ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Doença renal crônica em pediatria - Programa Interdisciplinar de Abordagem Pré-dialítica
Chronic kidney disease in children - Predialysis Interdisciplinary Management Program
Cristina M. Bouissou Soares1; José Silvério S. Diniz1; Eleonora M. Lima1; Jose M. Penido Silva1; Gilce R. Oliveira1; Monica R. Canhestro2; Vanessa R. Silva3; Andréa M. Munair4; Marilene Moreira5; Ana Cristina Simoes E Silva1; Eduardo A. Oliveira1
1. Unidade de Nefrologia Pediátrica - HC-UFMG
2. Escola de Enfermagem - UFMG
3. Nutricionista - HC - UFMG
4. Psicóloga - HC - UFMG
5. Assistente Social - HC - UFMG
Eduardo A. Oliveira
R: Engenheiro Amaro Lanari 389/501
Belo Horizonte - MG CEP: 30.310-580
E-mail: eduolive@medicina.ufmg.br
Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Belo Horizonte, MG, Brasil
Resumo
A doença renal crônica (DRC) é uma síndrome clínica decorrente da lesão renal progressiva, de etiologia diversificada. Estudos internacionais indicam que a incidência anual de doença renal crônica terminal (DRCT) nas crianças esteja entre 5 e 15 pacientes por milhao de população infantil e a sua prevalência entre 22 e 62 pacientes por milhao de população infantil. Apesar de a DRC ser menos freqüente na infância, este grupo representa um desafio, por apresentar manifestações da doença durante as fases de crescimento, desenvolvimento neurológico e psicossocial. Desta forma, a abordagem da DRC na infância exige a participação de uma equipe interdisciplinar. Neste contexto, o objetivo desta artigo é revisar conceitos básicos da DRC na infância (definições, aspectos epidemiológicos, etiologia) e discutir a abordagem pré-diálitica desses pacientes.
Palavras-chave: Taxa de Filtração Glomerular; Falência Renal Crônica; Insuficiência Renal Crônica Terapia de Substituição Renal; Equipe de Assistência ao Paciente.
INTRODUÇÃO
A doença renal crônica (DRC) é uma síndrome clínica decorrente da lesão renal progressiva, de etiologia diversificada. Independente da natureza inicial do insulto, uma vez que a doença chegue a causar determinado grau de lesão renal, acometendo uma proporção superior a 50% dos néfrons, a deterioração funcional do órgao é inevitável, mesmo se retirado o fator agressor inicial.1 Os estudos internacionais permitem supor que a incidência anual de doença renal crônica terminal (DRCT) nas crianças esteja entre 5 e 15 pacientes por milhao de população infantil e a sua prevalência entre 22 e 62 pacientes por milhao de população infantil.2-6
Apesar de a população pediátrica representar um menor número de pacientes com DRC em relação à população adulta, este grupo representa um desafio, por apresentar, além daquelas complicações comuns aos adultos, características únicas, decorrentes das manifestações da doença em seres em crescimento e em desenvolvimento neurológico, emocional e de sua inserção social.. Além disso, a taxa de mortalidade em crianças portadoras de DRC em tratamento dialítico é 30 a 150% maior do que a da população pediátrica geral e a expectativa de vida para uma criança de zero a quatorze anos em diálise é de somente 20 anos.7 O diagnóstico precoce e a apropriada abordagem terapêutica tornam-se, pois, essenciais e para tal, o conhecimento da epidemiologia da DRC e de suas manifestações clínicas é importante para que se atinja a população em risco e se efetue as prevenções primária e secundária.
Vários aspectos da abordagem da DRC, em todas as faixas etárias, necessitam ser aprimorados. Os pacientes com DRCT vivenciam uma significativa morbidade. Nos Estados Unidos, a média de dias de internação é de 10 dias por ano entre os adultos. Os pacientes são diagnosticados e encaminhados tardiamente, implicando em ausência de acesso vascular, variados distúrbios metabólicos e complicações cardiovasculares no momento do início da diálise.8 Apesar da melhor qualidade do tratamento dialítico, as taxas de mortalidade são elevadas. Os pacientes em diálise apresentam uma expectativa de vida 16% a 35% menor do que a população em geral, pareada por idade e sexo.9 Esses inaceitáveis índices de morbimortalidade têm preocupado especialistas em todo o mundo.
