ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Migração de pacientes para transplante hepático
Migration of patients for liver transplantation
Agnaldo Soares Lima1; Karina Paula Medeiros Prado Martins2; Flávia Couto de Almeida2; Luciana Costa Faria3
1. Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Coordenador do Grupo de Transplante do IAG-HC/UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Graduanda do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Professora Adjunto, do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. Coordenadora Clínica do Grupo de Transplante do IAG-HC/UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Agnaldo Soares Lima
Av. Alfredo Balena, 189 sala 1405
Belo Horizonte, MG - Brasil CEP: 30130-100
E-mail: agnaldo@gold.com.br
Recebido em: 26/09/2011
Aprovado em: 23/10/2011
Instituição: Grupo de Transplante do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A necessidade premente de tratamento leva o hepatopata candidato a transplante de fígado a verdadeiras peregrinações. A migração do paciente em busca de tratamento se faz por indisponibilidade do recurso em sua regiao de origem ou pelo benefício de obtê-lo mais rapidamente em outros centros. O objetivo deste estudo é identificar a procedência dos pacientes encaminhados para transplante de fígado no Hospital das Clínicas da UFMG e caracterizar a migração de pacientes para essa modalidade de tratamento.
MÉTODO: foram revistos os registros de 1.241 pacientes encaminhados no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2010. Dados clínicos, demográficos e modo de alocação (cronológico ou por gravidade) foram comparados segundo sua procedência. A pontuação Model for End-stage Liver Disease (MELD) ao encaminhamento, as indicações clínicas, o tempo de espera, a mortalidade em lista e o acesso ao tratamento foram comparados entre residentes e não residentes em Minas Gerais. Foram excluídos casos pediátricos, retransplantes, hepatite fulminante e os pacientes cujos prontuários não dispunham de informações mínimas adequadas para análise.
RESULTADOS: entre os 847 pacientes analisados, 68% eram homens. O MELD inicial médio era de 16,9±5,4 e a permanência em lista de espera foi de 340 dias (mediana). Dos pacientes, 84,1% eram residentes em Minas Gerais. As indicações mais frequentes foram as cirroses por álcool (32,4%) e pelo VHC (28,1%). Pacientes de outros estados apresentaram menos tempo de espera (p<0,05) e menos mortalidade em lista de espera no período pré e pós-MELD. O número de migrantes não se alterou com a implantação da alocação pelo MELD. Candidatos oriundos da regiao central de Minas (6,92 casos/milhao habitante/ano) tiveram mais acesso ao transplante que os de outras regioes (p<0,05). A incidência de óbitos em lista de espera não foi diferente entre as regioes do estado.
CONCLUSÃO: pacientes do interior de Minas tiveram menos acesso ao transplante hepático do que os da regiao central. Pacientes que migram de outros estados para Minas Gerais à procura de transplante hepático esperam menos tempo em lista.
Palavras-chave: Transplante de Fígado; Lista de espera Terapeutica; Migração; Sistema MELD.
INTRODUÇÃO
O transplante de fígado é a única modalidade terapêutica eficaz no tratamento de hepatopatias graves e em certas doenças metabólicas e neoplasias originadas no fígado. Seus resultados animadores motivaram o encaminhamento de pacientes, em todo o mundo, em número muito superior à disponibilidade de enxertos para transplante. No Brasil, a desproporção do número de candidatos para enxertos é ainda maior, fruto de captação de órgaos deficientes, quando comparada à de países cuja estrutura geral de assistência à saúde e de atividade de transplante é mais desenvolvida. O Brasil caracteriza-se, ainda, por diferenças regionais não somente na disponibilidade de centros transplantadores - com alguns estados que não realizam transplantes de fígado - mas, principalmente, na eficiência na captação de órgaos. O resultado da disparidade regional de captação de órgaos e do número de candidatos em lista é a variabilidade de tempo de espera até que o transplante seja realizado.
