ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Abordagem interdisciplinar do adolescente obeso com ênfase nos aspectos psicossociais e nutricionais
Interdisciplinary approach of the obese adolescent with emphasis in the aspects psychological and nutritional aspects
Márcia Rocha Parizzi1; Cristiane de Freitas Cunha2; Roberto Assis Ferreira3; Joel Alves Lamounier4; Márcia Alvaro Listgarten5; Gisele Araújo Magalhaes6
1. Mestre em Pediatria pela UFMG. Doutoranda no Programa de Pós-graduaçao em Ciências da Saúde, área de concentraçao saúde da criança e do adolescente da UFMG. Membro do Serviço de Saúde do Adolescente do Hospital das Clinicas da UFMG
2. Professora adjunta III. Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Membro da Divisao de Endocrinologia Pediátrica e do Serviço de Saúde do Adolescente do Hospital das Clinicas da UFMG. Presidente do Comitê de Adolescência da Sociedade Mineira de Pediatria
3. Professor Associado. Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Programa de Pós-graduaçao em Saúde da Criança e Adolescente
4. Professor Titular. Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Programa de Pós-graduaçao em Saúde da Criança e Adolescente
5. Psicóloga psicanalista, especialista em psicologia hospitalar. Coordenadora da clinica de psicologia do Hospital Socor e membro da clinica de psicologia do Hospital Belo Horizonte
6. Nutricionista do Socor Hospital Geral. Mestranda no Programa de Pós-graduaçao em Ciências da Saúde, área de concentraçao saúde da criança e do adolescente da UFMG
Márcia Rocha Parizzi
Rua: Grao Pará 660 B: Santa Efigênia
Belo Horizonte - MG CEP: 30.150-340
Email: marciaparizzi@gmail.com
Resumo
A obesidade é um fenômeno em ascensão universal. Em crianças e adolescentes é particularmente preocupante pelo risco do desenvolvimento precoce de doenças típicas do adulto e pela possibilidade de permanência do quadro na vida adulta. A abordagem interdisciplinar do adolescente obeso é a forma mais adequada de tratamento uma vez que considera a complexa causalidade envolvida, tais como a evolução do processo psíquico do indivíduo, a história pessoal, as relações afetivas vivenciadas ao longo do desenvolvimento, as dificuldades relativas a um período de grandes transformações biológicas e psicossociais e o contexto socioeconômico característico da sociedade contemporânea. Estratégias de atendimento adequado para esta faixa etária são fundamentais para evolução satisfatória do tratamento, dentre as quais o atendimento separado dos pais, direito a sigilo e confidencialidade e o trabalho em grupo. Atendimentos padronizados focados exclusivamente na mudança dietética e que desconsideram a complexidade e a singularidade envolvidas podem agravar o quadro clínico. Assim, na abordagem interdisciplinar o objetivo não é tratar a obesidade do adolescente, mas tratar o adolescente obeso.
Palavras-chave: Obesidade; Adolescente; Causalidade; Equipe de Assistência ao Paciente.
INTRODUÇÃO
A obesidade é um fenômeno em ascensão universal, observado em todas as faixas etárias da população em vários países no mundo. Seu aumento na infância e adolescência é particularmente preocupante pelo risco do desenvolvimento precoce de doenças típicas do adulto - como diabetes tipo II - e pela constatação de que a maioria das crianças e adolescentes obesos permanecerá nesta condição na vida adulta.1-3 A adolescência é um dos períodos críticos para o aparecimento de obesidade e aproximadamente 70% dos adultos obesos que começaram a ganhar peso antes de se tornarem adultos o fizeram no período da adolescência.2
A obesidade é um distúrbio de causalidade complexa de difícil tratamento, cuja abordagem deve considerar, além dos aspectos genéticos e nutricionais, a evolução do processo psíquico do indivíduo, a história pessoal, as relações afetivas vivenciadas ao longo do desenvolvimento, como o vínculo mae-filho, inseridos no contexto socioeconômico característico da sociedade contemporânea. Na adolescência, a esses aspectos somam-se ainda as dificuldades relativas a um período de grandes transformações biológicas e psicossociais.4-7 Diante disso, a abordagem interdisciplinar, que inclui a participação interativa de especialistas médicos, psicólogos, nutricionistas e outros, tem sido considerada a mais efetiva para evolução satisfatória do tratamento da obesidade.4,7,8
Neste trabalho são discutidos aspectos importantes da condução do atendimento interdisciplinar do adolescente obeso com ênfase na abordagem das dimensões sociais, psíquicas e nutricionais envolvidas no tratamento.
