RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 17. 3-4

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Relato de Caso

Necrose membranosa de tecido adiposo em retroperitônio

Membranous fat necrosis in retroperitoneum

Patrícia Salomé Gouvea1; Dairton Miranda2; Paulo Guilherme de Oliveira Salles3

1. Anatomopatologista, Patologista do Laboratório Dairton Miranda e do Hospital Biocor (Belo Horizonte - MG)
2. Anatomopatologista, Diretor Técnico dos Laboratórios Dairton Miranda e do Hospital Biocor (Belo Horizonte - MG)
3. Anatomopatologista, Mestre em Patologia Médica pela Faculdade de Medicina da UFMG

Endereço para correspondência

Dr. Paulo Guilherme de Oliveira Salles
Rua: Pitangueiras, nº 554
Belo Horizonte - MG CEP: 30350-200
E-mail: paulogsalles@yahoo.com

Laboratório Dairton Miranda e Hospital Biocor (Belo Horizonte - MG)

Resumo

É relatado o caso de paciente de 63 anos com imagem cística heterogênea no rim direito, submetido à nefrectomia radical e, no mesmo tempo cirúrgico, à exploração do retroperitônio, no qual foi encontrado nódulo cujo estudo anatomopatológico permitiu o diagnóstico de necrose membranosa do tecido adiposo. Os autores discutem aspectos desta entidade tais como freqüência, patogênese, apresentação clínica, histopatologia, diagnóstico diferencial e evolução, como observados na literatura.

Palavras-chave: Necrose Gordurosa/diagnóstico; Espaço Retroperitonial/lesões; Espaço Retroperitonial/patologia; Tecido Adiposo; Gordura Intra-Abdominal

 

INTRODUÇÃO

A necrose membranosa do tecido adiposo é condição relativamente rara, com aproximadamente 25 relatos na literatura internacional e sem publicações brasileiras1. O achado histopatológico característico é representado pela necrose do tecido adiposo associada ao aparecimento de membrana eosinofílica, espessa, ondulada e de aspecto granular, de natureza ceróide, com ou sem a formação de cistos. Essa forma peculiar de necrose surge associada a condições diversas - trauma, radioterapia, vasculites, entre outras - e tem sua morfologia ainda não amplamente reconhecida e patogênese questionada.1,2 O objetivo deste relato é contribuir para o reconhecimento dessa lesão e de suas características fundamentais, bem como seu diagnóstico diferencial.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 63 anos de idade, submetido à marsupialização de cisto renal há quatro anos, relatando episódios pouco freqüentes de cólica nefrética à direita nos últimos seis meses, que piorava aos esforços mínimos. Ao exame físico não apresentava alterações significativas, assim como ao exame do sedimento urinário e urocultura. A ultra-sonografia e a tomografia computadorizada mostravam cisto de padrão heterogêneo, com áreas sólidas e císticas multiloculadas, no pólo superior do rim direito (Bosniak IV). Mediante o achado dos exames de imagem, optou-se por nefrectomia radical direita, pela possibilidade de neoplasia maligna. O procedimento cirúrgico transcorreu sem intercorrências, sendo realizada, além da nefrectomia, exérese de nódulo no retroperitônio medindo aproximadamente 1,2 cm de diâmetro. A evolução pós-operatória foi satisfatória.

O exame anatomopatológico mostrou, em correspondência à área observada nos exames de imagem, processo inflamatório agudo e crônico, inespecífico, com esteatonecrose associada, acometendo o rim e os tecidos moles adjacentes, sem evidências de neoplasia. O nódulo retroperitoneal media 1,2 cm em seu maior diâmetro e apresentava coloração pardo-clara. Ao corte revelava aspecto cístico com conteúdo amarelado, de aspecto untuoso. À microscopia, a lesão era constituída por tecido conectivo fibroso e adiposo, revestido por membrana eosinofílica espessa, de aspecto granular, ondulada, contínua e relativamente uniforme e em certas áreas com aspecto pseudopapilar, compatível com o diagnóstico de necrose membranosa cística do tecido adiposo. Havia inflamação crônica fibrosante na periferia do cisto, bem como esboço de reação giganto-celular tipo corpo estranho; não se observou neoplasia (Figuras 1A a D).

 


Figura 2 - A: Fotomicrografia (Hematoxilina-Eosina, 40X) mostrando lesão cística multisseptada, contornada por tecido fibroconectivo e adiposo, revestida por membrana serpiginosa; B: Fotomicrografia exibindo cisto revestido por membrana ondulada (à direita) e infiltrado inflamatório mononuclear com esboço de granuloma no tecido adiposo adjacente (HE, 100X); C e D: Aumentos maiores destacando a membrana ondulada, granular e com formações pseudopapilíferas, revestindo parede fibrosa (HE, 200X e 400X).

