RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 4

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Artigos de Revisão

Abordagem da nefropatia diabética em pediatria

Management of diabetic nephropathy in pediatric patients

Patrícia P.C.A. Salgado1; Mariana G. Penido2; Augusto César S.S. Júnior2; Munira M. Oliveira2; Nereida F. Santana2; Ana Cristina Simões e Silva3

1. Residente de Endocrinologia e Metabologia do Hospital das Clínicas - UFMG
2. Acadêmicos de Medicina da Faculdade de Medicina - UFMG
3. Professor Adjunto do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina - UFMG. Membro da Unidade de Nefrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas - UFMG

Data de submissão: 13/12/2004
Data de aprovação: 22/11/2005

Resumo

A nefropatia diabética é uma complicação comum em pacientes portadores de diabetes mellitus tipo 1. Sua evolução para insuficiência renal crônica implica aumento na mortalidade, aumento dos gastos com o tratamento e queda na qualidade de vida dos pacientes. Esses aspectos justificam a busca de um melhor entendimento dos fatores associados ao aparecimento e à evolução desta complicação. Faz-se, através deste artigo, uma revisão sobre a abordagem da nefropatia diabética em pediatria. Além disso, serão abordadas questões como fatores de risco e diagnóstico laboratorial dessa patologia.

Palavras-chave: Nefropatias Diabéticas/diagnóstico; Diabetes Mellitus Tipo I/complicações; Fatores de Risco; Recém-nascido; Lactente; Pré-escolar; Criança; Adolescente

 

INTRODUÇÃO

O estudo do acometimento renal no diabetes tem grande interesse prático por sua freqüência e gravidade. Por esse motivo, é surpreendente a escassez de dados estatísticos que indiquem a prevalência da nefropatia diabética (ND) em nosso país. Dentre os habitantes da América do Norte, o diabetes mellitus tipo 1 (DM tipo 1) afeta, aproximadamente, 0,5% da população. A ND está presente em, aproximadamente, 30% dos casos de DM tipo 1. A maioria dos pacientes desenvolve nefropatia em um tempo aproximado de 15 anos de doença, sendo esta a principal causa de mortalidade nesse grupo1.

De um modo geral, as alterações metabólicas induzidas pelo diabetes mellitus são capazes de produzir as lesões glomerulares observadas na ND. Essas lesões podem ser prevenidas ou atenuadas pelo controle glicêmico rigoroso e dependem da duração e da intensidade da insulinoterapia. Para ilustrar esse fato, dois estudos clínicos, utilizando pacientes portadores de DM tipo 1 (DCCT - Diabetes Control and Complications Trial)2 e tipo 2 (UKPDS - United Kingdom Prospective Study)3, demonstraram que o desenvolvimento da nefropatia é definitivamente influenciado pelo controle glicêmico.

A importância da abordagem de pacientes diabéticos na faixa etária pediátrica se refere à possibilidade de prevenção ou controle das complicações da doença, sobretudo da nefropatia. Este artigo de revisão tem por objetivo abordar, de forma sucinta, aspectos referentes aos fatores de risco, diagnóstico, tratamento e prognóstico dos pacientes portadores de ND.

 

FATORES DE RISCO

Não é a totalidade de indivíduos diabéticos que desenvolve a complicação renal, sendo que tal comportamento sugere uma susceptibilidade individual. A duração do DM tipo 1 é, classicamente, considerada fator de risco para a ND. Há um aumento na prevalência da proteinúria associada a um maior tempo de doença, atingindo seu pico por volta de 21 anos de DM tipo 1. O tempo médio de progressão da microalbuminúria para a proteinúria persistente é de, aproximadamente, nove anos. Os pacientes que desenvolvem microalbuminúria precocemente no curso do diabetes estão sob um maior risco de progressão para proteinúria persistente 4.