FATORES PSICOSSOCIAIS DETERMINANTES DA OBESIDADE EXOGENA
O entendimento dos fatores determinantes da obesidade é fundamental para construção do caso clínico e condução interdisciplinar do tratamento. A compreensão da história pessoal e familiar inserida no contexto socioeconômico e cultural da sociedade contemporânea é relevante, uma vez que esses aspectos influenciam sobremaneira a formação do hábito alimentar do indivíduo, sua maneira de comer, o ritual nas refeições, percepção da fome e saciedade, escolha dos alimentos, além dos aspectos simbólicos e afetivos envolvidos na relação com os alimentos.8-11
Dentre os aspectos socioeconômicos destaca-se a influência da globalização que, apesar de ter trazido grandes benefícios para a sociedade, como a tecnologia, trouxe também, principalmente nas últimas décadas, um rastro de efeitos colaterais indesejáveis, dentre os quais a obesidade.9,11,12 A sociedade globalizada, cujo crescimento econômico depende da produção e criação constante de novos produtos, enfatiza o consumo e seus prazeres imediatos, o modismo massificado e padronizado, o descartável.11,12 Tendo como principal pilar a formação de consumidores e centros comerciais, em substituição à formação de cidadaos e comunidades, a globalização alterou profundamente os costumes, valores, relações com o trabalho, vida familiar e lazer na sociedade contemporânea.12,13
Na vida familiar, observa-se que pais e maes concentram esforços no crescimento profissional e material, para manterem seu poder aquisitivo e se conservarem no processo de trabalho em mercados cada vez mais competitivos, exigentes de produtividade e eficiência. Muito ocupados, com excesso de afazeres, perdem a disposição dedicada à convivência familiar. Um dos aspectos antropológicos que mais caracterizam as relações contemporâneas é o fenômeno do declínio do convívio.7,12,13 Anteriormente, não se sentava à mesa antes da presença de todos e fazia-se questao do almoço e jantar em família. Hoje se come cada vez mais sozinho: "os fast-foods são o protótipo da vida contemporânea, marcada por um consumo solitário, sem tempo, de um alimento pré-fabricado".13 Os pais têm cada vez menos disponibilidade para o desenvolvimento em família de atividades ligadas ao lazer (passeio e esportes em parques, clubes, praças) às artes, à culinária ou a qualquer outra atividade prazerosa que possa ser também um investimento na formação integral de seus filhos.6,7 A atenção que disponibilizam para as perdas financeiras tem sido muito maior do que às perdas afetivas resultantes do pouco convívio familiar.7,13 Os filhos, aos poucos, vao incorporando em suas vidas a referência do comportamento compulsivo dos pais pelo "ter e fazer"; o vazio gerado pelo pouco acolhimento, com freqüência, é compensado pelos excessos de comida, de bebida, de videogames, de TV, etc.7,13
Na primeira infância, falhas no estabelecimento da relação mae-filho podem interferir negativamente na formação da estrutura psíquica da criança, predispondo-a ao desenvolvimento de obesidade, quase sempre, de tratamento difícil. Maes, por exemplo, com sentimentos ambíguos em relação à maternidade, podem, de forma inconsciente, compensar a rejeição inicial superalimentando o filho, oferecendo alimento de forma indiscriminada, insistente e insensível às reais necessidades da criança de fome, saciedade, frio, calor, sono, etc. Aos poucos, a percepção fisiológica de saciedade da criança vai sendo substituída pela saciedade do outro, ou seja, a mae que superalimenta ensina ao filho que ele precisa comer tanto quanto ela precisa para se satisfazer emocionalmente. A criança, ao perder a capacidade de diferenciar a fome de uma sensação distinta de outras tensões, frustrações ou necessidades internas, tenderá a ingerir alimentos como forma de compensação para seus problemas emocionais.6,7,12-14 Perde sua autonomia e autoconfiança para responder positivamente às tensões e frustrações com as quais se depara no seu cotidiano, mantendo, obviamente, esse mesmo comportamento quando já está em tratamento. Assim, o ganho de peso pode advir também da vivência de situações de mudança (nascimento de irmão, mudança de cidade, de escola, separação de pais, etc.) ou situações de violência (relacionamento familiar hostil, vivência de abuso, etc).5-7 Esses aspectos são observados também na adolescência. A obesidade iniciada ou agravada neste período pode estar relacionada com as mudanças biopsicossociais advindas na puberdade e conseqüentes dificuldades com a sexualidade e imagem corporal.