Os candidatos a transplante hepático frequentemente são obrigados a migrar para outras cidades e até para outros estados à procura dessa modalidade terapêutica, quando não disponível em seu local de residência. Outras vezes, mesmo com o procedimento disponível em seu estado ou regiao, ocorre migração de pacientes em busca de filas de espera com menos pessoas inscritas, com perspectiva de transplante mais rápido que em seu local de origem.
O objetivo do presente estudo foi analisar a procedência dos pacientes encaminhados para transplante de fígado nos últimos 11 anos (janeiro 2000 a dezembro 2010), no Hospital das Clínicas da UFMG (HC-UFMG), principal centro transplantador de fígado de Minas Gerais, para avaliar a incidência de migrantes de outros estados e a representação de pacientes do interior mineiro na população que tem acesso ao procedimento.
CASUISTICA E MÉTODO
Foi realizado estudo retrospectivo de pacientes encaminhados ao ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG e aceitos como candidatos ao transplante de fígado, em relação à sua procedência e evolução na lista de espera, com base em prontuário médico e arquivo eletrônico de dados do Grupo de Transplante do Instituto Alfa de Gastroenterologia (software Zeus).
Foram identificados 1.241 pacientes considerados para transplante de fígado, entre janeiro de 2000 e dezembro de 2010. Nesse período ocorreram 601 transplantes de fígado no HC-UFMG, em 582 pacientes. Foram excluídos casos de retransplantes, de pacientes pediátricos (abaixo de 12 anos) e aqueles com dados incompletos que impediam a análise, os que consultaram uma única vez e não retornaram ou que não retornaram com exames que permitissem a confirmação da indicação ao transplante. Assim, foram analisados os dados epidemiológicos de 857 pacientes. A amostra corresponde a 88,1% do total de transplantes realizados e a 88,7% dos pacientes transplantados na instituição (682 transplantes em 656 pacientes) desde 1994.
Os pacientes foram caracterizados por idade, sexo, indicação ao transplante, data de realização do transplante e pelo local de domicílio. Esse último foi agrupado nas chamadas "regioes de planejamento" do estado de Minas Gerais1 e quando procedentes de outras regioes foi mencionado o estado de origem. Também foi calculado o valor da pontuação MELD no primeiro exame disponível (MELD inicial), bem como o tempo de espera, da inscrição até o procedimento cirúrgico ou óbito em lista.
A proporção de pacientes oriundos de cada "regiao de planejamento" foi obtida pelo cálculo de casos/100.000 habitantes da população de cada regiao, medida em 2007 pela Fundação Joao Pinheiro2. Foram comparadas as taxas de procedência de cada regiao de planejamento, entre todos os pacientes admitidos no ambulatório e entre os que alcançaram o transplante, com o objetivo de verificar a homogeneidade de acesso ao ambulatório e ao tratamento cirúrgico propriamente dito.
A influência da mudança na legislação do Brasil, que modificou a lista dos pacientes candidatos ao transplante para ordenação por gravidade a partir de julho de 2006, foi avaliada pela comparação dos índices estudados em intervalos anteriores e posteriores a essa data.
A avaliação estatística de diferenças foi feita em software SPSS versão 17. Os testes estatísticos utilizados foram Mann-Whitney, Kruskal Wallis e qui-quadrado, de acordo com a característica da variável analisada. Diferenças foram consideradas no caso do valor de p<0,05.
RESULTADOS
Os pacientes estudados apresentavam mediana de idade de 52,0 anos e média de 50,0±12,9 anos. O sexo masculino predominou, com 68% dos casos. A primeira avaliação laboratorial produziu valor de pontuação MELD de 16,9±5,3 (mediana 16,0). Não foram considerados pontos atribuídos às chamadas "situações especiais", sendo o valor da pontuação calculado pelo emprego direto da fórmula matemática do MELD. Após a avaliação do paciente no serviço de transplante, seguiram-se os seguintes desfechos: quatro (0,5%) tiveram a indicação de transplante recusada após exames iniciais, seis (0,7%) transferiram seu tratamento para outro serviço, 18 (2,1%) apresentaram melhora ao longo do tratamento e não necessitaram de transplante, 22 (2,6%) apresentaram contraindicação ao transplante, 54 (6,3%) aguardavam em lista ao término do período de estudo, 67 (7,8%) foram excluídos devido à perda de seguimento, 255 (29,8%) faleceram durante o período de espera e 431 (50,3%) foram transplantados. A mediana do tempo de espera em lista foi de 340 dias. As principais indicações primárias e secundárias ao transplante relacionaram-se à cirrose (Tabela 1).
