ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
A Medicina Mecânica
Ricardo Menezes Macedo
As entidades médicas nacionais lutam pela aprovação da chamada Lei do Ato Médico. Observam que os médicos se ressentem com o declínio de seu poder enquanto assistem ao progressivo avanço de outras profissões técnicas sobre seu espaço de trabalho.
Já os poderes públicos, tendo que responder a cada instante à sua própria ineficiência, optam, também, pela utilização dos profissionais não médicos para atender - sob o âmbito apenas técnico - às demandas dos doentes. É mais rápido e o custo menor. A pressão política diminui.
O resultado da dupla atuação, de mercado e pública, deixa os médicos inseguros quanto ao seu futuro profissional.
A saída encontrada foi a regulamentação da profissão médica por meio de uma lei. O argumento jurídico sustentado é o de que a medicina é a única das profissões da saúde que ainda não foi regulamentada.
É sabido que os médicos têm amargado uma sensação de insatisfação em relação à profissão. Sabemos também que, em situações de grande aflição e falta de alternativas, as propostas corporativas tendem a prevalecer sem a devida reflexão quanto à suas possíveis conseqüências.
É histórica e de grande importância a participação dos médicos na vida política do país. Em várias ocasiões, porém, nossas preocupações foram utilizadas pelos poderes estatais ou corporativos, para fazer valer outros interesses. Sob o argumento da higiene várias políticas de saúde pública, como a salubridade, o controle das epidemias, foram utilizadas pelo Estado - já no século XIX - para controlar populações segundo o interesse das elites. Outros exemplos se seguiram, a campanha da vacina, no início do século passado, o interesse econômico dos grandes laboratórios e por aí vai.
A medicina não é tema de discussão somente dos médicos. Ela mesma demandou, ao longo do tempo, ampliar seu campo de atuação. E não me parece, também, que seja depreciativo o fato de a medicina não estar regulamentada no Brasil. Pelo contrário. Questiono se a regulamentação a distingue de outras profissões ou se a torna semelhante.
A medicina se destaca também pelo fato de não repousar sobre parâmetros apenas normativos. É uma profissão repleta de incertezas, daí entendê-la não apenas como uma técnica, mas como uma arte. Corremos o risco - dada a pressa das instituições médicas em dar uma resposta política que as justifique - de nos isolarmos das outras profissões e da própria sociedade. Assim, mais uma vez, estaríamos aliviando o Estado das tensões sociais, do barulho e efervescência das instituições corporativas quando, organizadas, alçam ações políticas de profunda importância tanto corporativa quanto para a população.
O avanço tecnológico, as peculiaridades da pós-modernidade, nos têm levado a pensar de forma mais específica, dando mais atenção a particularidades, nos distanciando, em contrapartida, da compreensão geral das coisas. Dizemos que tal artigo científico diz uma verdade, que tal equipamento determina o diagnóstico, que o poder público determina aleatoriamente onde e quando internar o doente, que o mercado, os planos de saúde, ditam qual será nossa opção por uma especialidade ao longo de toda uma vida. Mas, e nós? O que temos a dizer? A literatura médica sugere que estamos perdendo nossa autonomia, nosso poder de decisão. É como se a medicina fosse agora mecânica e não uma arte humana. Nas palavras do psicanalista Dr. Sérgio de Campos, uma medicina prêt-à-porter.
Penso que o ato médico se dá é no próprio ato, não numa lei. Iremos resgatá-lo quando tivermos autonomia sobre o ato em si, e para isso é imperativo praticá-lo em toda a sua extensão, reassumindo nossa autonomia, nossa capacidade de articulação política com outros setores, tendo a literatura médica, o poder público, o mercado, não como verdades absolutas, mas como substratos importantes para a nossa tomada de decisão única e singular sobre a vida de outra pessoa.
É possível, também, que mais uma vez, querendo ter garantido o espaço de nossa profissão, estejamos entregando-a a um outro, agora um juiz ou legislador, para que ele - e não nós - decida sobre o que é ou não ato médico.
Uma avaliação mais apressada tenderá a concluir que estaremos mais seguros sob a tutela de uma lei corporativa. Talvez devamos olhar para esta proposta de lei mais como um sintoma das nossas dificuldades, ao invés de creditá-la como terapêutica.
Prof. Ricardo Menezes Macedo
Departamento de Clínica Médica da UFMG.
Nota do Editor. O Professor Ricardo Menezes escreveu o texto acima atendendo a convite dos editores. As opiniões expressas são de inteira responsabilidade do autor e não traduzem, necessariamente, o pensamento da Revista Médica de Minas Gerais.
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