RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 4

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Experiência Médica

Queixadinha - do lado de lá do mundo

Queixadinha - on the other side of the world

Rosângela Teixeira

Prof. Adjunto do Departamento de Clinica Medica da Faculdade de Medicina da UFMG

Data de submissão: 24/02/2005
Data de aprovação: 17/08/2005

Resumo

Descreve-se a experiência acadêmica em expedições científicas na década de 90, em Queixadinha, um pequeno povoado no município de Caraí, região endêmica de esquistossomose no nordeste de Minas Gerais. A realidade da comunidade de Queixadinha - pobreza, miséria, desnutrição, sofrimentos e morte -, observada durante as visitas locais, é narrada com a intenção de revelar o outro lado da pesquisa, que não é descrito nos trabalhos científicos, e refletir sobre o nosso papel como expectadores da miséria humana que nos surpreende em circunstâncias científicas como aquela.

Palavras-chave: Esquistossomose/diagnóstico; Esquistossomose/quimioterapia; Condições Sociais.

 

O povoado é, como diziam os antigos, uma currutela. Queixadinha, com aproximadamente 500 habitantes, fica bem distante de Belo Horizonte e a 132 quilômetros de Teófilo Otoni. É distrito de Caraí, uma pequena cidade no nordeste de Minas Gerais, de aproximadamente 21.000 habitantes e 1240 quilômetros quadrados1, que recebe estudantes do internato rural da Faculdade de Medicina da UFMG. Em Queixadinha há apenas uma escola que ministra aulas até a terceira série do ensino fundamental. A maioria da população pratica a agricultura de subsistência, cultivando mandioca, milho e café2.

Queixadinha foi a localidade escolhida para a realização de uma investigação científica por ser endêmica para esquistossomose. Em parceria com a SUCAM, hoje FUNASA, e com o apoio da Faculdade de Medicina da UFMG, foram convocados diversos técnicos e motoristas. Serufo, Abdunabi, Rogério Lara, Rogério Augusto, Ricardo Menezes, Luis Wellington e eu, entre outros estudantes do curso de pós-graduação em Medicina Tropical naquela época, participamos de algumas expedições nos anos 90, coordenadas pelo Prof. Lambertucci, da Medicina Tropical, com a finalidade de estudar a prevalência e a morbidade da esquistossomose naquele local.

E assim fomos diversas vezes para Queixadinha, com coragem e motivação. Afinal, seria uma oportunidade de estarmos juntos, colegas e amigos, experimentar uma convivência inusitada e um trabalho desafiador num lugar distante e desconhecido.

A nossa primeira viagem foi numa Parati cedida pela Faculdade de Medicina. Cedinho, partimos da Faculdade, rumo a Governador Valadares, numa manhã de junho, muito azul e fresca, e prosseguimos confiantes para Queixadinha. Chegamos, enfim, já tarde da noite, em Caraí, depois de atravessarmos o Morro do Sapo, de pedras e curvas estreitas e escorregadias.

O primeiro dia em Queixadinha foi uma correria só. O local de trabalho seria na escola, no centro do povoado. Era uma construção muito simples, que ficava num morro de onde se avistava grande parte do lugarejo, as casinhas lá em baixo na beira do córrego e o vale circundado pelos morros encobertos pela névoa branca das manhãs de junho.

Uma sala de aula pequena serviu como consultório improvisado para a realização de exames de ultra-som, onde o Rogério Augusto, nosso ultra-sonografista, acomodou-se em uma das cadeirinhas de estudantes. No hall da escola, arrumamos as carteiras para servirem de mesas para o nosso trabalho e deixamos duas salas para os exames físicos, pois na escola só havia quatro pequenas salas de aula. O Sr. Tião vinha de Montes Claros para preparar as lâminas dos exames de fezes pelo método de Kato-Katz, trazendo uma boa cachaça de presente para nós. Ele se ajeitava num local improvisado fora da escola, debaixo das árvores, e preparava cuidadosamente todo o material sobre as carteiras. Naquele lugar, o Sr. Tião passava o dia inteiro trabalhando em suas lâminas fedidas, com uma dedicação impressionante.

Começaram a chegar os moradores do povoado, depois de caminhar léguas, muitos descalços, outros com sandálias havaianas, vestidos com o melhor que tinham. Vinham trazendo as latinhas com fezes e urina, que a Silvana e o Zé Bernardes recolhiam. Com olhar curioso e desconfiado, as pessoas respondiam ao nosso questionário e, depois, passavam por um exame físico e de ultra-som abdominal.