Procedência dos pacientes
A origem dos pacientes foi o estado de Minas Gerais em 84,1% dos casos. O Rio de Janeiro foi a segunda unidade da federação que mais encaminhou pacientes para transplantes no HC-UFMG (Tabela 2 e Figura 11).
Os pacientes oriundos da regiao central de Minas Gerais foram os mais numerosos, com índice de 6,92 casos por milhao de habitante/ano (p<0,05) comparativamente aos de outras regioes (Tabela 3).
A comparação entre pacientes mineiros e oriundos de outros estados mostra médias de idade de 50,69±12,37 anos (mediana 53 anos) e 50,13±14,17 anos, (mediana 52,8 anos), respectivamente (p=0,546) (Tabela 7). Também foi semelhante a pontuação MELD inicial entre mineiros e pacientes vindos de outros estados, isto é, 16,83±5,32 (mediana 16) e 16,4±5,50 (mediana 15), respectivamente (p=0,562). O tempo de espera em lista, ao contrário, foi mais longo para os residentes em Minas Gerais, 515,23±466,68 dias (mediana 371,5 dias), em comparação com os residentes em outros estados, 312,68±418,53 dias (mediana 180 dias), (p=0,002) (Figura 2).
As principais doenças que motivaram o encaminhamento para transplante de fígado de pacientes oriundos de Minas Gerais foram cirrose etanólica (30,0%), secundária ao vírus da hepatite C (22,3%), criptogênica (15,1%), carcinoma hepatocelular associado a hepatopatias crônicas (7,3%) e a cirrose após a infecção pelo vírus da hepatite B (6,0%). Entre os pacientes provenientes de outros estados, predominou a cirrose secundária ao vírus da hepatite C (45,0%), seguida da etanólica (13,4%), do carcinoma hepatocelular (12,0%) e da cirrose criptogênica (6,0%).
A migração para transplante antes e após a alocação de órgaos pelo sistema MELD
Considerando o início de vigência da legislação brasileira, que determina alocação de enxertos para transplante de fígado (julho 2006) segundo a gravidade dos pacientes avaliada por meio do MELD, os pacientes foram distribuídos entre encaminhados pré (n=408) e pós-MELD (n=449). Dos pacientes recebidos no ambulatório de transplante, no período pré-MELD, 93 (22,8%) não permaneceram na lista por motivos diversos (transferência, contraindicações, melhora, etc.), 116 faleceram durante o período de espera (28,4%) e 199 foram transplantados (48,8%). No período pós-MELD, entre os 449 pacientes recebidos, 78 (17,4%) não permaneceram na lista, 139 (31,0%) faleceram durante o período de espera e 232 (51,7%) foram transplantados.
Entre os 800 pacientes cuja procedência foi identificada, a incidência de migrantes para transplante não se alterou após o início do MELD, sendo 11,6% antes de julho 2006 e 8,5% no período subsequente (p=0,14) (Tabela 4). A incidência de óbitos em lista de espera também não se alterou significativamente antes e após a introdução do MELD (p>0,06). Os pacientes de outro estado apresentaram menos mortalidade, enquanto em lista de espera, tanto no período pré (p=0,016) quanto pós-MELD (p=0,034) (Tabela 5).