Dessa maneira, há ainda uma complexa gama de fatores que necessitam ser analisados para se propor uma melhor abordagem para os pacientes com DRCT. Entre esses múltiplos fatores, incluêm-se a adequação da diálise e o incremento do transplante renal. Todos esses fatores têm sido intensivamente estudados nos últimos anos, resultando em uma melhoria significativa na qualidade do tratamento e na sobrevida dos pacientes. Entretanto, entre os fatores que necessitam de melhor abordagem em todo o mundo, destacam-se a qualidade e a sistematização do tratamento da doença renal crônica antes da necessidade da terapêutica de substituição da função renal.9 Na fase pré-diálise, as principais medidas devem incluir a intervenção nos fatores que deterioram a função renal, a adequada abordagem da nutrição, da anemia, dos distúrbios metabólicos e ácido-básicos, programas educacionais e de suporte para familiares e pacientes, a garantia de um adequado acesso vascular, e a indicação da terapia de substituição da função renal em um tempo "ótimo". Dados os potenciais benefícios dos cuidados na pré-diálise, é recomendado que o paciente seja encaminhado a uma equipe especializada, de caráter interdisciplinar, de forma precoce, bem antes da necessidade do tratamento dialítico. Em um estudo americano, que analisou 109.321 que iniciaram diálise entre 1995 e 1998, somente 50% dos pacientes receberam cuidado nefrológico especializado nos 24 meses que antecederam ao início da terapêutica renal substitutiva.10 O atraso no encaminhamento resulta freqüentemente em diálise de emergência, levando a hospitalização mais prolongada no início do processo, associada ao aumento da morbidade e mortalidade. A referência tardia ainda impede uma série de medidas tais como a escolha adequada do método de tratamento de substituição da função renal, a preparação e o suporte psicológico para pacientes e familiares e leva a um início de diálise traumático, sem acesso vascular adequado, com todas as suas conseqüências. Assim, a constituição de equipes interdisciplinares especializadas na abordagem da DRC é um processo desejável que, associado à conscientização da equipe de cuidados primários para um encaminhamento precoce, pode contribuir para melhorar a qualidade de vida e a sobrevida dos pacientes com essa alteração crônica.11,12
DEFINIÇÕES
Em 2002, numa tentativa de padronização da nomeclatura, foi divulgada a classificação da DRC proposta pela National Kidney Foundation's Kidney Disease Outcomes Quality Initiative (NKF/DOQI).13 Essa classificação representou um avanço indiscutível, por uniformizar a nomeclatura e definir os estágios da disfunção renal, de acordo com a queda do ritmo de filtração glomerular (Tabela 1). A doença renal crônica é atualmente definida pela presença de lesão renal por um período maior de 3 meses, caracterizada por anormalidades estruturais ou funcionais do rim, com ou sem alterações do ritmo de filtração glomerular ou por um ritmo de filtração glomerular menor de 60ml/min/1.73m/m2 que persista por mais de 3 meses, independentemente de lesão renal. Ela pode ser classificada em estágios de I a V, de acordo com a severidade da queda da função renal, correspodendo o estágio V à falência renal.