Todas as pessoas eram muito simples e magras, não me recordo de nenhuma que fosse obesa. As mulheres usavam vestidos curtos e coloridos, deixando à mostra as pernas muito finas. Com um mar de tristeza nos olhos e muita timidez, denotavam sofrimento crônico e chamavam a atenção pelas respostas monossilábicas às nossas perguntas.

As crianças se agrupavam em um bando de desnutridos e barrigudos. Muitas apresentavam impetigos disseminados, obrigando-nos a perder o medo de aplicar Benzetacil num lugar daqueles. As histórias de crianças alcoolizadas nos deixavam perplexos. Soubemos, pelas próprias mães, que elas colocavam cachaça nas mamadeiras para que as crianças "apagassem". Assim, elas poderiam sair para plantar a lavoura da subsistência. E os pais delas? Muitos foram para São Paulo, em busca de emprego, deixando esperanças e sonhos de uma vida melhor para as mulheres e crianças, quando voltassem de lá com dinheiro no bolso. Mas isso quase nunca acontecia; eles ficavam por lá, constituíam nova família, e nunca mais davam notícias.

As dificuldades de compreensão da nossa linguagem logo apareceram e tivemos de abandonar o vocabulário de médicos da cidade. Íamos pouco a pouco aprendendo a linguagem do povo, perguntando se tinham cãimbras de sangue em vez de disenteria e se atravessavam "córgo", em vez de córrego, por exemplo.

À medida que examinávamos as pessoas em busca de hepatoesplenomegalia, encontrávamos muitas outras doenças e, é claro, não havia recursos para diagnosticá-las corretamente naquele lugar. Em algumas ocasiões, a suspeita clínica de pneumonia era confirmada pelo ultra-som do Rogério Augusto; também cardiopatias eram examinadas ao ultra-som. Uma senhora caquética, com uma massa abdominal, saiu de lá com diagnóstico de câncer gástrico. Havia muitas crianças com deficiência física e mental. Algumas mulheres contavam histórias chocantes de abuso sexual contra seus filhos. O cenário era de alcoolismo, desnutrição, dor de dentes, doenças de pele, diarréia e muitos outros sofrimentos.

Não raramente, o Ludgerio, o 'soldado' da FUNASA que nos acompanhava nas expedições e fazia o mapeamento dos barracos e dos moradores, chegava de seu trabalho de campo com notícias de pessoas que não poderiam ir ao nosso "posto de saúde" por razões diversas - doenças, velhice, distância muito longa, morro pra subir etc. Então, alguns de nós nos aventurávamos, junto com ele, a ir até onde moravam essas pessoas. Muitas vezes, era difícil descer os morros, mas o Ludgerio nos ensinava a andar apoiando os calcanhares no chão e, assim, perdíamos o medo e descíamos morro abaixo com a câmera fotográfica dependurada. A Silvana esticava uma esteira no chão, debaixo de árvores, e era ali que a gente examinava as pessoas e colhia o sangue para exames.

Eram cenas que não saem da memória. Visitamos um barraco de adobe, muito longe dali, de uma sala só, sem janelas, muito escuro, onde moravam umas quatro pessoas que dormiam no chão. O cheiro fétido do local impressionava. Porcos e galinhas entravam no barraco sem cerimônia e dividiam o mesmo teto com os moradores. Um outro barraco ficava junto a um alagado com cerca de pau, que um senhor muito idoso atravessava lentamente apoiado na cerca, com suas pernas já fracas e desobedientes. Ali ele plantava arroz, alimentava os porcos, fazia comida, lavava roupa. Aquela era também a água de beber. E noutro lado, de fora de um barraco, havia um menino trajando um vestidinho listrado surrado, sentado sozinho no chão batido, muito edemaciado. Havia muitas moscas rondando a sua cabecinha. Eu fotografei esta criança3, símbolo do trabalho de Queixadinha. Soubemos depois que ele morreu de kwashiorkor. Posteriormente, visitamos a senhora com o possível câncer gástrico, mas a filha nos disse que ela morrera logo depois.

