RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 4

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Educação Médica

Prontuário médico: o que fazer para não se preocupar?

Medical record: what can we do for not getting worried?

José Antônio Chehuen Neto1; Mauro Toledo Sirimarco2; Diogo Antônio Gomes Tiago3; Felipe Gonçalves Schröder e Souza3; Frederico Atalla Barletta3; Guilherme de Oliveira Firmo3; Mauro Poggiali Gasparoni Júnior3; Thiago Cardoso Vale3; Virgílio Freitas Costa3; Vítor Chehuen Bicalho3

1. Professor Adjunto IV da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. Cirurgião de Cabeça e Pescoço. Mestre e Doutor pelo Curso de Pós-Graduação em Técnica Operatória e Cirurgia Experimental da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP-SP). Responsável pela Disciplina de Metodologia Científica em Medicina
2. Professor Adjunto I da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. Proctologista. Mestre e Doutor em Cirurgia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professor da Disciplina de Metodologia Científica em Medicina
3. Alunos da Disciplina de Metodologia Científica em Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. Disciplina de Metodologia Científica em Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Endereço para correspondência

José Antônio Chehuen Neto
Avenida Independência, 1495/1001Centro)
CEP: 36016-320 Juiz de Fora (MG)
E-mail: chehuen@medicina.ufjf.br

Data de submissão: 13/12/2004
Data de aprovação: 09/12/2005

Resumo

Este trabalho tem como objetivo esclarecer as características do prontuário médico, enfatizando sua importância, determinando as vantagens, as barreiras e as etapas necessárias para sua construção e implantação. Abordam-se a falta de registro em prontuário e, sobretudo, os problemas decorrentes dessa ausência. A inexistência de um sistema de informações impossibilita várias atividades, tais como: avaliação do trabalho profissional realizado, determinação dos principais indicadores de saúde de uma população, a defesa do médico e a discussão clínica. Assim, reconhece-se a importância do preenchimento correto do prontuário, sobretudo, no suporte ao cuidado à saúde, através do aperfeiçoamento qualitativo da informação. Conclui-se, pois, que essa ferramenta certamente melhora a qualidade do trabalho médico, protegendo-o contra denúncias de má prática.

Palavras-chave: Registros Médicos/organização & administração; Sistemas computadorizados de Registros Médicos/organização & administração; Controle de Formulários e Registros/organização & administração; Termos de Consentimento/organização & administração; Ética Médica

 

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais, observa-se que o número de reclamações e processos judiciais contra médicos tem aumentado,1 o que se deve mais a motivos relacionados à deterioração da relação médico-paciente do que à má prática médica. Um ponto fundamental nesta relação é o prontuário do paciente, cujo preenchimento às vezes é pouco valorizado por alguns profissionais da área.2

Em levantamento prévio de busca de informações em prontuários em uma Unidade Hospitalar Municipal de Saúde, observou-se impossibilidade de dar-se seqüência à pesquisa proposta devido à má elaboração do prontuário. Assim, o objetivo deste trabalho é o de enfatizar a importância do seu correto preenchimento e discorrer sobre os itens técnicos que o compõem, disponibilizando aos profissionais da área de saúde as informações atuais e normatizadoras de sua confecção.

O Conselho Federal de Medicina (Resolução 1638/2002 art. 1º)3 define o prontuário médico como "o documento único, constituído de um conjunto de informações, sinais e imagens registradas, geradas a partir de fatos, acontecimentos e situações sobre a saúde do paciente e a assistência a ele prestada, de caráter legal, sigiloso e científico, que possibilita a comunicação entre membros da equipe multiprofissional e a continuidade da assistência prestada ao indivíduo".

O ato médico não é simplesmente um ato técnico, em que vigora o conhecimento apurado e especializado em determinada área. Ele deve ser associado aos aspectos éticos. Somente com a união da técnica com a ética é que haverá possibilidade de se atingir uma boa relação médico-paciente.4

O prontuário é de grande utilidade para o médico, uma vez completo e escrito com critério. Não deve ser visto simplesmente como mais um documento burocrático, já que pode ser um grande aliado da boa prática médica e do próprio profissional.

A primeira utilidade do prontuário é o registro dos dados do paciente para diagnóstico do caso e seu tratamento pelos profissionais de saúde. Ele pode ser usado, também, em pesquisas retrospectivas 4,5, como base para preenchimento de protocolos clínicos ou para relato de caso.