Fatores genéticos e ambientais também concorrem para o aparecimento da ND. Entre os fatores ambientais, o nível de controle glicêmico parece ser o principal preditor da transição de normoalbuminúria para microalbuminúria. Vários estudos têm demonstrado que a melhora do controle glicêmico reduz o risco de desenvolvimento de microalbuminúria 2,3,5. No entanto, a relação dose-resposta entre nível de controle glicêmico e o risco de complicação ainda não está bem definida. Além da hiperglicemia, outros fatores de risco, tais como elevação da pressão arterial, tabagismo e níveis elevados de LDL - colesterol, estão associados ao desenvolvimento da microalbuminúria6. Elevações mínimas da pressão arterial, não necessariamente patológicas, podem ser particularmente lesivas em pacientes com ND incipiente (microalbuminúria), devido a prováveis modificações na hemodinâmica glomerular7.

Existem evidências de que o tabagismo aumenta o risco de surgimento e progressão da ND, favorecendo danos vasculares e hipóxia tecidual6. A hipercolesterolemia promove uma progressão da doença renal, pois, a partir do dano glomerular, ocorre passagem de lipídios e lipoproteínas para o mesângio. Além disso, há correlação entre os níveis plasmáticos iniciais de colesterol e a taxa de declínio do ritmo de filtração glomerular (RFG)8.

Finalmente, a influência dos fatores genéticos é fortemente sugerida por estudos que demonstram que a ND ocorre com maior freqüência em determinadas famílias9. Esses dados são reforçados por sua associação com a hipertensão arterial (HA)10.

 

DIAGNÓSTICO E ACOMPANHAMENTO LABORATORIAL

Para o diagnóstico evolutivo da ND, pode-se usar a seguinte classificação:

  • estágio 1: Hiperfiltração. Neste estágio, observa-se aumento do RFG e normoalbuminúria.
  • estágio 2: Microalbuminúria ou nefropatia incipiente. A excreção urinária de albumina encontra-se discretamente aumentada, situando-se entre 20-200 mg/min ou 30-300 mg/24h. O RFG usualmente está elevado, com tendência ao declínio com a progressão da doença.
  • estágio 3: Proteinúria ou nefropatia clínica. A excreção urinária de albumina atinge valores superiores a 200 g/min ou 300 mg/24h, acompanhada por queda progressiva do RFG e aparecimento de HA.
  • estágio 4: Nefropatia terminal. Os pacientes já apresentam insuficiência renal crônica (IRC), necessitando de programas de diálise e transplante renal.
  • A doença renal no diabético é usualmente acompanhada por acometimento vascular, retinopatia e neuropatia11. Outras doenças renais, que não a nefropatia diabética, podem também ocorrer em pacientes diabéticos12. A distinção é crucial, uma vez que tais enfermidades podem necessitar de tratamento específico, assim como apresentar prognóstico diferente. Um manejo bem-sucedido, portanto, requer uma associação entre nefrologistas e endocrinologistas, juntamente com um bom entendimento da história natural da ND.

    O diagnóstico da ND em pacientes portadores de DM tipo 1 é definido pela presença de história, características clínicas e laboratoriais típicas. Além disso, a avaliação dos pacientes com DM tipo 1 deve incluir pesquisa do perfil glicêmico, determinação do RFG, avaliação da excreção urinária de proteínas, dosagens de colesterol e triglicérides, realização de urinálise e ultra-sonografia de rins e vias urinárias. Em relação à faixa etária pediátrica, a maioria dos estudos tem recomendado que a pesquisa de ND, através de detecção de hiperfiltração e/ou presença de microalbuminúria, deva ser realizada a partir do quinto ano de doença13.

    A seguir, serão feitos alguns comentários sobre os exames laboratoriais mais utilizados no controle de pacientes pediátricos portadores de DM tipo 1.

