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ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Tuberculose vertebral - relato de caso
Spinal tuberculosis - case report
Rogério Luiz Pinheiro1; Daniel Fontes2; Bruno Horta Andrade3; Daniel Augusto Vieira de Moura4
1. Professor Assistente do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG
2. Médico Residente de Cirurgia Geral do Hospital das Clínicas da UFMG
3. Médico Residente de Pneumologia e Tisiologia do Hospital Júlia Kubitschek
4. Médico da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte
Bruno Horta Andrade
Rua Santa Rita Durão, 1194/402 - Funcionários
CEP 30.140.111 - Belo Horizonte/MG
Tel.: 3261-0016// 8811- 4073
Data de submissão: 04/04/2005
Data de aprovação: 25/04/2006
Resumo
Neste artigo relata-se o caso de uma paciente de 65 anos de idade, com comprometimento osteoarticular torácico pelo Mycobaterium tuberculosis de difícil diagnóstico.
Palavras-chave: Tuberculose da Coluna Vertebral; Vértebras Torácicas; Relatos de casos
INTRODUÇÃO
A tuberculose é a doença mais comum da humanidade e é hoje um grave problema de saúde pública.1 A Organização Mundial da Saúde estima que um terço da humanidade esteja infectada pelo Mycobacterium tuberculosis e, aproximadamente, 3% dos pacientes infectados apresentem envolvimento ósseo. A tuberculose vertebral consiste na forma mais comum de tuberculose óssea, compreendendo cerca de 50% de todos os casos. 2,3
A dificuldade em se fazer o diagnóstico precoce de tal afecção e a escassez de relatos de pacientes brasileiros portadores desta doença constituíram motivação para a apresentação do caso.
RELATO DO CASO
Trata-se da paciente M.C.L.P., sexo feminino, 65 anos, obesa, leucodérmica, aposentada e residente em Sabará. A doença teve início com quadro de dor abdominal difusa e dor na região interescapular do tórax, que não cedia com uso de analgésicos comuns. Ao exame clínico, não apresentava sinais importantes, estando afebril, eutrófica, sem anormalidades no exame abdominal, apresentando discreta angulação ântero-posterior da coluna vertebral.
A paciente evoluiu nos dois meses que se seguiram com febre, calafrios e dores por todo o corpo. Procurou o Hospital de Pronto Socorro João XXIII de Belo Horizonte, onde ficou internada para tratamento de infecção urinária. Entretanto, após sua alta, a paciente mantinha a queixa de dor abdominal e torácica. Continuou a propedêutica ambulatorial, complementada por ultra-som abdominal que revelou colecistolitíase, sendo os seus sintomas atribuídos a esse achado. A paciente foi, então, submetida a colecistectomia, com resultados pouco efetivos, e permanência da dor, principalmente na região torácica.
No quinto dia pós-operatório, a paciente foi transferida de sua cidade para o Pronto Atendimento do Hospital das Clínicas da UFMG, com quadro de dor torácica ventilatório-dependente e dispnéia. A radiografia de tórax apresentava imagem em condensação paravertebral esquerda, associada a um derrame pleural pequeno no mesmo lado. Por se tratar de paciente idosa, obesa, em pós-operatório e, diante dos sintomas clínicos acima mencionados, firmou-se suspeita clínica de tromboembolismo pulmonar e a anticoagulação foi prontamente iniciada com heparina em dose plena. O duplex-scan dos membros inferiores e a ecocardiografia bidimensional não apresentaram anormalidades. A cintilografia pulmonar de ventilação e perfusão revelou baixa probabilidade de tromboembolismo pulmonar, excluindo-se esta hipótese diagnóstica.
Durante a internação, a paciente evoluiu com melhora do quadro respiratório; entretanto, começou a apresentar febre vespertina, hemoptise acompanhada de dor em região dorsal do tórax, que cedia ao uso de opiáceos. A pesquisa de BAAR no escarro, o teste tuberculínico (PPD) e o exame anti-HIV foram negativos. Com o passar dos dias, a dor no dorso do tórax, que antes era difusa, começou a ficar mais localizada nas vértebras torácicas inferiores, com irradiação para as costelas. A ressonância nuclear magnética (RNM), após constatação de deformidade nas vértebras torácicas T6 a T8 à radiografia simples de coluna, confirmou destruição extensa desses corpos vertebrais, fuso paravertebral com presença de abscesso, cifose e compressão medular, alterações que sugeriram o diagnóstico de tuberculose vertebral. A confirmação diagnóstica foi feita por exame bacteriológico e histopatológico do material obtido por punção do abscesso vertebral. O tratamento foi instituído com base em repouso, administração de tuberculostáticos (rifampicina, isoniazida e pirazinamida) e colocação de órtese tóraco-lombar-sacral para estabilização da coluna. Corticoterapia com metilprednisolona foi também iniciada, uma vez que a paciente apresentava sinais da compressão medular que incluíam parestesia de membros inferiores e abdome.