No ensino, apresenta grande utilidade, pois o professor pode usá-lo para apresentar casos relacionados à sua disciplina, resguardando-se sempre o princípio da privacidade. Pode ser ainda utilizado em discussões clínicas nos hospitais-escola, envolvendo residentes e acadêmicos, sendo, portanto, um ótimo meio de enriquecimento técnico-científico. O hospital pode beneficiar-se do prontuário para auditoria interna, previsão de custos, retificação e equacionamento de gastos.

Através do levantamento no prontuário das doenças de uma determinada região, pode-se estabelecer a prevalência e incidência delas, além de rastrear pacientes com maior risco para determinadas doenças, assim como testar a eficácia de programas de saúde.4,5

 

DISCUSSÃO

O prontuário é fonte de informações tanto na prática médica como em eventual demanda jurídica. No primeiro caso, constitui importante meio de "interlocução" dentre os integrantes da equipe médica4, que podem acessá-lo sempre que necessário. No segundo, o Conselho Federal de Medicina também garante ao médico, através da Resolução 1605/2000 art. 7º, o direito de usar o prontuário em sua defesa, quando há instauração de reclamações ou processos jurídicos. Nesta ocasião, é solicitado pela justiça ou pelo Conselho (depende de onde foi feita a reclamação) o laudo de um médico perito sobre a conduta do profissional no caso em questão e, com essa informação, pode-se decidir se há culpa ou não do profissional.3

Existem algumas características do prontuário do paciente que lhe são intrínsecas, e por isso devem também receber total atenção do profissional.1,3,6,7,8 Entre elas, destacam-se:

  • a confecção do prontuário é obrigatória.
  • o registro dos fatos deve ser realizado em ordem cronológica.
  • o prontuário deve ser escrito de forma legível.
  • o preenchimento do prontuário é de responsabilidade da equipe médica.
  • o prontuário é de propriedade do paciente, devendo ser guardado pelo hospital.
  • o prontuário é sigiloso, confidencial e privativo.
  • O registro das ocorrências deve ser feito seguindo-se a cronologia dos fatos. Os registros também devem se ater apenas às informações pertinentes à saúde do paciente, de forma sucinta e objetiva, evitando-se, por exemplo, relatar discussões entre os profissionais.

    É dever do médico ter ciência de que o paciente tem direito a um prontuário próprio, cabendo ao profissional dominar todo o conteúdo nele registrado.

    O médico também deve estar atento à redação do prontuário, que deve ser coerente e bem legível, evitando-se rasuras, abreviações ou rabiscos, de modo que tanto o paciente quanto outras pessoas possam entendê-lo. A identificação do profissional através de sua assinatura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina é indispensável para se dar legitimidade ao que se escreve.3,9 Prontuários ilegíveis e confusos não são bem vistos pelos juízes, que, neste caso, tendem a dar pareceres contrários aos médicos.1

    De acordo com a Resolução do CFM 1638/2002, o médico assistente e pessoas que ocupam postos superiores da hierarquia médica da instituição são responsáveis pela confecção do prontuário.3 Cabe ressaltar que todos os demais profissionais da área de saúde (psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros, nutricionistas, fonoaudiólogicos) têm pleno direito de participar da confecção do prontuário médico.3

    O prontuário é de propriedade do paciente, sendo sua guarda de responsabilidade do estabelecimento de saúde. O paciente tem garantia de total acesso ao documento, conforme o Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 72.4,9,10 Outra característica inerente a ele é seu caráter sigiloso, confidencial e privativo, sendo ilegal sua retirada da instituição, sob qualquer forma ou hipótese, sem a permissão do paciente (ou seu responsável) ou do médico assistente. (RES. CFM 1466/1996).3,6,10

    O prontuário deve conter todos os dados pertinentes à saúde do paciente. Salienta-se, assim, que é conveniente que se tenha em mãos um modelo de prontuário a ser seguido, para que se evitem erros previsíveis em sua composição. Dessa forma, seguindo as disposições da Resolução do CFM 1638/2002, apresentamos este modelo a seguir.3,11

    1) Ficha de identificação e dados pessoais do paciente com seu nome completo, data de nascimento, sexo, profissão, estado civil, nome da mãe, naturalidade e endereço completo;

    2) Ficha de registro com história da doença, exame físico, exames complementares solicitados e seus resultados; as hipóteses diagnósticas e terapêuticas em ordem cronológica, sejam elas definitivas ou não;

    3) Ficha de evolução diária, com data e hora das visitas, assim como a discriminação de todos os procedimentos realizados; registro das anotações de todos os profissionais que avaliaram o paciente, com sua assinatura e inscrição no Conselho Regional de Medicina.

