ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Transplantando vidas
Agnaldo Soares Lima
Entre as diversas maravilhas que a ciência trouxe ao homem, em seu afa de viver mais e melhor, a técnica para substituição de um órgao doente por outro sadio reúne impressionantes características bivalentes. Se, por um lado, suas primeiras alusões remontam à mitologia, seu presente e seu futuro estao intimamente ligados ao que há de mais moderno em tecnologia, fundamentados no crescente conhecimento por meio da biologia molecular. Figuras esquizoides lendárias, que combinavam partes de humanos e de animais, são parte do nosso conhecimento cultural. Mas seriam o Minotauro e Acteon apenas representações da punição dos deuses ou uma mal compreendida premonição figurada dos xenotransplantes? Imagem menos provocante e mais instigante, a passagem bíblica de São Cosme e São Damiao representa um verdadeiro transplante, da forma como o vemos hoje: um doador falecido anônimo permite reestabelecer a função de um membro perdido. Dessa passagem extraem-se, ainda, mensagens implícitas e pouco repercutidas contra racismo e desigualdade, posto que o mouro doador, de pele escura e com atribuída inferioridade social, era quem propiciava a recuperação do santo.
Não menos atordoadoras são as reflexoes filosóficas que se produzem no centro e no entorno dos transplantes. A solidariedade manifestada na doação de órgaos é um encorajamento para mudança desse modelo social em que vivemos, tao voltado para o individualismo. Outras questoes, algo periféricas, mas não menos importantes, referem-se à justiça, à equidade e ao benefício na distribuição de órgaos, bem como ao custo social de terapias tao complexas.
No estado de Minas Gerais são realizados transplantes de córneas, rins, fígado, coração, pâncreas e pulmão. Embora o leque de opções seja quase completo, não há uma performance correspondente no desempenho da atividade no estado. A exceção dos transplantes de córnea e de rim, os demais são realizados em poucos centros transplantadores. O número de doadores recuperados no estado, mercê de esforço contínuo do MG Transplantes, vem crescendo lentamente, mas não ocupa posição competitiva no ranking de eficiência de captação do país. Em 2010, considerando a obtenção de doadores por milhao de habitantes, Minas Gerais ocupou o 8º lugar no transplante renal e o 9º lugar em transplantes de fígado. Em um estado de grandes dimensões e numerosos municípios como Minas, a solução para a questao não é evidente. Entre a melhor organização para captação de órgaos, capacitação de pessoal, reestruturação de centros transplantadores e estímulo ao aparecimento de novos centros, ainda temos um longo caminho a percorrer.
O Hospital das Clínicas da UFMG é o maior centro transplantador de Minas Gerais. Somente na atividade de transplante de fígado, a instituição já superou a marca de 700 transplantes, com reconhecida qualidade, além de produzir teses e artigos científicos publicados em periódicos nacionais e internacionais.
Neste número da Revista Médica de Minas Gerais são abordados alguns aspectos relevantes da atividade de transplante, especialmente de fígado. A migração dos pacientes em busca do tratamento salvador é custosa financeira e socialmente. Mais do que pelo desconforto do deslocamento, pacientes que habitam longe dos centros transplantadores têm acesso mais difícil ao transplante, reduzindo suas chances de alcançar o benefício. Neste número são também apresentados aspectos relativos ao vírus da hepatite C, doença entre as mais importantes das indicações ao transplante de fígado. Finalmente, são apresentadas informações sobre o suporte nutricional, base essencial para a recuperação do paciente submetido a procedimento cirúrgico tao grave, como o transplante hepático.
Nos dias atuais, o elevado número de pacientes transplantados que permeiam consultórios, ambulatórios e serviços de urgência, por motivos alheios ao ato, fazem com que o contato da comunidade médica com a transplantação de órgaos não se resuma aos especialistas. Tendo esse recurso passado de mito à realidade, hoje devemos todos ser partícipes dessa atividade, seja como médicos, difusores da doação de órgaos e do benefício propiciado pelo transplante, seja como potenciais candidatos a dele um dia precisar.
Prof. Agnaldo Soares Lima
Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia da FM-UFMG
Coordenador do Grupo de Transplante - Instituto Alfa de Gastroenterologia - HC/UFMG
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