Quando o excesso de peso já está instalado, pesquisas demonstram que quanto mais excessivo o controle materno para restringir o acesso aos alimentos e a quantidade ingerida pelos filhos, mais dificuldade eles terao para auto-regular a sua ingestao. Acredita-se que a percepção pelos pais de que seus filhos estao ganhando peso pode ser fator de risco importante para que eles desenvolvam o estado de obesidade. Cobranças inadequadas e restrições alimentares impostas pelos pais podem, inadvertidamente, promover o gosto de seus filhos por alimentos densamente calóricos.11,15-17
A falta de tempo e o excesso de obrigações interferem também na conduta alimentar, sobretudo na capacidade de percepção da saciedade. A capacidade de saciar-se está diretamente relacionada com a maneira como a pessoa se alimenta e saboreia o alimento; relaciona-se, portanto, com o grau de atenção dedicado ao ato de comer. Saborear detalhadamente cada porção de alimento colocado na boca amplia as sensações bucais que determinam o paladar, tornando possível a sensação da saciedade. Ao enfatizar a pressa, a rapidez e eficiência, o homem desenvolve o hábito de comer de forma apressada, desatento, diminuindo sua capacidade de degustar e de saciar-se. O estilo de vida apressado da sociedade contemporânea é incompatível com o saborear detalhado.16,17
Por outro lado, a ação agressiva dos meios de comunicação incentiva o consumo exagerado de alimentos prontos e industrializados, em geral, com grande densidade calórica (ricos em gordura, açúcar e pobres em fibras) e com baixo poder de indução de saciedade.14 ,17 Os alimentos, por serem de consumo obrigatório e universal, constituem um dos setores mais lucrativos da economia mundial globalizada, onde se aplicam poderosas estratégias de marketing que atingem todas as classes sociais. Durante o horário de programas infantis na TV, 53% das propagandas transmitidas são relacionados com alimentos infantis industrializados. Infelizmente, as indústrias alimentícias, amparadas pela mídia, têm definido não só a qualidade, mas também a quantidade de alimento ingerido.14,17,18
No ambiente urbano, a expansão desordenada e não planejada das cidades, a formação de favelas, a degradação ambiental com prejuízos na estética urbana, perturbações na segurança, a ausência de espaços seguros para pedestres e de áreas de lazer comprometem profundamente a qualidade de vida da população. Além disso, o sedentarismo, "estado natural" da população urbana, tem se agravado com as facilidades trazidas pela tecnologia como os elevadores, veículos automotivos, lazer na frente da TV, computadores, telefones fixos e móveis e comunicações via-internet.9,18-20
Fatores determinantes ligados à genética são também muito importantes na formação da obesidade. Crianças cujos pais são obesos apresentam risco muito maior de obesidade quando comparadas com crianças cujos pais são magros. No entanto, embora o componente genético seja indiscutível, a prática clínica mostra que é muito difícil separá-lo do contexto familiar e cultural.2,4,8 Uma leitura ampliada do contexto genético, emocional, familiar e ambiental é, portanto, crucial para a condução cuidadosa do tratamento da criança e adolescente obesos.