O Ludgerio é uma pessoa espetacular. Com sua memória perfeita, sabia o nome de todos os moradores de Queixadinha. Dedicado, conhecia todos e sabia de muitas das suas histórias. Ele nunca negava ajuda, dava caronas na caminhonete D20 de cabine dupla da SUCAM e mergulhava no sofrimento daquela gente. Não havia distância nem tempo ruim. Ele descia aqueles morros com destreza, tinha mil casos para contar e uma capacidade enorme de elaborar metáforas; de tudo ele entendia. Era um homem simples, que estava acostumado com o povo e sua língua, conhecia as estações, as plantações e os passarinhos. Pessoa fascinante o Ludgerio... É sempre uma alegria reencontrá-lo, porque ele é capaz de tornar a experiência de Queixadinha uma memória viva.

Junto com os colegas, trabalhávamos pesado até por volta de meio-dia, hora de parar e descer o morro para ir almoçar na casa do Seu Joãozinho, a mais chique de Queixadinha. A mulher dele, D. Maria, preparava uma comida saborosa, e os doces caseiros com requeijão moreno nos faziam ganhar alguns quilos em todas as viagens. Éramos cordialmente recebidos pela família. A casa tinha um quintal grande onde os netos do casal brincavam livremente. Havia deliciosas mexericas e laranjas e uma varanda onde o pessoal da SUCAM gostava de contar casos e descansar. Havia também a venda do Seu Joãozinho ao lado da casa, que tinha de tudo, inclusive boa cachaça e sandálias havaianas.

O trabalho prosseguia. Chegou, então, a hora de medicar as pessoas com exames de fezes positivos para esquistossomose. A dose do Mansil era calculada pelo peso e elas tomavam o remédio em seguida, permanecendo no posto por algumas horas em razão dos possíveis efeitos colaterais. As fortes tonteiras causadas pelo Mansil surgiam pouco tempo depois e, então, elas se deitavam no gramado em frente ao posto, debaixo das árvores, até melhorarem e voltarem para casa. O cenário impressionava - toda aquela gente deitada ali, passando mal ou esperando o mal chegar.

Já era noite quando íamos embora na caminhonete da SUCAM. Gostávamos de viajar na carroceria e, naquelas noites estreladas, íamos cantando pela estrada afora.

Estávamos distante das nossas famílias, mas nos sentíamos em casa. Dormíamos numa casa em Caraí, do internato rural, muito boa, acomodados em três quartos e na sala de visitas. À noite, sentávamos para contar casos e rir do Zé Bernardes, que inventou uma levitação misteriosa, mas que funcionava. Era engraçado e nunca entendemos como o Zé fazia aquilo. Depois, íamos para o bar do Lau e para a pracinha que ficava em frente, onde, junto com os moradores, assistíamos ao jornal das oito na televisão pública.

E assim foram outras vezes. Quando voltávamos a Queixadinha, éramos informados pelo Ludgerio e pelo Seu Joãozinho dos que haviam morrido, dos que foram embora para São Paulo, dos que nasceram. Era sempre bom voltar a Queixadinha e começar tudo de novo.

Aquela realidade deixou marcas profundas na minha formação. É por isso que as escrevo. Queixadinha foi uma aventura motivada pela pesquisa acadêmica, mas que, ainda hoje, passados mais de dez anos, nos faz pensar sobre a vida e o nosso papel como expectadores da precariedade das famílias brasileiras que conhecemos em circunstâncias 'científicas' como aquela.

Fica difícil responder, com palavras, que tipo de vida é aquela, se é vida aquela vida. A paisagem de Queixadinha, com sua realidade social vagando entre a miséria, a doença, a dor, o desconforto, a fome e a injustiça, remete-nos ao imponderável do sofrimento humano e nos faz crer que a vida dessa gente precisa ser outra, uma marcha noutra direção. Seríamos nós responsáveis pela criação de um mundo novo, pela revelação de uma outra vida profundamente mais justa, humana e digna? Poderíamos desejar uma Queixadinha do lado de cá do mundo, de terras fecundas e gente sadia, uma vida para se viver sem castigos? O quanto de ação social e política deveríamos buscar? A experiência de Queixadinha revelou, sem intenção, um outro aspecto da pesquisa científica, que não faz parte das diversas teses que resultaram daquelas expedições. Assim, Queixadinha tornou-se um desafio maior: uma inquietação. Há muito que se pensar.

 

REFERÊNCIAS

1. Informações obtidas do IBGE, disponíveis no site www.ibge.gov.br.

2. Informações disponíveis no site www.medicina.ufmg.br/queixada

3. Foto disponível no site www.medicina.ufmg.br/queixada