ISSN (on-line): 2238-3182
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CAPES/Qualis: B2
Encefalite herpética em lactente: relato de caso
Infant herpetic encephalitis in a suckling: case report
Lívia Carvalho Rodrigues
Médica Neurologista da Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência-São Paulo-SP
Endereço para correspondênciaRua: Dr. Eduardo Amaro,99, apto1901 Bairro Paraíso
São Paulo - SP CEP: 04104080
Resumo
A encefalite herpética é definida como um processo inflamatório agudo do parênquima encefálico em conseqüência da infecção pelo vírus herpes simples. O presente trabalho refere-se a um caso de encefalite herpética em lactante de um ano e oito meses de idade após quadro de infecção das vias aéreas superiores, que evoluiu com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. O objetivo do estudo é demonstrar a necessidade do diagnóstico precoce, em que o uso de drogas antivirais específicas contribui para o prognóstico do paciente.
Palavras-chave: Encefalite; Encefalite por Herpes Simples; Simplexvírus; Herpes Simples
INTRODUÇÃO
As infecções pelo vírus herpes simples (HSV), no homem, têm sido documentadas desde a Grécia Antiga e a palavra herpes, que é de origem grega, significa rastejamento, descrevendo as lesões vesiculares em pele, de contorno sinuoso e lembrando o percurso efetuado por serpentes.1
A encefalite herpética é definida como um processo inflamatório agudo do parênquima encefálico em conseqüência da infecção pelo HSV.2 Excetuando-se o período neonatal, o agente mais comum é o HSV-1.3 A infecção por este agente causa um tipo de encefalite rapidamente progressiva e fatal, com a morte ocorrendo dentro de uma a duas semanas em cerca de 70% dos pacientes que não são tratados.3,4
A incidência estimada nos Estados Unidos é de uma entre 250.000 e 500.000 pessoas.5
No Brasil, a prevalência é desconhecida devido à falta de notificação. A forma mais comum de apresentação inclui febre (muitas vezes alta), cefaléia intensa, convulsões focais ou generalizas, bem como alterações do comportamento e da consciência.
O objetivo do presente estudo é descrever um caso de encefalite herpética em lactente de um ano e oito meses de idade e demonstrar a necessidade de um diagnóstico precoce para que se instale a terapêutica específica antiviral antes que o quadro se torne irreversível.
RELATO DO CASO
L.F.P., lactente de um ano e oito meses de idade, sexo masculino, foi internado na Santa Casa de Misericórdia de Itajubá, na manhã do dia 21/05/03.
A partir da anamnese dirigida, a mãe relatou que há dois dias a criança apresentava quadro de fraqueza muscular de membros superior e inferior direitos e foi levada ao Pronto-Socorro do Hospital Escola de Itajubá para consulta, a seguir liberada por não ter sido encontrada alteração. No dia seguinte, apresentava-se prostrada, chorosa, afebril e com vômitos. Foi medicada com paracetamol pelo pediatra do posto de saúde, que suspeitou de "virose" (sic). Em casa, à noite, a mãe relatou que o lactente apresentou desvio de rima labial e desvio de olhos para cima. Logo pela manhã do dia 21/05/03, foi atendido no posto e encaminhado, com urgência, para a Santa Casa de Itajubá, com quadro de crise convulsiva. Havia também história recente (três semanas antes) de infecção de vias aéreas superiores e otite média aguda à direita, tendo sido medicado com amoxacilina via oral por cinco dias.
À admissão, o lactente encontrava-se com estado geral ruim, cianose perioral, má-perfusão periférica, desidratação grau II, pupilas fotorreagentes. Logo em seguida, apresentou crise convulsiva tônico-clônica de difícil controle. Foi transferido para a UTI com hipótese diagnóstica de meningite. Os exames iniciais de urina, radiografia, hemograma, ionograma, uréia, creatinia, glicemia e líquor estavam normais. Foi solicitada tomografia computadorizada de crânio (TCC), que revelou edema celebral difuso.
À noite, ao exame da neuropediatria, a criança encontrava-se consciente, hemiparética e hipertônica à direita, sem sustentação da cabeça e com retropulsão do tronco. As pupilas estavam isocóricas e o reflexo fotomotor presente. Foi solicitada tomografia contrastada de crânio, a qual evidenciou áreas de hipodensidade difusamente distribuídas bilateralmente no parênquima. A hipótese diagnóstica foi de infecção, provavelmente viral. Pela gravidade do quadro clínico, pensou-se em encefalite herpética. Foi prescrita terapia específica antiviral com aciclovir e solicitada ressonância nuclear magnética (RNM) para elucidação diagnóstica. A RNM do encéfalo demonstrou a presença de lesões corticais e da substância branca, sugerindo edema. Esses achados podem ser encontrados em: encefalites virais, vasculite, embolia e, menos freqüentemente, em encefalomielites pós-virais.
Com uma semana de internação, à tomografia, o processo inflamatório localizou-se predominantemente em região têmporo-parietal direita e em pequenas áreas nos lobos frontais e parietais esquerdos (fase edematosa da infecção por HSV). A encefalite herpética continuou sendo a hipótese diagnóstica mais provável.
No 15º dia de internação, a tomografia de controle demonstrava área hiperdensa em região têmporo-parietal direita no mesmo local que o exame anterior evidenciava região hipodensa, correspondendo a possível área hemorrágica cortical (fase hemorrágica). Apresentava também aumento dos sulcos corticais e diminuição global dos giros (atrofia).