    Glicosilação de proteínas

    A avaliação do controle glicêmico é de extrema importância, sendo feita, principalmente, através de dosagens trimestrais da hemoglobina glicosilada (Glico-Hb). A glicosilação da hemoglobina ocorre durante a exposição dos eritrócitos à glicose plasmática, através da formação de Glico-Hb, que pode ser inicialmente lábil, mas tende a se tornar estável com o decorrer do tempo. O aumento dos valores de Glico-Hb é mais comumente causado por uma elevação contínua dos níveis glicêmicos ou por elevações intermitentes e freqüentes. A Glico-Hb aumenta dentro de duas a três semanas após uma elevação persistente no nível médio da glicemia, sendo necessárias pelo menos quatro semanas para que comece a diminuir, após redução da glicemia. Dessa forma, a determinação da Glico-Hb representa os níveis médios de glicemia durante os últimos dois a três meses, justificando seu emprego para a monitorização da aderência do paciente e da eficácia terapêutica.

    Algumas situações clínicas podem interferir na determinação da Glico-Hb. A anemia hemolítica pode produzir valores falsamente baixos, uma vez que a hemólise determina diminuição da meia-vida dos eritrócitos, diminuindo sua exposição à glicose. A ocorrência de episódios freqüentes de hipoglicemia também é capaz de diminuir ligeiramente os níveis de Glico-Hb. Além disso, existem alguns kits para determinação da Glico-Hb que são afetados por mudanças de temperatura e produzem resultados falsamente elevados em indivíduos com IRC, em uso de aspirina, no alcoolismo e na intoxicação por chumbo.

    Atualmente, preconizam-se, como referência, valores para Glico-HbA1c entre 4,4% e 6,0%. Adota-se, como objetivo da prática terapêutica, obtenção de valores de Glico-HbA1c iguais ou menores que 7,0% desde que, para a obtenção dos mesmos, não haja freqüência aumentada de episódios de hipoglicemia13. Na prática clínica, sabemos da dificuldade de se obter um bom controle glicêmico em adolescentes diabéticos. Além disso, em crianças menores, o risco de uma hipoglicemia grave deve ser considerado quando se deseja um controle glicêmico muito estrito.

    Além da Glico-Hb, outras proteínas podem sofrer glicosilação não enzimática. Os laboratórios utilizam o método da frutosamina para determinação da glicosilação das proteínas totais. Esse método baseia-se na reação bioquímica com a glicose ligada à proteína através de uma ligação cetoamina, utilizando-se mais freqüentemente o nitro-azul tetrazólio como reagente. Os resultados da determinação da frutosamina no soro indicam a glicosilação média no decorrer de duas semanas anteriores. Atualmente, esse exame é menos utilizado que a Glico-Hb, uma vez que as alterações nos níveis séricos relacionam-se mais a variações na albumina que na glicemia14.

    Determinação do RFG

    A função renal deve ser periodicamente monitorada, para que, diante de alterações iniciais, possam ser feitas intervenções. A concentração sérica de creatinina não reflete o RFG nos estágios iniciais da nefropatia diabética, elevando-se somente quando este se reduz em 50-70% dos valores de referência. Portanto, nos estágios iniciais da ND, o RFG deve ser avaliado através do clearance de creatinina.

    Os métodos laboratoriais utilizados para a medição do clearance de creatinina baseiam-se na reação de Jaffe, a qual é a determinação colorimétrica de um complexo formado pela creatinina e o ácido pícrico. A bilirrubina exerce significativa interferência nessa reação. Além disso, cromógenos presentes no plasma podem acarretar leituras de creatinina sérica falsamente elevadas. Independente do método de dosagem utilizado podem ser obtidos valores falsamente baixos se a urina coletada não for refrigerada ou um inibidor bacteriano não for adicionado ao recipiente coletor.

