não foi identificada: especificamente se suicídios completos ou tentativas.

um diagnóstico de "depressão unipolar" não foi requisito para inclusão na revisão, então foram pesquisadas diferentes populações de pacientes.

a falta de randomização aumenta o problema da confusão pelas indicações porque médicos preferencialmente prescrevem SSRIs com bases seguras para pacientes com risco de suicídio. Apesar dos autores advertirem estatisticamente sobre esse potencial de confusão, a possibilidade de outras variáveis conhecidas ou desconhecidas pode ter agido de maneiras imprevisíveis que não puderam ser listadas.

Ou seja, os autores admitem a possibilidade de outras variáveis conhecidas ou desconhecidas poderem se ocultar sob esse potencial de confusão.

A "confusão bipolar"

Reexaminando mais atentamente a questão principal, reporta-se às contribuições trazidas por Berk e Dodd11. Esses autores trazem dados epidemiológicos sobre depressão que eles intitulam "confusão bipolar." Pode-se observar sua preocupação com as dificuldades clínicas para a detecção precoce de bipolaridade, cuja apresentação inicial mais freqüente é como depressão unipolar:

a idade de início da BD (depressão bipolar) é na adolescência, mais precoce que a MDD unipolar. Recentes estudos sugerem que a BD seja muito mais comum do que anteriormente se pensava.

na BD, sintomas de depressão são mais prevalentes que sintomas de mania.

Para acrescentar, esses autores citam Judd et al.:

os sintomas depressivos variam de 32 a 50%, enquanto que os sintomas maníacos ou hipomaníacos variam de 1 a 9% e sintomas cíclicos ou mistos de 6 a 12%.

a proporção de depressão para mania na BD tipo I é de 3:1, enquanto que na BD tipo II é de 47:1.

além disso, o primeiro episódio de apresentação da bipolaridade é mais freqüentemente depressão do que mania ou hipomania.

Ainda segundo Berk e Dodd11:

usando os atuais critérios diagnósticos, um episódio de mania ou hipomania é necessário para diferenciar depressão unipolar da bipolar. Mesmo se mania ou hipomania estiverem presentes, o diagnóstico de bipolaridade é muito difícil, ocorrendo substanciais atrasos no diagnóstico.

erros diagnósticos ocorrem em 69% dos casos e 35% dos pacientes têm atraso de até 10 anos para o diagnóstico correto ser feito.

existem várias razões para a dificuldade no reconhecimento da mania e hipomania. Os pacientes geralmente ignoram ou não dão importância aos sintomas de mania. Mania é agradável quando moderada e pode estar até relacionada com melhora da performance. É raramente tratada, a menos que grave.

ela pode se apresentar com sintomas que se sobrepõem aos de ADHD na infância e condutas disruptivas se confundem com transtornos de personalidade (diagnóstico diferencial).

co-morbidades tais como abuso de substância e sintomas de ansiedade freqüentemente confundem o diagnóstico.

cerca de 30% dos pacientes com mania têm episódios mistos. Isto é claramente mais complexo para diagnosticar, especialmente em cuidados primários. Pelo menos parte da razão para isto é que a queixa primária nos estados mistos é de humor deprimido, apesar de que esses estados mistos são conceituados como uma variante da mania e deveriam ser tratados assim. Tratar estados mistos com AD pode agravar o episódio, aumentando a agitação psicomotora, inquietação e impulsividade inerentes à condição, especialmente em crianças.

Implicações clínicas, segundo Berk e Dodd11

As conseqüências dos erros diagnósticos podem ser substanciais.... A questão chave é terapêutica, com diagnóstico incorreto levando a uma terapia inapropriada.11

Assim, observa-se uma séria preocupação acerca de como está sendo realizada a prática clínica atual nos cuidados primários, quando os autores se perguntam: "a um jovem apresentando um episódio de depressão é provável se dar um AD. Até que se prove o contrário (?) é assumido que esse jovem sofra de depressão unipolar."

Quando os autores perguntam: "até que se prove o contrário?", é preciso lembrar o que eles próprios já haviam dito: "usando os atuais critérios diagnósticos, um episódio de mania ou hipomania é necessário para diferenciar depressão unipolar da bipolar." Ou seja, reconhecem que o diagnóstico só é possível retroativamente depois que as evidentes aparências fenomenológicas se manifestarem.

Este é o grande "calcanhar de Aquiles" da clínica em SM, a dificuldade para o estabelecimento de uma suspeita diagnóstica precoce - quando as evidências fenomenológicas se apresentam num momento posterior à eclosão das idéias de suicidabilidade. Vários autores se debruçam sobre esta questão, como será visto a seguir.

Akiskal et al.7 sugerem até mesmo mudanças nos critérios nosológicos atuais, fundadas na aproximação entre a chamada "depressão agitada" e os "estados mistos", que são caracterizados por agitação psicomotora, taquipsiquismo, humor disfórico, irritabilidade e hostilidade que podem ser seguidos por uma evolução com auto ou heteroagressividade.