A lesão renal é definida como anormalidade funcional ou estrutural do rim, sendo diagnosticado através de alterações na composição do sangue ou da urina ou nos exames de imagem. Ou seja, a DRC foi caracterizada pela presença de lesão renal, independentemente de ocorrer redução do ritmo de filtração glomerular (RFG). Isto se justifica por poder o RFG ser mantido em níveis normais ou até elevados, apesar de lesão renal substancial, estando este grupo de pacientes expostos ao risco tanto de progressão da lesão renal, quanto a complicações cardiovasculares. A inclusão dos pacientes com RFG < 60ml/min/m2 como portadores de doença renal crônica se justifica, já que a redução na função renal a este nível ou inferior a ele representa a perda de mais da metade da função renal em um adulto normal e se associa a um grande número de complicações.13
Esta classificação tem sido extensamente utilizada, embora mereça algumas considerações. Em primeiro lugar, questiona-se se os dois primeiros estágios não seriam mais bem caracterizados pelas anormalidades associadas, como a presença de proteinúria, hematúria ou de anormalidades estruturais e não, pelo RFG. Em segundo lugar, esta caracterização dos estágios só corresponde aos níveis de RFG esperados na criança com idade superior a dois anos, considerando-se o processo de maturação renal (vide Tabela 2).14
ASPECTOS EPIDEMIOLOGICOS
Os dados latino-americanos e brasileiros sobre a DRC são escassos. A exata incidência da DRC em nosso meio é desconhecida, tanto pela possibilidade do não reconhecimento do problema, muitas vezes silencioso, quanto pela subnotificação dos casos diagnosticados. Estatísticas do Third National Health and Nutrition Examination Survey (EUA) de 2005, estimam que até 11% da população americana adulta seja portadora de algum grau de DRC e que mais de 8 milhoes de americanos possuam RFG< 60ml/min/1,73m2.15 A incidência e a prevalência da DRC estágio 5 em adultos tem aumentado progressivamente, em proporções epidêmicas no Brasil, como em todo o mundo, guardando estreita relação com o aumento do número de casos de diabetes, de hipertensão arterial e de obesidade. Deve-se ressaltar que a DRC é uma doença grave e mesmo com a terapia renal substitutiva, tem, em nosso meio, mortalidade superior em números absolutos à da maioria das neoplasias, como as de colo de útero, colon/reto, próstata e mama.16
Segundo o censo de diálise e transplante de 2006 da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), no Brasil, havia 70.872 pacientes em diálise, sendo a prevalência de 383 pmp. Ressalte-se um aumento rápido do número de pacientes em diálise, da ordem de aproximadamente 9% ao ano, no período de 2000 a 2006.
Com relação à fonte pagadora, ressalte-se a predominância do SUS, que se responsabiliza por 89% dos custos da diálise no Brasil. A taxa de incidência anual estimada de pacientes novos em diálise em 2005 foi de 175 pmp, variando de 93 pmp na regiao norte, até 253 pmp na regiao centro-oeste. Portanto, para uma população de 185 milhoes em 2006, estima-se que surjam aproximadamente 32.000 novos pacientes renais crônicos em estágio 5 no Brasil, por ano. Com relação à distribuição geográfica destes pacientes em diálise, 53% (n= 38.114) deles se concentram na regiao sudeste, 20% (n=14.041) na regiao nordeste e 27% (n= 19.222) nas regioes sul, centro-oeste e norte .
Segundo os dados da SBN, 91% dos pacientes brasileiros se submetem à hemodiálise e 9,3%, à diálise peritoneal. Somente na regiao sudeste de nosso país, 18.431 pessoas estavam aguardando transplante renal em 2006. Os óbitos de pacientes em diálise somaram 12.528 casos, em 2005, com uma taxa de mortalidade de 13,0%.
Os dados sobre DRC na faixa etária pediátrica são escassos. No Rio Grande do Sul, a incidência de novos pacientes pediátricos admitidos para terapia renal substitutiva vem aumentando progressivamente, de 0,58 por milhao de população infantil entre 1970-1975, passando para 5,9 entre 1981-1985 e atingindo 6,5 entre 1986-198817. O censo da SBN de janeiro de 2005 descreveu os dados de 497 centros de diálise brasileiros, sendo 471 deles conveniados com o SUS. Este censo não incluiu 99 centros de diálise que foram contatados, mas não responderam (16% do total). O total de pacientes contabilizados foi 54.311 (estima-se um número total de pacientes em diálise igual a 65.121). O número de pacientes menores de 15 anos em diálise foi de 518 crianças, estando 302 delas em hemodiálise, 68 em diálise peritoneal ambulatorial contínua e 148 em diálise peritoneal intermitente. No estado de Minas Gerais, foram contabilizados 67 pacientes menores de 15 anos, número inferior somente ao do estado de São Paulo, que apresentava 109 crianças em diálise.18
Os estudos internacionais permitem supor que a incidência anual de DRC estágio 5 (DRCT) nas crianças esteja entre 5 e 15 pacientes por milhao de população infantil (pmpi) e a sua prevalência entre 22 e 62 pacientes pmpi.2-4 O desenvolvimento dos registros de diálise e transplante renal tem permitido um melhor conhecimento da incidência de DRCT. Contudo, essa incidência é provavelmente subestimada, já que os registros não listam as crianças que não são tratadas por razoes técnicas, por ausência de recursos ou de políticas públicas de saúde. Outra possível causa da subestimação da incidência da DRCT na criança é que algumas delas somente atingem esta fase na idade adulta, não sendo incluídas nas estatísticas.