    4) Documento referente ao "consentimento esclarecido" do paciente. É conveniente que, além de anotados, sejam anexados ao prontuário todos os exames recebidos.

    Salienta-se a importância do termo de consentimento esclarecido, principalmente para que o médico se resguarde de eventuais reclamações. Não deve ser interpretado como uma mera formalidade, mas como um direito do paciente. Ele nada mais é do que o aviso prévio ao paciente sobre qual é o procedimento a que será submetido, que somente deve ser realizado depois de seu total entendimento e adesão voluntária. É necessário explicar ao paciente em linguagem compreensível, para que não permaneçam dúvidas sobre o seu conteúdo. Para procedimentos que envolvam risco de vida ou de seqüelas para o paciente (cirurgias ou tratamentos medicamentosos de risco), o consentimento deverá ser feito por escrito, assinado pelo paciente ou responsável e anexado ao prontuário.4

    O termo de consentimento informado não isenta o médico de reclamações e processos, pois, se houver imprudência, imperícia ou negligência durante o ato médico, a tramitação dos fatos relativos à queixa ocorrerá normalmente. Se o ato praticado foi correto em todos os seus aspectos técnicos e houve o consentimento esclarecido do paciente, o médico dificilmente será penalizado.4 Aqui cabe comentar que a apresentação do termo de consentimento aos pacientes ou responsáveis não deverá ser feita pelos atendentes da portaria do hospital ou outras pessoas que não sejam o médico assistente. Dessa forma, evitam-se eventuais desentendimentos dos termos escritos aos interessados. O documento, se não apresentado pelo médico responsável, pode ser questionado judicialmente, pois poderá ter havido negligência na transmissão de uma correta e clara informação.

    Ainda de acordo com a Resolução do CFM 1638/2002, nos casos de emergência, nos quais usualmente é difícil obter-se a história clínica, deve-se dar atenção especial ao relato do exame físico do paciente e aos exames complementares, anotando-se tanto a solicitação quanto os resultados destes. Todos os procedimentos realizados devem ser descritos minuciosamente.3 Orienta-se que se estabeleça pelo menos a hipótese diagnóstica e, quando da transferência do plantão, que se informe ao sucessor, assinalando-se no prontuário os casos que exigem acompanhamento mais próximo.

     

    PRONTUÁRIOS ELETRÔNICOS:

    Atualmente, é grande a discussão em torno da legitimidade dos prontuários eletrônicos. Sabe-se das grandes vantagens deste tipo de registro, mas deve-se ter cautela para lidar com seus possíveis problemas.

    O Conselho Federal de Medicina não tem disposições em contrário ao uso deste tipo de registro. 3,8

    O prontuário eletrônico pode ser muito prático em sua confecção, além de eliminar a grafia pouco legível dos profissionais, um problema comum nos prontuários médicos. É útil na compilação dos dados ao agilizar a troca de informações em saúde.10 Este tipo de prontuário abre outra possibilidade de uso a ser explorada: a criação de Fichas de Saúde.9,12 Estas são fichas portáteis que os pacientes podem levar consigo, sempre que vão a uma consulta médica e nelas estariam todos os dados relevantes que se referem à sua saúde. Poderiam facilitar o trabalho médico, evitando-se repetição ou omissão de questionamentos e de exames, reduzindo-se os custos do tratamento e garantindo-se dois princípios básicos do prontuário: o acesso e controle do paciente aos dados.10

    Modelo interessante nesse sentido foi desenvolvido por Naszlady et al. (1998),12 que construíram um prontuário eletrônico na forma de um cartão que eles denominaram "smart card". Consiste em um modelo de prontuário que só pode ser acessado pelo médico ou por outros profissionais de saúde. O acesso é garantido somente a essas pessoas porque é necessário que se tenha um cartão-chave, de uso restrito.

    O prontuário eletrônico traz consigo um grave problema, que é a possível violação da privacidade, um dos fundamentos primordiais da relação médico-paciente. Anderson (2000)5 citou um caso que ocorreu em um Serviço de Psiquiatria de Indianápolis (EUA), onde os prontuários eletrônicos completos de pacientes com distúrbios sexuais foram inexplicavelmente expostos na web, tornando-se disponíveis ao público. Casos como estes, embora raros, merecem atenção e os esforços para evitá-los devem ser os maiores possíveis. A informática é uma ótima e indispensável aliada da medicina, contudo seu uso precisa ser feito de forma criteriosa e segura.