A principal indicação ao transplante modificou-se nesses dois períodos. Após a introdução do MELD, aumentou o número de pacientes com carcinoma hepatocelular encaminhados para transplante. Pacientes com cirrose etanólica, além de representarem a maior frequência entre as indicações ao transplante, também foram os que mais evoluíram para óbito em lista de espera (28,9 e 40,6%, respectivamente, nos períodos pré e pós-MELD). Outras indicações, como cirrose pós-viral C e criptogênica, apresentaram mortalidade pré-transplante de 18,8 e 18,0%, respectivamente, no período pré-MELD. Depois de julho de 2006, após a cirrose etanólica, as indicações mais frequentes foram a cirrose pós-viral C (20,0% mortalidade) e criptogênica (9,0% mortalidade). O carcinoma hepatocelular passou à quarta posição entre as indicações ao transplante após a introdução do MELD; e a mortalidade pré-transplante associada a essa indicação foi de 5,8% (Tabela 6).
Gravidade dos pacientes, antes e após a introdução da alocação pelo MELD
Antes da introdução do critério MELD para alocação de enxertos no Brasil, a idade e o tempo de espera em lista eram semelhantes, entre pacientes de Minas Gerais e migrantes. A pontuação MELD, ao momento do encaminhamento, era maior entre os mineiros (p=0,027) (Tabela 7). Após julho de 2006 houve elevação na média de idade dos mineiros, ao contrário da população de migrantes. A pontuação MELD dos pacientes oriundos de Minas Gerais tornou-se mais elevada após a introdução dos novos critérios de alocação. O mesmo ocorreu com pacientes oriundos de outros estados. O tempo de espera até o transplante, entretanto, foi reduzido na era MELD para os pacientes provenientes de Minas Gerais e para os migrantes.
A análise das variáveis "tempo de espera até o transplante", "pontuação MELD inicial" e "idade dos pacientes" não evidenciou diferença entre os pacientes provenientes das diferentes regioes de planejamento de Minas Gerais (Tabela 8).
DISCUSSÃO
A realização de transplante de fígado iniciou-se no Brasil nos anos 80 e encontra-se atualmente consolidada. São realizados anualmente no Brasil3 mais de 1.400 procedimentos, entretanto, esse número ainda é reduzido por milhao de habitante da população e irregular a distribuição de centros transplantadores nos diferentes estados. Os hospitais e equipes capacitados e autorizados para a realização do procedimento estao concentrados nas regioes Sul e Sudeste, particularmente em São Paulo, onde somente a capital abriga 18 equipes que realizam esse tipo de operação, em 13 diferentes instituições.
Os pacientes migravam para São Paulo em busca do tratamento de doenças hepáticas pelo transplante de fígado, entretanto, com o início de transplantes em outros centros, houve modificação na frequência dessa procura. Existem estados, especialmente na regiao Centro-Oeste e Norte do Brasil, onde o procedimento ainda não é realizado. Em Minas Gerais, o primeiro transplante hepático aconteceu em 1989 e, no Hospital das Clínicas da UFMG, em 1994. Apesar do longo histórico de atividade em Minas Gerais, o HC-UFMG, atualmente, permanece como o centro transplantador de fígado mais importante do estado, o que obriga pacientes do interior a percorrerem centenas de quilômetros em busca de atendimento.
Outro fenômeno migratório ocorre devido ao volume das listas de candidatos a transplante. Apesar do controle do Sistema Nacional de Transplantes em uma lista única nacional, a distribuição dos órgaos é regionalizada devido à grande dimensão territorial do país. O número de pacientes listados é, entretanto, heterogêneo entre os diferentes estados e depende, basicamente, do número de inscrições (pacientes em lista de espera) e do número de transplantes realizados. A medida que determinada lista de espera cresce, aumenta também o tempo de espera para transplante. Isso foi eloquente até julho de 2006, quando vigorava, na legislação brasileira de transplantes, o critério cronológico para alocação dos enxertos hepáticos. O período de espera por um fígado variava de poucos meses em certos centros a cerca de quatro anos em outros. Nesses centros, muitos pacientes não resistiam até o momento do transplante. Desde julho de 2006 a alocação de fígado no Brasil é feita segundo o critério da gravidade dos pacientes, medida pelo escore MELD para maiores de 12 anos e PELD para menores de 12 anos e suas respectivas situações especiais. O novo critério permite que os pacientes mais graves de cada lista sejam beneficiados com o transplante, mas, a rigor, não resolve o problema da expressiva disparidade entre o número de candidatos e o número de enxertos disponíveis. Assim, listas de grande volume apresentam muitos pacientes medianamente graves que buscam, em serviços de outras regioes ou estados com listas menores, mais agilidade no acesso ao transplante. Desse modo, a migração para o transplante continua a existir entre estados do Brasil, mesmo após a alocação por gravidade.