A comparação das taxas de incidência e prevalência de DRC em diferentes países do mundo é também difícil, pela escassez de registros confiáveis e pelas diferenças metodológicas entre os estudos existentes. Como mencionado, a maioria das estatísticas são concernentes a registros de diálise e transplante e, portanto, referem-se a dados de DRCT. Grandes estudos em adultos sugerem que a prevalência de pacientes com DRC em estágios precoces (1 a 4) seja 50 vezes maior que aquele da incidência da DRCT19. Na América do Norte, as crianças menores de 20 anos de idade constituem 2% do total de pacientes portadores de DRCT e a prevalência de pacientes com idades entre 0 e 19 anos cresceu 32% desde 1990, o que contrasta com o crescimento de 126% da população total portadora de DRCT.14 No Uruguai, o relato de um único centro mostra uma incidência de 4,4 por milhao de população infantil até 15 anos de idade, entre 1988-1991.20 No Chile, em 1996, a incidência de DRCT em pacientes com menos de 18 anos foi estimada em 5,7 por milhao de população infantil.21 Dados do Italkid Project (2003) mostram uma incidência média de DRC (RFG< 75ml/min/1,73m2) de 12.1 casos por milhao de população de 0 a 20 anos, no período de 1995 a 2000. A prevalência em janeiro de 2001 foi estimada em 74,7 pmpi.22 Os dados relativos aos Estados Unidos da América, segundo o USRDS (United States Renal Data System), relativos a 1988 a 2003, mostram uma incidência anual de DRCT de 13 pmpi em 1988, contra 15 pmpi em 2003. Na Figura 1 pode ser observada a distribuição da incidência de DRCT nas diversas faixas etárias pediátricas e na idade adulta nos Estados Unidos entre 2002-2003. Nesse período, a taxa ajustada para a população pediátrica foi de 15 pacientes por milhao de habitantes. A prevalência de ponto para os pacientes pediátricos , ajustada por idade, raça e gênero, foi de 82 por milhao de população em 2002-2003.23
A obtenção de dados de prevalência de DRC é dificultada por fatores semelhantes aos anteriormente mencionados, tais como as diferentes definições de insuficiência renal, o uso de idades distintas como ponto de corte, e a subnotificação quando as crianças e adolescentes não são encaminhados para centros especializados. No Canadá, a prevalência calculada para faixa etária de 0-15 anos foi de 41 por milhao de população infantil.24 No Chile, em 1996, foi relatada a prevalência de 39,6 por milhao de habitantes menores de 18 anos, sendo 64% maiores de 10 anos, 14% menores de 5 anos e 2,3% menores de 2 anos de idade.21 O número de casos aumentou com a idade, com exceção dos maiores de 15 anos. No V Registro Brasileiro de Diálise e Transplante (1993)25, não foram estimados dados específicos de prevalência para a população pediátrica. A prevalência estimada, englobando todas as faixas etárias, foi de 39 por milhao de população. A taxa no Brasil foi aproximadamente 20 vezes menor que a dos Estados Unidos, o que permite supor um grande número de pacientes brasileiros, em todas as faixas etárias, sem acesso ao tratamento de substituição de função renal.
ETIOLOGIA DA DRC
As causas da DRC em crianças e adolescentes diferem daquelas relatadas para pacientes adultos. Diferentemente dos adultos, nos quais diabetes e hipertensão arterial são as etiologias mais freqüentes, as causas congênitas se responsabilizam por grande porcentagem dos casos de doença renal crônica na infância. Em alguns paises pobres, causas adquiridas e infecciosas podem ser predominantes, como a hepatite c, a nefropatia da síndrome da síndrome da imunodeficiência adquirida, etc. Desordens hereditárias são mais comuns em países onde a consangüinidade é mais comum, como a Jordânia e o Ira.14
As uropatias e as glomerulopatias são em conjunto, nas séries compiladas, responsáveis por aproximadamente 60% dos casos de DRC em crianças e adolescentes. Do total de 26.903 pacientes relatados em diferentes países, 3.424 (12,72%) eram portadores de uropatias, notadamente refluxo vesicoureteral e uropatia obstrutiva e 12,715 (47,26%) eram portadores de glomerulopatias, destacando-se a esclerose focal e segmentar.26 Pode-se observar, ainda, que os percentuais de uropatias divergem bastante entre as séries publicadas, variando de 13,8 % a 43,3%. O mesmo quadro pode ser observado entre os demais grupos. Este fato pode ser conseqüência de classificações diferentes adotadas pelos autores ou da heterogeneidade regional. Potanto, embora ressalvando as possíveis falhas de uma compilação de estudos heterogêneos, há uma clara consistência nos relatos de literatura, nos quais predominam as uropatias e as glomerulopatias como principais causas primárias de DRC na faixa etária pediátrica.