 

DISCUSSÃO

Necrose membranosa do tecido adiposo constitui terminologia usada pela primeira vez por Popitti et al.3 para caracterizar lesões subcutâneas císticonodulares na parede torácica de um paciente, cujo estudo anatomopatológico revelou variante de necrose de tecido adiposo representada por esteatonecrose associada à formação de espaços císticos revestidos por membrana de aspecto peculiar, serpiginosa, semelhante à cutícula de certos parasitas, exibindo reações histoquímicas que permitiam estabelecer sua natureza ceróide (colorações pelo Sudan negro, Ziehl-Neelsen e PAS - ácido periódico de Schiff - positivas). O ceróide foi descrito inicialmente como um pigmento acastanhado observado no fígado de ratos submetidos à dieta com baixos teores de gordura e proteína4, sendo constituído por complexo de ácidos graxos insaturados polimerizados e oxidados, com carboidratos, proteínas, colesterol e fosfolipídios. Apresenta característica morfológica e histoquímica semelhante à lipofuscina, diferindo desta por ser usualmente extracelular e associado a condições patogênicas.5 O aspecto histológico da lesão mostra dois padrões fundamentais, cístico e não-cístico. O primeiro, mais característico, é composto de cistos que variam de 0,2 a 1,5 cm, formados por parede fibrosa revestida parcial ou completamente por membrana eosinofílica espessa, freqüentemente ondulada, crenada e que por vezes demonstra formações pseudopapilíferas; o segundo consiste em adipócitos não-nucleados que têm sua membrana celular substituída por membrana eosinofílica, espessada e às vezes ondulada2,3. Essa variante especial de necrose do tecido adiposo já havia sido descrita, mas não assim denominada, por Nasu et al.6, na medula óssea e no tecido adiposo de vários órgãos, em pacientes portadores de uma forma sudanofílica de leucodistrofia cerebral.

A lesão em questão não representa doença ou se relaciona de maneira específica a determinada doença1, tendo sido observada e descrita em associação a traumatismos, radioterapia, vasculites, paniculites, isquemia, à presença de corpos estranhos no subcutâneo, infecção por micobactérias, neoplasias (e.g. lipomas e teratomas ovarianos), diabetes, doenças sistêmicas dos tecidos conectivo, adiposo, da pele e outras formas inespecíficas de inflamação7,8,9,10. Macroscopicamente, pode ser confundida com neoplasia e, microscopicamente, com material de origem parasitária (cisticerco, por exemplo).1,2,3 A etiopatogênese do processo ainda não foi estabelecida, mas acredita-se que processos isquêmicos ou resposta a traumatismos sejam as causas fundamentais.1,2,3,6,10

 

CONCLUSÃO

O conhecimento dessa lesão, de seu diagnóstico diferencial e das condições associadas, junto ao contexto clínico dos pacientes, poderia resultar na redução de procedimentos diagnósticos invasivos.

Agradecimentos

Ao Dr. Emílio Marcelo Pereira (São Paulo - SP), pela enriquecedora discussão sobre o tema.

 

REFERÊNCIAS

1. Fernandez-Lopez E, Pena-Penabad C, Garcia Silva J, De Unamuno P. Membranous fat necrosis: a non-specific histological finding. Eur J Dermatol. 2002;12(1):82-4.

2. Coyne JD, Parkinson D, Baildam AD. Membranous fat necrosis of the breast. Histopathology. 1996;28(1):61-4.

3. Poppiti RJ Jr, Margulies M, Cabello B, Rywlin AM. Membranous fat necrosis. Am J Surg Pathol. 1986;10(1):62-9.

4. Lillie RD, Ashburn LL, Sebrell WH. Histogenesis and repair of hepatic cirrhosis in rats produced on low protein diets and preventable with choline. Pub Health (US) 1941;57:502-9.

5. Hartroft WS, Porta EA. Ceroid. Am J Med Sci. 1965;250:324.

6. Nasu T, Tsukahara Y, Terayama K. A lipid metabolic disease - "membranous lipodistrophy": An autopsy case demonstrating numerous peculiar membranous- structures composed of compund lipid in bone marrow and various adipose tissue. Acta Pathol Jpn. 1973;32:539-58.

7. Ramdial PK, Chetty R. Vasculitis-induced membranous fat necrosis. J Cutan Pathol. 1999;26(8):405-10.

8. Ramdial PK, Jogessar V, Dada MA. Membranous fat necrosis due to subcutaneous elemental mercury injections. Am J Forensic Med Pathol. 1999;20(4):369-73.

9. Ramdial PK, Bagratee JS. Membranous fat necrosis in mature cystic teratomas of the ovary. Int J Gynecol Pathol. 1998;17(2):120-2.

10. Ahn S, Yoo M, Lee S, Choi E. A clinical and histopathological study of 22 patients with membranous lipodystrophy. Clin Exp Dermatol. 1996;21(4):269-72.