O presente estudo analisou as características da migração de pacientes para transplantes de fígado. Foram recuperados para análise a procedência, aspectos demográficos e clínicos de 800 pacientes, com 12 anos ou mais, encaminhados para transplante no HC-UFMG. A amostra foi representativa da casuística total do serviço, uma vez que correspondeu a 88,1% do total de transplantes realizados na instituição desde 1994 e a cerca de dois terços de todos os pacientes encaminhados ao ambulatório no período de 2000 a 2010. Os pacientes oriundos de Minas Gerais corresponderam a 84,1% dos casos. Distribuídos segundo as regioes de planejamento do estado de Minas Gerais, pacientes procedentes da regiao central de Minas, onde se inclui a capital do estado, foram beneficiados com 66,2% de todos os transplantes. É evidente que o acesso ao transplante não foi homogêneo entre as regioes, quando a proporção da população de cada regiao foi analisada. A regiao central recebeu 6,92 transplantes por milhao de habitante e a diferença entre esta e todas outras regioes foi significante. A regiao noroeste de Minas foi a que menos encaminhou pacientes para transplante (0,28%). O tempo de espera até o transplante ou óbito em lista não foi diferente entre as diversas regioes. Da mesma forma, não houve correlação entre tempo de espera em lista com a situação econômica da regiao de origem, medida pelo PIB per capita. É possível que a desinformação sobre a disponibilidade do transplante, sobre as indicações do procedimento e o momento de encaminhar o paciente seja mais importante que as dificuldades econômicas da regiao, no entendimento das baixas taxas de acesso ao transplante.
Migrantes de outros estados constituíram 9,88% dos pacientes encaminhados para transplante no Hospital das Clínicas da UFMG, sendo 11,6% antes da instituição da alocação de enxertos pelo MELD e 8,5% após. Eles receberam 13,2% dos transplantes, sendo 16,2% na era pré-MELD e 10,8% no período pós-MELD. Foram mais numerosos os procedentes do estado do Rio de Janeiro (2,2%), seguidos por pacientes de São Paulo e da Bahia (2,1% cada). Após a instituição do MELD como critério para alocação de enxertos, a gravidade dos pacientes, ao momento da inscrição, tornou-se mais elevada, tanto entre os pacientes de Minas quanto entre os demais. Tal mudança pode ser explicada por ter se tornado ineficaz a prática de inscrever precocemente os pacientes na lista de espera, como se fazia quando a ordem de alocação era cronológica. Por esse mesmo motivo, é lógico o achado de menos tempo de espera dos pacientes na era pós-MELD, uma vez que aqueles inscritos com mais gravidade passaram a assumir posições mais elevadas na lista de candidatos e transplantavam rapidamente. O tempo de espera, entretanto, foi significativamente mais curto para pacientes de outros estados, no período pós-MELD. Provavelmente, os pacientes migrantes que vieram procurar transplante em outro estado apresentavam pontuação MELD de tal ordem que era insuficiente para permitir o transplante rápido em seu local de domicílio, ainda assim, era mais elevada que a pontuação dos pacientes mineiros. O risco de mortalidade na lista de espera é relacionado à disponibilidade de enxertos na regiao4.