TRATAMENTO DA DRCT E MORBIMORTALIDADE
O prognóstico da criança com DRC grave depende muito da disponibilidade de recursos para tratamento. Embora tenha ocorrido grande melhora na sobrevida em longo prazo de crianças e adolescentes, nos últimos 40 anos, nos Estados Unidos, tanto para as crianças em diálise como para as transplantadas, a sobrevida de 10 anos é de apenas 80% e, como já comentado, a taxa de mortalidade ainda é de 30 a 150 vezes maior que a dos pares de idade sem doença renal.14 De fato, o tempo de sobrevida esperado para uma criança de 0 a 14 anos em diálise é de apenas 20 anos, enquanto a população de mesma idade transplantada tem uma sobrevida estimada em 50 anos. No levantamento de 2007 do USRDS, 92% das crianças que foram transplantadas sobreviveram por 5 anos, comparadas a 78% daquelas que receberam hemodiálise ou diálise peritoneal.27 Nos países em que a terapia renal substitutiva está disponível, a melhor forma de tratamento é, pois, o transplante renal, em todas as faixas de idade da criança.
As modalidades de substituição da função renal atualmente disponíveis são o transplante renal, a hemodiálise e a diálise peritoneal.28 As três modalidades, em seus diversos subtipos, garantem uma sobrevida expressiva para os pacientes com DRCT e, em muitos casos, uma boa qualidade de vida.29 Em todos os países desenvolvidos há um incremento no número de pacientes em terapia de substituição da função renal. Nos Estados Unidos, havia 372.000 pacientes nessa condição no final do ano 2000, contrastando com aproximadamente 150.000 em 1991. A previsão para o ano de 2010 é que 650.000 pacientes em todas faixas etárias necessitarao de algum método de terapia de substituição da função nos Estados Unidos.30 Na Europa, o quadro não é muito diferente. Por exemplo, no período compreendido entre 1990-1996, nos países da Europa Central e Oriental houve um incremento de 56% no número de centros de hemodiálise, de 78% no número de pacientes em diálise e de 306% no de pacientes em diálise peritoneal.31
Assim, não causa surpresa que, do ponto de vista das políticas de saúde pública, haja uma preocupação com os gastos crescentes no pagamento das diversas formas de terapia de substituição da função renal. Dados do USRDS mostram que os gastos nessas modalidades de tratamento totalizaram 7,2 bilhoes de dólares em 1993, US$7,87 em 1994, US$8,97 em 1995, US$10,21 em 1996 e US$10,77 em 1997, US$15,4 em 1999, US$16,5 em 2000, US$18,14 em 2004 e US$19,3 em 2005.27 Embora os pacientes com DRCT representem um pequeno grupo na população em geral (por exemplo, 0,02% no Reino Unido e 0,06% na Itália), os custos com a diálise absorvem 0,7 a 1,8% dos orçamentos dos serviços de saúde na Europa.29
Do ponto de vista médico, a DRCT representa um grande impacto clínico, psíquico e social para pacientes, familiares e equipes médicas. Apesar dos inegáveis avanços no tratamento da DRCT nas últimas décadas, essa condição ainda é associada a inaceitáveis índices de morbimortalidade, especialmente para os pacientes em diálise. Nos Estados Unidos, segundo dados do USRDS, em 2003 a taxa de mortalidade no primeiro ano do início do tratamento dialítico foi de 11,4% para a faixa etária entre 0-4 anos de idade, 6,9% entre 5-19anos e 16,6% entre 45-64 anos. Para os pacientes que iniciaram a diálise entre 65-74 anos, 28,3% faleceram após 1 ano de tratamento. Além disso, 45% apresentaram alterações coronarianas, incluindo 12% com episódios de infarto agudo do miocárdio; 20% apresentam doenças vasculares periféricas e 11% doenças vasculares cerebrais23. Os dados do USRDS, 2007, mostram que a sobrevida em 5 anos dos pacientes pediátricos em diálise é de 82% e dos pacientes transplantados, de 93%. Ainda segundo esters dados, desde 1991, as taxas de mortalidade dos pacientes pediátricos em diálise aumentraram 5%, atingindo 26,6 por milhao de população, em 2005.27 Ressalte-se que, na população transplantada, as taxas de mortalidade são de 3 a 4 vezes menores do que aquelas das duas modalidades de diálise. No Brasil, segundo dados do Registro Brasileiro de Diálise e Transplante Renal (1997)25, a estimativa atuarial de sobrevida em 4 anos é de 67%. Esse dado deve ser visto com cautela, pois o registro obteve informações de aproximadamente 30% dos pacientes brasileiros em tratamento para DRCT. As principais causas de óbito foram complicações cardíacas (30%), infecciosas (22%) e cerebrovasculares (21%).