    Uma maneira de se precaver contra problemas de legitimidade do prontuário eletrônico seria conseguir o consentimento do paciente antes de fazê-lo.10

    Este prontuário necessita seguir as mesmas especificações e composição de qualquer outro, mas deve-se assegurar um pouco mais de precaução, devido à possibilidade de alteração e à falta de legislação específica até o momento.

    Quando é instaurado um processo na esfera cível e/ou criminal contra um médico com relação à sua conduta profissional, uma das primeiras providências é a solicitação de um laudo pericial sobre a prática do médico. Este laudo tem como base o que consta no prontuário do paciente. Portanto, a inexistência de um prontuário ou a constatação de um prontuário incompleto pode ser ponto desfavorável a ser considerado pelo perito, contra o profissional envolvido.

    Um dos passos iniciais para se avaliar a prática do médico é a busca do Termo de Consentimento Esclarecido, anexado ao prontuário.4 Em seguida, o perito avalia todas as ordens médicas. Logo após, compara as informações do médico com as da enfermagem e procura analisar se os atos assinalados no prontuário foram realmente realizados, bem como se os atos realizados foram nele anotados. Por fim, busca, na literatura especializada, amparo para a conduta realizada e emite seu laudo sobre a prática em questão.

    De acordo com a RES. CFM 1638/20023, fica "obrigatória a criação das Comissões de Revisão de Prontuários nos estabelecimentos e/ou instituições de saúde onde se presta assistência médica". A essa comissão cabe zelar pela qualidade dos prontuários da entidade, assegurando que eles estejam sendo corretamente confeccionados, e manter estrito relacionamento com as Comissões de Ética das instituições.

    A comissão deve ser multiprofissional (RES. CRMAL 275/2000) e pode ser escolhida de acordo com os critérios de cada instituição.3

    Realçamos que todos os dados relevantes que se referem ao atendimento do paciente devem ser relatados no prontuário, que é um dos maiores aliados do bom profissional e do paciente.4

    Portanto, o médico deve estar sempre preocupado em confeccionar o prontuário com zelo e atenção permanentes, tornando claros seus aspectos técnicos e éticos. Dessa forma, encontra-se no prontuário um grande aliado e proteção nos casos de denúncia de má conduta profissional.

    O prontuário bem feito contribui para a boa relação entre as pessoas a ele ligadas e, por isso, deve ser tratado com a devida importância.

     

    AGRADECIMENTOS

    Agradecemos às Professoras da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora, Dra. Sandra Helena Cerrato Tibiriçá e Dra. Oscarina da Silva Ezequiel, e à funcionária do CREMEMG, Sra. Maria Eugênia Resende Soares, por disponibilizarem material bibliográfico para a realização deste trabalho.

     

    REFERÊNCIAS

    1-Udelsmann A. Responsabilidade civil, penal e ética dos médicos. Revista da Associação Médica Brasileira 2002;48:172-182.

    2-Ladeira RM. Nosso aliado, o prontuário. Medicina Gerais 2002-2003; dez./jan. p.5.

    3-Portal Médico - Pesquisa de Resoluções. Disponível no site Portal Médico <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/pesquisa.asp?portal>. (Acesso em 10-abr-2003). Palavra chave: prontuário.

    4-Almada HR. Los aspectos críticos de la responsabilidad médica y su prevención. Revista Medica del Uruguay 2001;17:17-23.

    5-Anderson JG. Security of the distributed eletronic patient record: a case-based approach to identifying policy issues. International Journal of Medical Informatics 2000;60:111-118.

    6-Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia.Manual de Orientação - Defesa Profissional 2002. p.60.

    7-Conselho Federal de Medicina. Pareceres do Conselho Federal de Medicina de 1989-2000. 1ª ed. São Paulo: Editora do Conselho Federal de Medicina; 2000.

    8- Portal Médico. Prontuário. Pesquisa de Pareceres. [Acesso em 10-abr-2003]. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/pareceres/pesquisa.asp?portal

    9-Gauderer EC. A importância da papeleta médica e a sua saúde. J Bras Med 1994;66(6):201-6.

    10-Kluge E. Fostering a security culture: a model code of ethics for health information professionals. International Journal of Medical Informatics 1998;49:105-110.

    11-Leite EB. Dossiê do paciente: o prontuário. Rev Med Hosp Universit. 1999;9(2):59-66.

    12-Naszlady A, Naszlady J. Patient health record on a smart card. Int J Med Informatics 1998;48:191-4.

    13-Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais. Relação Médico/Paciente: profilaxia da Denúncia contra o Profissional. Belo Horizonte; 1997.

    14-Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica: Resolução nº 1246/88. 3a.ed. Brasília; 1996.