A iniquidade no acesso ao transplante não é particularidade do nosso meio. Nos Estados Unidos, Axelrod et al.5 descreveram desfavorecimento no acesso ao transplante renal e cardíaco de pacientes de áreas rurais ou pequenas cidades. O encaminhamento tardio dos pacientes de áreas rurais ou pequenas cidades foi um dos indicativos de menos acesso evidenciados. A presente casuística não mostrou diferença na gravidade dos pacientes encaminhados do interior do estado, de acordo com o MELD. Em outro estudo americano, considerando pacientes encaminhados para transplante de fígado, apenas 50% dos pacientes listados foram transplantados, o que correspondeu a 35,2% dos pacientes encaminhados aos serviços6. Mulheres, negros e pacientes sem seguro tiveram menos chance de serem avaliados em serviços de transplante.
A principal indicação ao transplante não se modificou com o advento do MELD. A cirrose de origem etanólica foi a indicação mais frequente, seguida da cirrose causada pelo vírus da hepatite C e da cirrose criptogênica. O carcinoma hepatocelular, associado à hepatopatia crônica, dobrou sua incidência de indicação após a introdução do MELD. Em sua maioria, pacientes com carcinoma hepatocelular que apresentam indicação ao transplante possuem boa função hepática e, portanto, baixa pontuação MELD. Seguindo-se a alocação por pontuação de gravidade, esses pacientes não teriam oportunidade do transplante antes da progressão sistêmica do tumor. Justifica-se, dessa forma, o benefício da chamada "situação especial", em que recebem pontuação predeterminada que permite transplantá-los em curto período de tempo.
Os pacientes que se deslocam a outros estados em busca de transplante de fígado sofrem, além das agruras da doença, com as dificuldades e despesas com moradia, com a distância da família e amigos e com a perda de vínculo com o trabalho. A solução definitiva para a migração só pode ser vislumbrada a médio e longo prazo, embora seja garantido o direito de buscar o transplante no serviço que melhor convier. É fundamental a elevação no número de captações de órgaos, saindo dos 9,9 /milhao de habitante para cifras mais parecidas com as europeias ou americanas.3 A instalação de novos centros de transplante nas áreas onde o tratamento não é realizado causaria também forte impacto de elevar a qualidade de assistência médica. A presença da atividade de transplante dissemina o conhecimento da população leiga e médica sobre esse recurso terapêutico e facilitaria o acesso de pacientes mais desprovidos, pelo encurtamento da distância até o centro transplantador. Outro efeito salutar é o de estimular a captação de órgaos em regioes onde não existia o incentivo para tal prática.
CONCLUSÃO
Em Minas Gerais, pacientes do interior têm menos acesso ao transplante que aqueles da regiao central. Pacientes que migram de outros estados à procura de transplante aguardam menos tempo em lista que os oriundos de Minas Gerais. A introdução do MELD como critério de alocação não alterou a migração para outros centros, nem a mortalidade em lista de espera (pré-transplante).
REFERENCIAS
1. Fundação João Pinheiro. Perfil demográfico do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Centro de Estatística e Informações; 2010.
2. Fundação João Pinheiro. Centro de Estatística e Informações. Informativo CEI. Belo Horizonte, 2008.
3. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos - ABTO. Registro Brasileiro de Transplante, 2010;16(4).
4. Yeh H, Smoot E, Schoenfeld DA, Markmann JF. Geographic inequity in access to livers for transplantation. Transplantation. 2011;91:479-86.
5. Axelrod DA, Guidinger MK, Finlayson S, Schaubel DE, Goodman DC, Chobanian M, Merion RM. Rates of solid-organ wait-listing, transplantation, and survival among residents of rural and urban áreas. JAMA. 2008;299(2):202-7.
6. Bryce CL, Angus DC, Arnold RM, Chang CCH, Farrell MH, Manzarbeitia C et al. Sociodemographic differences in early access to liver transplantation services. Am J Transplant. 2009;9:2092-3101.
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