Além das taxas de mortalidade serem altas em todas as faixas etárias, os pacientes com DRCT vivenciam uma alta morbidade. A freqüência e a duração das hospitalizações têm sido utilizadas como um indicador de morbidade ou uma medida objetiva de qualidade de vida, devido ao impacto que causa na vida dos pacientes.32 Além do impacto na vida dos indivíduos, do total dos gastos com o tratamento da DRCT nos Estados Unidos, 40% são devidos à hospitalização.33 De acordo com dados do USRDS, o número médio de internações em 2003-2005 foi de 2,02 por paciente/ano, na faixa etária de 0-19anos. A média de dias de internação foi de 12 dias para o mesmo grupo.27 Essa taxa foi significativamente maior para as crianças em hemodiálise, quando comparadas aos pacientes em diálise peritoneal. Evidentemente que, além do impacto econômico para o sistema de saúde, esse quadro representa um alto impacto no tocante ao desenvolvimento normal das crianças e adolescentes, considerando-se os aspectos sociais, emocionais e cognitivos. Assim, apesar dos progressos obtidos no tratamento da DRCT, especialmente nos países desenvolvidos, o quadro geral é preocupante. A alta morbidade e a mortalidade associadas ao tratamento dialítico têm estimulado estudos que visam `a detecção de fatores que possam ser corrigidos, objetivando reduzir os agravos associados ao tratamento da DRCT. Entretanto, a abordagem antes da evolução para DRCT tem recebido escassa atenção, especialmente na faixa etária pediátrica. A adequada abordagem pré-DRCT, ou seja, antes do início dos métodos de terapia renal substitutiva, pode contribuir para a redução da morbimortalidade neste contexto. A atenção e os cuidados na abordagem conservadora da DRC podem ser a chave para uma melhor evolução do tratamento da DRCT. Alguns fatores presentes antes da DRCT podem predizer a evolução em diálise e podem ser modificados no tratamento conservador. Entre estes se incluem a anemia, a hipertrofia ventricular esquerda, o hiperparatireoidismo secundário e a desnutrição.
A adequada abordagem da DRC é complexa, envolve altos custos e necessariamente uma equipe interdisciplinar. A medida que o conhecimento dos mecanismos de progressão da doença renal vem se expandindo, a inter-relação entre o nefrologista, o paciente e seus familiares torna-se complexa e a participação de outros profissionais é não somente inevitável como imprescindível. A equipe deve incluir médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, assistente-sociais, urologistas, entre outros. Além disso, quando se inicia uma progressiva queda da função renal, o paciente necessitará não exclusivamente desses profissionais como também de múltiplos serviços ambulatoriais e hospitalares. Diante do conhecimento atual, pode-se propor uma abordagem sistemática e racional para pacientes portadores de insuficiência renal, objetivando principalmente retardar a progressão da lesão renal e um preparo adequado para a terapêutica de substituição da função renal. Na Tabela 3, está delineada a síntese de uma possível abordagem, procurando atender esses objetivos.
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