Todos esses aspectos relatados se interagem e se potencializam ampliando a complexidade envolvida no estado de obesidade. Apesar disso, a obesidade em crianças e adolescentes tem sido tratada, equivocadamente, como um distúrbio nutricional decorrente simplesmente do resultado positivo do balanço energético. O tratamento da criança e do adolescente obesos se inicia, de modo geral, logo após ser constatada uma obesidade exógena, ou seja, na ausência de uma síndrome ou doença genética para explicar a obesidade (obesidade endógena). Nesta etapa a orientação é dieta hipocalórica e aumento de atividade física, sem uma leitura prévia ampliada do problema. Uma doença de causalidade complexa é abordada de forma padronizada e simplista. Toda a singularidade do paciente é desconsiderada, não havendo a preocupação em conhecer os fatores desencadeantes, as razoes emocionais, ideológicas e simbólicas inerentes a sua conduta alimentar.4,11,14,20,21 Nessas circunstâncias, a possibilidade de fracasso terapêutico é enorme com riscos, inclusive, de se agravar o problema. Para alguns autores esta conduta fragmentada pode ser um dos fatores determinantes de distúrbios alimentares como anorexia e bulimia, compulsão alimentar, dificuldade em monitorar a própria ingestao alimentar, baixa auto-estima e insatisfação com a imagem corporal.5,16,22,23
Portanto, a conduta terapêutica padronizada e descontextualizada, direcionada apenas para questoes dietéticas, pode estar interferindo negativamente na motivação do paciente obeso para se tratar. Alguns autores, inclusive, têm enfatizado a necessidade de novos estudos que avaliem mais profundamente a eficácia e a segurança dos tratamentos de obesidade em crianças e adolescentes.22
ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR DA OBESIDADE EXOGENA NA ADOLESCENCIA
Na abordagem do adolescente com obesidade exógena, aconselha-se o desenvolvimento de uma postura ativa e acolhedora como forma de construir vínculo adequado e possibilitar resposta terapêutica consistente. Na primeira consulta, é fundamental esclarecer ao adolescente e seus pais que ele será o centro de interesse na entrevista. Os pais ou familiares só estarao presentes com sua permissão ou solicitação. Conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que define a adolescência como o período compreendido dos 12 aos 18 anos, todo adolescente tem direito a privacidade, isto é, pode ser atendido sozinho em espaço privado e apropriado se assim desejar. Essa postura fortalece sua autonomia e individualidade, estimulando a responsabilização e implicação com seu tratamento.21,24 A complexidade envolvida na causalidade da obesidade precisa ser compreendida amplamente e considerada no diagnóstico e condução terapêutica do caso clínico.
Quase sempre, na primeira consulta, os pais estao ansiosos e desejam falar para o profissional tudo que julgam estar errado no comportamento dos adolescentes, como seus hábitos alimentares inadequados e ausência de atividade física.25-28 Também não percebem, conscientemente, as suas parcelas de responsabilidade no desenvolvimento da obesidade no filho. O profissional deve ser capaz de criar estratégias que impeçam que essa postura interfira na construção do vínculo com o adolescente, que pode desistir do tratamento ao perceber no profissional a mesma atitude crítica e acusadora dos pais. Acolher os pais em outro momento (com a concordância do adolescente), ou, de preferência, encaminhá-los para atendimento com outro profissional da mesma equipe interdisciplinar pode ser uma boa estratégia. É importante ressaltar que a participação da família no processo de atendimento do adolescente é altamente desejável e necessária, mas os limites desse envolvimento, devem ficar claros para a família e para o jovem. Deve ser assegurado confidencialidade e sigilo na consulta, ou seja, o profissional de saúde não repassará informações obtidas durante a consulta para os pais e/ou responsáveis sem a permissão do adolescente. Isto se verifica em situações na qual o adolescente tem capacidade de avaliar seu problema, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente (Art.103 - Código de Ética Médica, Art. 154 - Código Penal Brasileiro). Nas situações em que se caracteriza a necessidade da quebra do sigilo, o adolescente deve ser informado, esclarecendo-se os motivos para essa atitude.24