Retomando Berk e Dodd11, vê-se que esses autores, como Akiskal et al.7, também apontam a associação entre suicidabilidade e estados mistos e ciclagem rápida, no tipo de pacientes que eles denominam indivíduos "suscetíveis." Citando-os:

temos crescentes dados de que o AD é capaz de induzir mania, estados mistos e ciclagem rápida em indivíduos "suscetíveis". Complicando este fato, as manias induzidas pelos ADs são mais disfóricas do que eufóricas, com sintomas concorrentes resultando em mania mista. Isto aumenta a impressão de que a disforia e irritabilidade induzidos pelo AD continuariam vistas como parte da depressão.

uma característica bem documentada dos estados mistos é que a suicidabilidade é particularmente comum.

outra questão com AD é que estudos de sua eficácia são muito mais ambivalentes na BD que na depressão unipolar em relação aos níveis de resposta e ao início abrupto do efeito.

metodologicamente: Berk e Dodd 11 citam Post et al., que descobriram que 80% dos ensaios continuados terminaram antes do pretendido final de um ano.

discutindo a associação entre suicidabilidade e tratamento de AD, surgiu a idéia de que os ADs podem produzir uma "síndrome de ativação".

Critérios diagnósticos de "bipolaridade" e suas implicações práticas

Observa-se que os mesmos autores, Akiskal et al.7, já propunham, em 2000, a categoria nosológica bipolar tipo III dentro do espectro da bipolaridade, correspondendo ao quadro de viragem maníaca desencadeada pelos antidepressivos.

Berk e Dodd11 sugerem que esses sintomas podem estar associados a uma BD não-diagnosticada, assim como a ataques de pânico e ansiedade, o que corrobora a digressão feita neste trabalho sobre o borramento entre as categorias diagnósticas das modernas classificações.

Seguem-se a discussão e conclusão desses autores:

esta hipótese levanta um número de questões. Qualquer jovem apresentando depressão necessita ser ativamente investigado acerca da presença de bipolaridade. Isto inclui não somente uma história prévia de mania ou hipomania, mas é necessário investigar pistas mais sutis que predizem bipolaridade.

estas incluem: uma história familial positiva, depressão atípica com hipersonia ou hiperfagia, início e término abrupto dos episódios, alta recorrência ou padrão cíclico, temperamento hipertímico ou ciclotímico, presença de características psicóticas, proeminente lentificação psicomotora, mania induzida por AD, estados mistos e tolerância ao AD manifestada como perda da ação antidepressiva. Existem instrumentos de triagem que podem auxiliar no reconhecimento da bipolaridade.

Nesta última afirmação citada pode-se observar aparente contradição com Akiskal et al.7, quando os autores incluem entre as "pistas mais sutis que predizem bipolaridade" tanto uma proeminente lentificação psicomotora quanto uma mania induzida por AD. Akiskal et al.7 relacionam apenas os quadros de agitação psicomotora da chamada "depressão agitada" com os estados mistos, que fariam parte do espectro da bipolaridade.

Berk e Dodd11 finalizam:

os critérios diagnósticos do DSM-IV 3 são extensos para MDD e restritivos para BD.

a prática corrente encoraja o médico a assumir que a condição do paciente é unipolar e a tratála com AD.

Assim, vê-se que esses autores sugerem investigar "pistas mais sutis que predizem bipolaridade", incluindo nestas a presença de "características psicóticas".

Akiskal et al.7 afirmam que a "depressão bipolar-I mista freqüentemente tem agitação psicomotora, humor irritável, fala premente, fuga de idéias e psicose."

Finalizando, Berk e Dodd11 concordam com Akiskal et al.7 na proposta de uma associação de suicidabilidade com bipolaridade, chegando a questionar inclusive o estatuto nosológico da antiga conhecida e recentemente denominada "síndrome de ativação" ("aumento da energia antes da melhora do humor"), correlacionando-os com "um grau significante de erros diagnósticos nesta população".

Akiskal et al.7 afirmam: "estas observações não necessariamente implicam que os ADs sejam causativos, mas talvez agravantes de um estado depressivo misto agitado preexistente, resultando na chamada "síndrome de ativação."

Esses autores denunciam que "a falha em nossa nosologia formal (i.e., DSM-IV3 e CID-104) em reconhecer a natureza bipolar dos estados depressivos mistos" pode levar a implicações clínicas importantes". Como dito anteriormente, a prática clínica encoraja o médico a assumir que a condição do paciente é unipolar e a tratá-la com AD.

Por isso, segundo Akiskal et al.7, "a nosologia falha em proteger pacientes pseudo-unipolares da monoterapia com AD, que é inapropriada para esses pacientes ."

 

A EVOLUÇÃO QUALITATIVA DAS IDÉIAS DE AUTO-EXTERMÍNIO (AE)

O que os autores não falam acerca das características psicóticas é se elas necessariamente precederiam em sua apresentação às idéias de AE. Essas características necessitariam se apresentar francamente declaradas ou manifestadas? Todas as manifestações referidas são de ordem fenomenológica, não tendo sido colocada em questão a evolução qualitativa das idéias de AE.