Depois de instituído o tratamento, a paciente evoluiu com melhora do quadro e recebeu alta no 14º dia de tratamento hospitalar com manutenção do uso dos tuberculostáticos. Devido à boa resposta ao tratamento clínico, o desbridamento cirúrgico da região acometida não foi necessário. Atualmente, a paciente está sendo acompanhada nos Ambulatórios de Ortopedia e Clínica Médica do Hospital das Clínicas da UFMG. Apresenta remissão dos sintomas dolorosos e neurológicos e mantém uso regular da medicação.
DISCUSSÃO
A tuberculose espinhal (doença de Pott) aflige o homem desde tempos remotos. Grande número de esqueletos do período Neolítico apresenta aspectos sugestivos dessa doença. Entretanto, a primeira evidência paleopatológica incontestável surgiu em 1891, com o achado de múmias da XXI dinastia (1000 a.C.).4 Em 1779, Percival Pott publicou pela primeira vez o relato desta doença, descrevendo os achados de deformidade espinhal e paraplegia secundária a esse envolvimento.4
Hoje, a tuberculose é a doença mais comum da humanidade e a Organização Mundial da Saúde estima que um terço da população esteja infectada, com número de casos crescentes a cada ano.2,3 Diferentemente do que se imaginou nas décadas de 1960 e 1970, que, com a conquista de uma potente quimioterapia, a doença tenderia a um controle efetivo, a tuberculose recrudesceu em todo o mundo.4 Este recrudescimento foi facilitado por suas relações com a pandemia do HIV, pela ampliação da miséria das populações menos favorecidas em contraste com o aumento da longevidade nas regiões mais desenvolvidas.6,7 Sendo assim, apesar de o envolvimento espinhal ocorrer em menos de 1% dos pacientes com tuberculose, tem sido observado aumento crescente dessa forma de apresentação da doença.
A tuberculose vertebral é a forma mais comum e perigosa da tuberculose óssea, o que tornam urgentes medidas para suspender a evolução da destruição e deformidade e para prevenir e superar a paraplegia, que é a ameaça imediata mais grave.8, 9
O tratamento pode ser conservador ou cirúrgico, dependendo da natureza do caso e também das facilidades ortopédicas disponíveis.4,6,10 O tratamento conservador está baseado no repouso, na estabilização da coluna vertebral e na administração da quimioterapia antituberculosa.
Todo paciente deve iniciar tratamento quimoterápico quando o diagnóstico de tuberculose vertebral é aventado.4,11 O tratamento indicado, conforme estabelecido pelo Ministério da Saúde, é o esquema I para paciente com peso acima de 45 kg, utilizando-se rifampicina (600mg/dia), isoniazida (400mg/dia) e pirazinamida (1200mg/dia), por seis meses.5 A duração do tratamento pode ser prolongada por até mais seis meses, variando com a resposta clínica e radiológica.3,4,5,6,11 O rendimento do esquema I, a partir da revisão da década de 1980, revelou taxas de cura de 80%.5 O uso de corticosteróide num paciente tuberculoso já foi um assunto mais polêmico.10,14,15 Hoje, entretanto, existem situações em que o uso do corticóide está indicado, como no comprometimento do sistema nervoso central e na meningoencefalite tuberculosa, entre outras.
As principais indicações para o tratamento cirúrgico são: deficiência neurológica progressiva, deformidade ou instabilidade espinhal, não-resposta ao tratamento medicamentoso, intolerância à medicação ou biópsia não diagnóstica.4,8,9 Os objetivos cirúrgicos são o de excisar o tecido infectado o mais completamente possível, descomprimir os elementos neurais intra-espinhais, reduzir a deformidade vertebral e fornecer estabilidade pela fusão vertebral.
O diagnóstico da tuberculose vertebral não é freqüentemente suspeitado nos serviços que não estão familiarizados com sua apresentação clínica, uma vez que, caracteristicamente, apresenta-se com quadro insidioso e sintomatologia de progressão crônica, sem sinais patognomônicos da infecção.4 Essa condição, aliada à baixa suspeição clínica, à condução do caso por diversos serviços, à pouca valorização dos sintomas iniciais e ao achado ocasional de comorbidades, dificultaram a definição diagnóstica e justificaram a extensa propedêutica utilizada com resultados pouco efetivos dos primeiros tratamentos instituídos e a menor objetividade da condução do caso.
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