Muitos encontros serao necessários para compreensão e construção do caso clínico a partir da interação entre os membros da equipe interdisciplinar. A discussão do caso deve fazer parte da rotina de trabalho da equipe interdisciplinar. Porem é interessante que o adolescente se sinta vinculado a um profissional (habitualmente o médico ou nutricionista, que fazem o primeiro atendimento do adolescente) que será o responsável pelo caso e pelo encaminhamento para outras especialidades quando necessário. O profissional (ou equipe) precisa conhecer os fatores físicos, nutricionais, emocionais, relacionados com a família e sociais que determinam o processo de ganho excessivo de peso do adolescente. Essa condição é necessária para que este compreenda seu processo diminuindo a resistência, por exemplo, em aceitar o tratamento psicológico quando for necessário. A consulta com o adolescente, portanto, não se resume a um espaço para o profissional, seja médico ou nutricionista, reforçar suas recomendações e fazer investigações sobre a alimentação do paciente. No momento da consulta é necessário o desenvolvimento de escuta cuidadosa e atenta para as questoes familiares, psíquicas e sociais envolvidas. Essas questoes podem ser apuradas também por meio de outras metodologias, tais como: atividade em grupo, roda de conversa, discussão de vídeos e filmes abordando temas escolhidos pelos adolescentes relativos à adolescência ou outros temas de interesse tais como, dificuldades com as transformações biopsicossociais, com a imagem corporal, com a sexualidade, conflitos familiares, cuidados com a saúde (vacina, sono, lazer), com a nutrição, afetividade e outros.
Nos encontros individuais ou em grupo o profissional (ou equipe) precisa ajudar o adolescente a resgatar sua percepção de fome e de saciedade fisiológicas além de ampliar a consciência das vivências e sentimentos envolvidos na ingestao excessiva. O trabalho em pequenos grupos possibilita, a partir de um ponto identificador - a obesidade - que o paciente trabalhe suas particularidades com muita eficiência. Os comprometimentos emocionais decorrentes da obesidade neste período em que as transformações corporais se iniciam, assumem dimensões significativas no processo psicossocial da formação da identidade do adolescente, com grande prejuízo na sua qualidade de vida. Com freqüência observa-se diminuição da auto-estima, dificuldades com a imagem corporal, dificuldades nos relacionamentos sociais e no exercício da sexualidade com sofrimento psíquico importante e forte tendência para depressão, evasão escolar, ansiedade, compulsão alimentar e outros transtornos alimentares. Todos esses aspectos podem também ser causa de não adesão ao tratamento e precisam ser cuidados pela equipe.
Nos encontros com os pais é importante conhecer a história dos mesmos, seus sentimentos, crenças e experiências relacionadas com condutas alimentares inadequadas e com relacionamentos familiares conflituosos. Deve ser nvestigado quando o filho começou a engordar, quais os fatores desencadeantes, a história alimentar da criança desde o nascimento, além dos hábitos alimentares e de lazer da família. Nesse contexto, é possível conhecer fatores que impedem e facilitam o sucesso do tratamento no convívio familiar.
Na relação dos pais com os filhos observam-se com freqüência dois comportamentos extremos: o autoritarismo, no qual o filho (a) recebe críticas o tempo todo e os pais exigem que eles façam "tudo certinho", sem poder errar e sem considerar as dificuldades como naturais no processo de mudança, ou a negligência, no qual pais "largam o filho (a) prá lá", perdem as esperanças e ficam esperando brotar espontaneamente nos mesmos a consciência necessária para que eles emagreçam. Assim, não é incomum expressões do tipo "esta será a última vez que eu levo você ao médico se não tiver emagrecido" ou "você não faz nada que o médico manda, quero só ver o que ele vai dizer quando você for medir o peso". É importante que os pais compreendam que a "desobediência e pirraça" de seus filhos, de fato é uma manifestação de indignação diante desta postura de ajuizamento, decorrente da ausência de uma compreensão ampliada do problema. O comer a mais pode ser visto também como uma forma que os obesos encontram para confrontar os pais. O atendimento individual ou em grupo dos pais é crucial para ajudá-los a assumir, a partir de uma ampliação da percepção dos motivos que levam o filho a engordar, uma postura cuidadosa na relação com os filhos que promova mudanças efetivas no tratamento. Abre-se aos poucos a possibilidade de novas perspectivas de vida construída passo a passo e baseada no respeito a si mesmo e ao outro, com enriquecimento e valorização do convívio familiar.10, 27,28