Durante a internação na UTI, a criança apresentou crises convulsivas de difícil controle e infecção secundária de provável localização pulmonar, tratadas adequadamente. Foi também submetida à avaliação cardiológica e reumatológica, que afastaram as hipóteses de embolia e vasculites, respectivamente. Com a estabilização do quadro, foi realizado eletroencefalograma (EEG), demonstrando-se depressão difusa da atividade elétrica cerebral de forma assimétrica, sendo mais intensa no hemisfério direito.
O paciente recebeu alta da UTI no 27º dia de internação, apresentando grave regressão no desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM), com hipotonia generalizada, pobre contato visual e auditivo, poucos movimentos espontâneos e sinais de liberação piramidal generalizada.
Ficou internado na enfermaria da pediatria por mais dias, mantendo-se o quadro clínico. Recebeu alta com prescrição de anticonvulsivante oral.
Um mês após a alta hospitalar, a tomografia de controle revelava áreas hipoatenuantes extensas, bilaterais, mais evidentes no hemisfério cerebral direito, correspondendo a regiões de isquemia/gliose, observando-se também atrofia cortical difusa e dilatação ventricular "ex-vácuo", sendo tais alterações compatíveis com encefalite herpética. Dois meses após a alta, apresentava melhora lenta das aquisições motoras perdidas. Não se sentava sem apoio, não articulava palavras e não conseguia pegar objetos. Já sustentava a cabeça e interagia com o meio pela visão e aparentemente pela audição. Encontrava-se em tratamento multidisciplinar com Fisioterapia, Psicologia e Fonoaudiologia. Ainda fazia uso de anticonvulsivantes orais.
DISCUSSÃO
A infecção pelo HSV tem distribuição mundial, sem variação sazonal e sem associação a vetores.6 Existem dois tipos antigênicos do HSV, os vírus do herpes simples tipo 1 (HSV-1), que estão mais associados a infecções extragenitais e são responsáveis por 95% dos casos de encefalite, e os vírus do herpes simples tipo 2 (HSV-2), que geralmente estão relacionados com infecções genitais e são os causadores da meningite asséptica.1
Os HSVs são transmitidos por secreções de um individuo infectado para o hospedeiro susceptível, através de contato íntimo. A apresentação do vírus no organismo é feita a partir do epilético (mucosa ou pele lesada).1 Estima-se que aproximadamente 85% da população adulta tenham sorologia positiva para o HSV-1, adquirida assintomaticamente na infância.7 O caso apresentado refere-se a uma complicação rara da infecção por HSV, a encefalite herpética, que é conseqüência da transmissão neurogênica do vírus para o cérebro.1,8 Trata-se de um lactente que, após quadro de infecção das vias aéreas superiores, apresentou sinais de encefalite viral. Nem toda primo-infecção por HSV-1 se apresenta como gengivo-estomatite, podendo a manifestação primária ser uma faringo-amigdalite.1
A verificação de hemiparesia e de crises convulsivas marca o início das anormalidades neurológicas decorrentes da infecção e se explica por lesões focais difusas encontradas no encéfalo.1,5
A ausência de febre no quadro clínico inicial dificultou a investigação diagnóstica, uma vez que esse sintoma ocorre em 90% dos casos.5
O exame liquórico normal não exclui encefalite herpética, pois o líquido cefalorraquidiano (LCR) encontra-se inalterado em 10 a 15% dos casos.3,9
A TCC e a RNM são quase sempre normais, podendo mostrar apenas edema difuso nas fases mais inicias. Na encefalite herpética, em mais da metade dos casos, após os primeiros dias de evolução, esses exames podem demonstrar lesões necróticas e hemorrágicas do lobo temporal, uni ou bilateralmente, de excepcional valor diagnóstico, sendo o HSV-1 o único agente viral com tropismo para os lobos temporais capaz de provocar lesões necróticas e hemorrágicas.1,6,9,10
O EEG, sempre alterado, revela basicamente sinais de sofrimento difuso associados ou não à atividade irritativa.6,9 Sua utilidade principal é localizar a área de maior envolvimento.3
A biópsia cerebral, antes considerada o exame diagnóstico definitivo para encefalite pelo HSV, foi, em grande parte, ultrapassada pela introdução da reação em cadeia de polimerase (PCR) do líquor (detecção do vírus no LCR).3,5,11 Esse exame não pôde ser realizado pelo fato de somente ser disponível em grandes centros.
O tratamento específico da encefalite herpética consiste na administração de antiviral, sendo o aciclovir a droga mais eficaz. Seu uso reduz significativamente a taxa de mortalidade e a intensidade dos déficits neurológicos residuais quando instituído no início da doença.1,6,9,11,12 Assim sendo, recomenda-se que essa droga seja administrada nos casos suspeitos mesmo sem comprovação etiológica, podendo vir a ser suspensa em caso de mudança de diagnóstico.5,9
Extensos danos residuais costumam apresentar-se nos sobreviventes, evidenciando-se, comumente, paralisias parciais e retardo mental.1
CONCLUSÃO
A avaliação clínica foi de muita importância para a suspeita diagnóstica. Os exames de neuroimagem, no início, serviram para orientar quanto aos diagnósticos diferenciais e, a partir da primeira semana de internação, confirmaram o diagnóstico.
Conclui-se então que o caso em estudo poderia ter tido evolução fatal se não tivesse sido instituída precocemente a terapia específica com antiviral.
REFERÊNCIAS
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11. Botet AP, Otero MC, Perez TD, Ridaura S, Cordoba J, Menor F. Meningoencefalites virales. Rev Enfermid Infecc Pediatr. 2000 abr/jun;13(52):372-6.
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