São sugeridos instrumentos de triagem, tais como as escalas de avaliação de Beck et al. (1961)5, Hamilton (1960)6 e outras para reconhecimento de bipolaridade e para avaliação quantitativa do índice de gravidade da depressão, medida objetivável pela clínica do olhar pela visibilidade das aparências. Não são colocados em questão os conceitos e critérios de "suicidabilidade" ou avaliados os fatores de risco envolvidos.

Como se desenvolvem estas idéias de AE?

Seria por um aprofundamento em intensidade ou gravidade do estado de humor depressivo? Akiskal et al.7 desenvolvem a idéia de que a piora da doença depressiva pelos ADs em alguns pacientes pode ter como substrato psicopatológico um estado depressivo misto agitado e, portanto, consideram que seja este "o substrato psicopatológico das tentativas e de suicídios completados".

Segundo Akiskal et al.7, "a condição clínica dos pacientes, presente no momento em que se tornaram suicidas enquanto usavam AD, é geralmente um estado de ativação que foi conhecido por várias décadas ("aumento da energia antes da melhora do humor"), mas só recentemente foi chamada "síndrome de ativação." A respeito dos conceitos e critérios de "suicidabilidade", esses autores admitem especificamente como uma limitação do seu estudo: "Não foi usada escala para ideação suicida."

Pacientes "predispostos", "vulneráveis" ou "suscetíveis"

Em sua discussão, os autores reconhecem que "suicidabilidade" é "um conceito heterogêneo envolvendo ideação, para-suicídio, tentativas sérias e suicídio completo. A transição da ideação para o suicídio depende de vários fatores." 7 Infelizmente, não entram no mérito da questão de quais os fatores qualitativos poderiam estar envolvidos.

Pode-se verificar que se ignora (se omite), ou pelo menos se minimiza, nas pesquisas, a avaliação qualitativa da suicidabilidade. Como este quadro (suicidabilidade emergente aos ADs) já parte do fato do uso prévio dos ADs como indutores de uma "síndrome de ativação" ou de uma bipolaridade latente ou incipiente que tivesse sido desencadeada pelo uso da droga, entende-se que a partir do uso prévio de uma intervenção psicofarmacológica (o uso do AD, que condiciona o aparecimento do quadro), a esta altura não caberia mais questionar ou controlar as variáveis dos fatores reativos, psicogênicos ou situacionais intervenientes nessas pesquisas. Isso absolutamente não exclui a preexistência e a continuidade da interveniência desses fatores qualitativos na emergência da suicidabilidade.

Em relação aos critérios ou fatores de risco para suicidabilidade, observa-se que vários trabalhos geralmente se referem a esse potencial que poderia se desenvolver em pacientes "predispostos" ou "vulneráveis" ou "suscetíveis." Essa predisposição, vulnerabilidade ou suscetibilidade só é encarada por esses autores como existente no bojo de uma doença bipolar, como seu "substrato psicopatológico", o que pressupõe o paradigma anatômico das neurociências.

O que significa "melhorar a prática clínica"?

Os autores admitem a possibilidade de que a falha na nosologia levaria a erros diagnósticos. Estes, por sua vez, induziriam a erros terapêuticos.

No editorial da MJA, Rey e Duddley2, membros do Comitê consultivo da Lilly e da Jansen-Cilag, afirmam que estamos superficiais para prescrever os SSRIs, que isso "não é causa para pânico, mas um incentivo para melhorar a prática clínica". Finalizando, afirmam genericamente: "até que as ambigüidades sejam resolvidas, acreditamos que os SSRIs (principalmente fluoxetina) devem ser considerados, mas somente para depressão grave, quando ela produz séria incapacidade e falha a resposta ao tratamento psicossocial por algumas semanas."

Conclusão e comentários

Desde que os interesses competidores dos autores tenham sido declarados abertamente, isso significa que já se sabe o que fazer? Seria somente melhorar os critérios diagnósticos estatísticos dentro dos moldes de pesquisa quantitativos como já descritos?

A partir desta indagação mais ampla no que diz respeito ao diagnóstico: o que significa "melhorar a prática clínica"? - defendemos recentemente (06/06/07), na Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente, em caráter (inicialmente) de Mestrado, uma proposta de ensino para a relação médico-paciente fundada no que se denomina "escuta diagnóstica". Essa proposta é uma estratégia para o estabelecimento de hipóteses diagnósticas qualitativas precoces em Saúde Mental, a partir das estruturas clínicas estabelecidas pela Psicanálise lacaniana.

A "escuta diagnóstica", ou seja, a investigação diagnóstica qualitativa possibilitada por um tipo especial de técnica da colheita da história de vida, propicia uma relativa desobrigação da função terapêutica que geralmente se atribui à escuta psicanalítica, sem desresponsabilizar o médico pelo acompanhamento dos pacientes em médio e a longo prazo. Ao permitir o estabelecimento de uma hipótese diagnóstica precoce, dá ao médico segurança para a abordagem do paciente ao longo do tempo, mesmo se houver necessidade de encaminhamento paralelo do caso, mantendo a continuidade do atendimento pelo clínico de origem.

 

REFERÊNCIAS

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