    Medições seriadas do clearance de creatinina podem demonstrar a progressão da nefropatia ou a resposta terapêutica. São necessárias coletas urinárias precisamente cronometradas e completas. A coleta usual da urina é de 24 horas, com sangue sendo coletado, por conveniência, no início ou no final da coleta. Os valores para o RFG baseados no clearance de creatinina são de 85ml a 125ml/min/1,73m2 para o sexo masculino e 75ml a 115ml/min/1,73m2 para o sexo feminino. A Tabela 1 mostra os valores de referência para o clearance de creatinina nas diferentes faixas etárias em pediatria.

     

     

    Se for utilizado um método para a remoção de cromógenos, essas faixas passam a ser 97ml a 137 ml/min/1,73 m2 para o sexo masculino, e 88ml a 128 ml/min/1,73 m2 para o sexo feminino, ocorrendo um aumento na ordem de 15% nos valores de referência em pediatria.

    Apesar das diversas variáveis que influenciam o clearance de creatinina, essa estimativa do RFG possui grande utilidade clínica, possibilitando o acompanhamento do paciente portador de DM tipo 1, desde o início do comprometimento renal, evidenciado pela hiperfiltração16.

    É consenso na literatura a determinação do clearance de creatinina anualmente nos pacientes diabéticos, após cinco anos de doença instalada13. No entanto, acreditamos que seja útil realizar uma determinação do clearance de creatinina ao diagnóstico, após estabilização clínica e glicêmica, a fim de estabelecer um parâmetro de referência para o paciente. A hiperfiltração é a forma mais precoce de detecção do acometimento renal, podendo surgir antes de cinco anos de doença, sobretudo em pacientes com precário controle glicêmico. Dessa forma, nas crianças e adolescentes com glicemias constantemente elevadas, deve-se pensar na realização do clearance de creatinina a intervalos regulares mais precocemente, antes dos 5 anos do diagnóstico do DM tipo 1. A presença de valores anormais obriga o médico assistente a intensificar o controle da glicemia, já que, nessa fase, a hiperfiltração é reversível.

    Microalbuminúria

    A progressão da ND pode ser avaliada pela determinação quantitativa da albuminúria, pois tende a aparecer na urina antes das outras proteínas séricas durante a evolução da lesão glomerular. A medição imunológica da microalbuminúria na urina de 24h é atualmente considerada o padrão-ouro no diagnóstico da ND e na detecção precoce de complicações da doença. A dosagem da microalbuminúria deve ser feita, preferencialmente, através de coleta de urina noturna de 12h ou 24h, juntamente com o clearance de creatinina17. Para confirmar a presença de microalbuminúria, são necessárias duas ou três dosagens feitas em um período de três/seis meses. Nessa fase, a doença renal continua sendo reversível. Como norma geral, a determinação da microalbuminúria deve ser feita anualmente, após cinco anos de doença. Porém, se o controle glicêmico do paciente não for adequado, sua dosagem pode ser antecipada. Finalmente, a relação albumina/creatinina detectada através de amostra única de urina vem se tornando um método de triagem muito útil, principalmente em crianças mais novas. Apesar de os estudos em pediatria serem restritos, esse método pode ser utilizado se a coleta de urina de 24h for difícil de ser realizada13.

    Proteinúria

    A presença de proteinúria é detectada, também, através de sua dosagem em urina de 24h. A lesão renal, nessa fase, já é irreversível, e sua evolução não depende tanto do controle glicêmico. Nessa fase, já pode ser detectada HA, sendo seu controle fundamental para retardar o dano renal. A periodicidade deve ser semestral ou anual, dependendo do grau de lesão renal.

    Urinálise

    No paciente diabético, o exame de urina rotina é útil para detectar alterações bioquímicas e da sedimentoscopia, tanto na infecção urinária quanto nas lesões glomerulares. Embora inespecíficos, os achados deste exame podem indicar uma avaliação mais detalhada do paciente. Para exemplificar, a presença de hematúria exige uma investigação mais profunda a fim de diferenciar alterações próprias da ND de outras doenças renais que podem acometer o paciente diabético.