A partir desse trabalho de ampliação da percepção dos pais e reflexão sobre seus mitos, crenças e sentimentos relacionados à sua conduta alimentar inadequada, os pais devem ser incentivados a adotar na família, por meio de mudanças construídas no passo a passo, uma alimentação balanceada, servida em quantidades compatíveis com as necessidades nutricionais de seus membros. É aconselhável e saudável que alimentos densamente calóricos, com excesso de açúcar ou gordura, sejam consumidos em pequenas quantidades e esporadicamente por toda família, sem sua proibição e privilegiando também os magros com uma dieta adequada. Proibir o adolescente obeso de ingerir um alimento calórico que foi oferecido para o restante da família é uma atitude desaconselhável, que pode agravar ainda mais o problema. Assim, os pais devem ser informados sobre os malefícios para qualquer pessoa da ingestao freqüente de alimentos inadequados para a saúde. Como exemplo, ressaltar que refrigerantes a base de noz de cola, devido ao excesso de fosfato, podem interferir na absorção de cálcio e, por isso, não devem ser usados no cotidiano da família. Os pais devem propiciar rituais de refeição que ampliem o prazer da família na mesa, com ambientes harmônicos, tempo adequado para degustação, refeição saborosa e saudável.10,27,28 Essa recomendação é importante por ser condição para o resgate da percepção de saciedade. A condição socioeconômica, os gostos e bons hábitos alimentares da família devem ser valorizados e é importante que eles recebam informações sobre os fundamentos da dieta equilibrada, que promove a saúde e previne as doenças crônico-degenerativas.
Informações sobre a fisiologia humana, aspectos metabólicos e aproveitamento de energia precisam também ser conhecidas pelo adolescente e seus pais. É relevante observar que a maioria dos pacientes não tem conhecimentos de anatomia e da fisiologia corporal. Desconhecem o caminho pelo qual os nutrientes chegam à corrente sanguínea e participam do processo metabólico e não sabem que o aumento do peso é decorrente do acúmulo de gordura no corpo devido ao excesso de alimento ingerido. Ignoram também que é possível perceber a saciedade em cada refeição. Portanto, não há necessidade de "passar dieta" com as porções de alimentos determinadas para cada refeição e com listas de permitidos e proibidos. Entretanto, é preciso resgatar um estilo de vida que valorize os rituais nas refeições, a importância da percepção da saciedade e as diretrizes da alimentação equilibrada e do preparo adequado dos alimentos - quantidade de açúcar, óleo e alimentos industrializados que devem ser adicionados à culinária da família. Dietas muito restritivas não são aconselháveis, pois podem promover déficit de crescimento em estatura. Um dos grandes inconvenientes do "passar dieta" é a ênfase dada aos alimentos proibidos e permitidos, equivocadamente considerados, respectivamente, alimentos que engordam e que não engordam. Os obesos e familiares submetidos a essas dietas ficam obsessivos pelos alimentos permitidos/proibidos, perdendo a espontaneidade e a liberdade diante dos alimentos e os cuidados necessários para percepção da fome e da saciedade. Diante de um doce ("alimento que engorda") a única saída é engordar, não existindo a possibilidade de percepção dos sinais indicadores de saciedade. Come-se com medo de engordar, uma situação que impossibilita a sensação de prazer na refeição, condição necessária para que a saciedade ocorra.10,11,27,28
Considerando a complexidade inerente ao estado de obesidade é desejável que o profissional que lida com adolescentes obesos invista na ampliação das suas habilidades técnicas e humanas, para que sua atuação não se torne fragmentada na abordagem ao paciente. Em geral, o campo de atuação do profissional tende a se fundamentar no tratamento da "obesidade", deixando-se marginalizado o adolescente obeso separado de seu contexto psíquico e social. Assim, na abordagem do adolescente obeso deve ser considerada sempre a singularidade do caso a caso, pois possibilita maior consistência no trabalho assistencial pelo profissional de saúde.
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