     

    TRATAMENTO

    Controle da glicemia

    O estudo do DCCT evidenciou que o controle glicêmico adequado é medida de suma importância na prevenção da ND4. O grupo de pacientes com DM tipo 1 que recebeu tratamento intensivo com insulina (três a quatro aplicações diárias ou uso de bomba de insulina) apresentou redução de 35% e 50% no desenvolvimento, respectivamente, de microalbuminúria e albuminúria em relação ao grupo tratado convencionalmente (duas aplicações diárias de insulina), além de ser retardado o aparecimento de outras complicações microvasculares. Os benefícios da terapia intensiva permaneceram evidentes quatro anos após o término do estudo.

    Além disso, foi observado que, nos pacientes submetidos a transplante duplo (rim-pâncreas) bem-sucedido, que evoluíram com enxertos pancreáticos funcionantes e normoglicemia, não houve surgimento de glomerulopatia diabética no rim transplantado18.

    A ND é incomum em pacientes com Glico-HbA1c consistentemente menor que 7%. Por isso, deve-se procurar manter a glicemia tão próxima quanto possível do normal, sem que isso resulte em hipoglicemia significativa. As metas específicas para o bom controle glicêmico, propostas pela Associação Americana de Diabetes (ADA)19 incluem glicemia pré-prandial plasmática de 90mg/dl a 130 mg/dl, glicemia pós-prandial plasmática menor que 180mg/dl e níveis de Glico-HbA1c < 7,0%.

    Por outro lado, o controle da hiperglicemia não parece influir significativamente sobre a história natural da ND, uma vez instalada a proteinúria. Nesta fase (estágio III), o controle da HA torna-se mais importante na prevenção da progressão para IRC terminal.

    Um bom controle glicêmico depende de uma dieta adequada, do uso de insulina em múltiplas doses, da monitorização glicêmica domiciliar e da prática de exercícios físicos. A terapia nutricional tem como objetivo manter a glicemia o mais próxima do normal, adequar o peso corporal e promover o crescimento e desenvolvimento. Os exercícios físicos também integram o tratamento, pois ajudam no controle do peso, melhoram a sensibilidade à insulina e o perfil lipídico. Obviamente, os exercícios físicos não devem ser realizados por pacientes que exibem qualquer tipo de descompensação aguda de natureza metabólica ou hemodinâmica.

    Uso dos inibidores da enzima conversora da angiotensina e dos antagonistas dos receptores da angiotensina II

    O efeito renoprotetor dos inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) independe de sua capacidade hipotensora, podendo manifestar-se mesmo em pacientes normotensos. Isso pode ser explicado por seus efeitos hemodinâmicos específicos sobre os vasos renais, sobretudo sua ação dilatadora sobre a arteríola eferente, o que propicia uma maior redução da pressão intraglomerular20. Outras ações dos IECA são o relaxamento da musculatura lisa mesangial e a diminuição da permeabilidade dos capilares glomerulares. Além disso, inibem a síntese de angiotensina II (Ang II), diminuindo os processos proliferativos e hipertróficos 20,21. No estudo EUCLID 22, o lisinopril mostrou-se eficaz em reduzir a excreção renal de albumina em diabéticos tipo 1 normotensos, com e sem microalbuminúria. Ainda não existem, contudo, evidências suficientes para a recomendação do uso profilático de IECA em diabéticos normotensos sem microalbuminúria. Os diabéticos tipo 1 com forte história familiar de ND poderiam constituir uma exceção, mas também se desconhece a eficácia da terapia profilática nesse grupo.

    No entanto, existe pouca informação na literatura sobre o uso de IECA em crianças e adolescentes com DM tipo 1. Cook et al avaliaram crianças diabéticas normotensas e com microalbuminúria, demonstrando uma redução da excreção de albumina após três meses de tratamento com Captopril23.

    A dose inicial para a obtenção dos efeitos benéficos dos IECA ainda não foi plenamente determinada. Contudo, recomenda-se a introdução de pequenas doses, de maneira escalonada, controlando-se os níveis de creatinina e potássio séricos. Também não está especificado se existe superioridade de um IECA em relação ao outro. Por facilidade posológica, deve-se dar preferência a compostos que possam ser administrados em dose única diária. O uso dos IECA tem-se mostrado seguro na faixa etária pediátrica em relação ao tratamento de HA24.

    Mais recentemente, passou-se a utilizar os antagonistas dos receptores da angiotensina II, como o Losartan, o Valsartan e o Irbesartan, com efeito hipotensor similar aos IECA e melhor tolerabilidade por não provocarem tosse. Reduções na excreção urinária de albumina, semelhantes àquelas observadas com os IECA, têm sido documentadas durante o uso dessas drogas22. Embora haja pouca experiência com o uso dessas drogas na faixa etária pediátrica, em um estudo recente, o Irbesartan mostrou-se bastante eficaz em crianças hipertensas25.

    Controle da pressão arterial

    Nos pacientes portadores de diabetes mellitus tipo 1, a hipertensão arterial sistêmica pode surgir, em alguns casos, na mesma época que a microalbuminúria (estágio 2), ou, mais comumente, associada à proteinúria (estágio 3). Tal fenômeno pode explicar a associação entre o aumento da proteinúria e das mortes devido a doenças cardiovasculares em pacientes portadores de DM tipo 11. Tanto a pressão arterial sistólica (PAS) quanto a pressão arterial diastólica (PAD) aceleram a progressão de microalbuminúria para macroalbuminúria, assim como a queda do RFG. A terapia anti-hipertensiva adequada pode aumentar a sobrevida de pacientes com DM tipo1, reduzindo a mortalidade e a necessidade de diálise e transplante renal. Um tratamento mais agressivo para hipertensão arterial sistêmica tem sido proposto. Segundo a ADA19, a meta deve ser manter a PA<130/80 mmHg, desde que isso não resulte em hipotensão ortostática - particularmente indesejável em pacientes com neuropatia autonômica - ou elevação da creatinina sérica, que pode ocorrer em indivíduos com insuficiência renal instalada ou doença renovascular. Havendo micro ou macroalbuminúria, alguns serviços têm preconizado a manutenção de níveis pressóricos abaixo de 120/80 mmHg. Não há, até o momento, nenhuma recomendação precisa para os níveis pressóricos em pacientes pediátricos. De maneira geral, recomenda-se manter a pressão arterial em valores abaixo do percentil 90.

    Os IECA têm sido considerados a opção de escolha para o diabético hipertenso com ND. Além de não interferir negativamente sobre o perfil lipídico e glicídico, possibilita prevenção ou retardo no surgimento de microalbuminúria e diminuição na progressão da ND. Como demonstrado por Lewis et al.26 o uso de uma associação de anti-hipertensivos que incluía o captopril em cerca de 200 pacientes com DM tipo 1 e ND clinicamente manifesta resultou em menor deterioração da função renal quando comparada àquela observada em igual número de pacientes que obtiveram controle dos níveis pressóricos através de medicação anti-hipertensiva que não incluía os IECA.

    O emprego dos bloqueadores dos canais de cálcio deve ficar reservado para os casos de contra-indicação ou intolerância aos IECA, ou quando o efeito hipotensor e/ou antiproteinúrico dos mesmos não se mostrar satisfatório27. Tais drogas não alteram o perfil lipídico nem aumentam a resistência à insulina, sendo eficazes e seguros na faixa etária pediátrica.

    Os diuréticos tiazídicos, em doses baixas, não apresentam efeito hiperglicemiante significativo e podem ser adicionados aos IECA quando a monoterapia não controlar adequadamente a PA. No entanto, devem ser evitados ou trocados por diuréticos de alça em pacientes com creatinina sérica >2,0mg/dl ou clearance de creatinina < 30ml/kg/min, pois nessa situação tornam-se ineficazes e podem agravar a insuficiência renal. Uma outra indicação para os diuréticos de alça é a presença de proteinúria e edema27.

    Outra opção seria o uso de‚ β bloqueadores. Deve-se preferir o uso de drogas cardiosseletivas, como o atenolol, em doses moderadas, uma vez que causam menos broncoespasmo, têm efeito mínimo sobre os lipídios e mascaram menos os sintomas de hipoglicemia. Não se tem muita experiência com o uso dessas drogas em crianças diabéticas.

    Restrição protéica

    Pesquisas em animais e em humanos mostraram que a restrição da ingestão protéica pode reduzir a hiperfiltração, a pressão intraglomerular e retardar a progressão da ND28. A ADA19 recomenda uma ingestão protéica de 0,8g de proteína/Kg/dia em pacientes adultos com ND clínica, com pouca ou nenhuma alteração do RFG. A restrição protéica só deve ser feita na ND avançada, ou seja, com diminuição do RFG. A ingestão protéica de 0,6g/Kg/dia pode tornar lento o declínio da função renal. Geralmente, os pacientes com ND avançada já são adolescentes ou adultos. Desse modo, a restrição protéica não deve ser habitualmente feita em crianças portadoras ND. Não se deve esquecer que restringir a ingestão de proteínas em crianças em fase de crescimento pode ser extremamente prejudicial.

    Drogas experimentais

    O uso da aminoguanidina, um inibidor da formação dos produtos finais de glicosilação avançada (AGE), resultou em redução importante (85%) na excreção urinária de albumina em animais 29. Estudos clínicos envolvendo diabéticos tipo 1 com proteinúria estão em andamento.

    Em estudos nos quais foram usados camundongos com diabetes induzido por estreptozotocina, a lovastatina mostrou-se capaz de retardar o início e a progressão da ND. Isso pode ocorrer por um efeito celular direto, independente da ação redutora do colesterol, e parece estar relacionado, pelo menos em parte, a uma menor expressão glomerular do fator transformador do crescimento ß1 (TGF-ß1) 30.

    Glicosaminoglicanos e bloqueadores dos receptores da endotelina representam outras potenciais opções para prevenção e tratamento da ND 31.

    Outras medidas terapêuticas:

    O tabagismo deve ser desencorajado nos pacientes portadores de DM tipo 1, devido ao aumento do risco de surgimento e progressão da ND, além de maior incidência de doenças cardiovasculares no futuro. O endocrinologista pediátrico deve estar atento, já que os indivíduos estão iniciando o hábito de fumar cada vez mais cedo.

    Os níveis séricos de colesterol e triglicérides devem ser mantidos dentro dos valores de referência para a idade. Em crianças, o colesterol total deve ser inferior a 170 mg/dl, o HDL maior que 40 mg/dl e o LDL menor que 100 mg/dl. Em relação aos triglicérides, o valor deve ser inferior a 100 mg/dl em menores de 10 anos e menor que 130 mg/dl em crianças de 10 -19 anos 32. O tratamento da dislipidemia em crianças é baseado em dietoterapia hipolipídica. Os medicamentos redutores do colesterol e triglicérides não são usados de rotina em crianças.

    Tratamento dialítico

    O tratamento dialítico deve ser indicado quando o clearance de creatinina atinge valores inferiores a 10 -15 ml/min/1.73 m2.33 A instituição do tratamento dialítico evita a uremia, que aumenta a sintomatologia de algumas das complicações do diabetes, como neuropatia autonômica (gastroparesia) e neuropatia periférica.

    Diálise peritoneal versus hemodiálise

    Nos EUA e na Grande São Paulo 33, hemodiálise é a modalidade de tratamento mais freqüentemente utilizada em portadores de IRC terminal secundária à ND.

    As vantagens da hemodiálise compreendem a comodidade de se realizarem três sessões de diálise por semana e a facilidade do acompanhamento médico nos centros de diálise.

    As vantagens da diálise peritoneal ambulatorial contínua (CAPD) são o melhor controle glicêmico, a menor freqüência de hipotensão, a ausência de necessidade de acesso vascular, a manutenção do hematócrito mais elevado, a preservação da função renal residual e a possibilidade de tratamento domiciliar. As desvantagens da CAPD são as complicações infecciosas, a dislipidemia, a anorexia e a desnutrição.

    Os pacientes diabéticos, em qualquer tipo de diálise, apresentam uma taxa de sobrevida inferior à de outros grupos de pacientes renais crônicos, sendo, em média, de 50% em três anos. 34

    Transplante renal

    O transplante renal é a melhor opção de tratamento definitivo da IRC terminal secundária à ND. O transplante utilizando órgão proveniente de doador vivo relacionado apresenta melhor taxa de sobrevida do que o de doador cadáver. Contudo, os pacientes diabéticos e seus enxertos sobrevivem menos do que pacientes não diabéticos. A principal causa de morbimortalidade, nos períodos peri e pós-transplante renal, é a doença coronariana34. A recidiva da ND no enxerto renal ocorre, em média, cinco a dez anos após o transplante, e não contra-indica o procedimento.

    A principal limitação para o transplante renal em diabéticos é a doença coronariana silenciosa, justificando a realização de exames invasivos antes da indicação formal do transplante renal. Nesses casos, a literatura sugere que a correção prévia da obstrução coronariana possa melhorar a sobrevida no período pós-transplante34.

    A realização de transplante duplo, rim e pâncreas, permite a melhora do controle glicêmico, minimizando o risco de recidiva da ND. Os dados sobre a sobrevida dos pacientes transplantados são, contudo, contraditórios. Em alguns estudos, o transplante combinado bem-sucedido não diminuiu a ocorrência de complicações macrovasculares, principal causa de morte entre os diabéticos. Por outro lado, alguns autores relataram uma menor mortalidade 18.

    É importante salientar que a insuficiência renal crônica com necessidade de terapia de substituição renal não ocorre, habitualmente, em crianças, já que, geralmente, é um evento tardio no curso do DM tipo 1.

     

    PROGNÓSTICO

    O prognóstico da ND estágio III é reservado. Estudos sobre o curso natural da ND em pacientes com DM tipo 1 registraram uma taxa cumulativa de óbito após 10 anos do início do acometimento renal, variando de 50 - 70% 34.

    A nefropatia diabética está associada a uma alta freqüência de morte por causa cardiovascular. Pacientes portadores de diabetes mellitus com proteinúria apresentam um risco relativo de morte prematura até 100 vezes superior à da população não diabética. No entanto, pacientes diabéticos sem nefropatia apresentam taxa de mortalidade apenas duas vezes superior àquela observada em indivíduos não diabéticos 34.

    A intervenção primária é feita com o objetivo de prevenir o desenvolvimento de microalbuminúria em uma pessoa diabética com o rim presumivelmente saudável. A principal forma de prevenção é a manutenção de um bom controle glicêmico, através do uso intensivo de insulina, dieta adequada e realização de exercícios físicos regularmente. O tratamento da ND, após instalada a proteinúria, ainda é muito restrito, com resultados ruins e progressão inevitável para a IRC.

    O endocrinologista pediátrico deve ficar atento para detectar precocemente as mínimas alterações na função renal, através de avaliações seriadas do clearance de creatinina e da microalbuminúria. Nestas fases iniciais da ND, o controle glicêmico estrito e o uso de IECA retardam ou até evitam a progressão da doença. Finalmente, existem perspectivas de novas intervenções no futuro, capazes de mudar a história natural da ND.

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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