RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 1

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Artigos Originais

Estado nutricional de crianças de baixo e alto nível socioeconômico de creche filantrópica e escola primária privada em Belo Horizonte-MG

Nutritional status of children from public day care center and private elementary school in Belo Horizonte, differing in social economic levels

Quésia Tamara Mirante Ferreira1; Anderson Melo Queiroz1; Priscila de Siqueira Ramos1; Frederico Duarte Garcia1; Cristiano de Almeida Correia1; Aleyson Fabian Terra1; Regina Lunardi Rocha2; Eugênio Marcos Andrade Goulart2

1. Acadêmicos do curso de Medicina da UFMG
2. Professores adjuntos do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

Quesia Tamara Mirante Ferreira
Rua Muriaé, 42b. Santa Amélia
Belo Horizonte-MG

Data de Submissão: 20/11/03
Data de Aprovação: 15/11/04

Faculdade de Medicina da UFMG

Resumo

OBJETIVO: Avaliar o estado nutricional de dois grupos de crianças (uma de alto e outra de baixo nível socioeconômico) da região Centro-Sul da cidade de Belo Horizonte-MG e compará-las por meio dos índices Peso/Idade (P/I), Estatura/Idade (E/I) e Índice de Massa Corporal (IMC).
CASUÍSTICA E MÉTODO: Foram obtidos dados antropométricos de 280 crianças de escola particular (grupo A) e de 489 crianças de creche filantrópica (grupo B). A partir das medidas de peso e estatura, chegou-se aos escores z para P/I, E/I e IMC. Os dados obtidos foram comparados com valores de referência internacionalmente aceitos.
RESULTADOS: A média do escore z do indicador peso/idade no grupo B foi de 0,01 ± 1,10 e no grupo A, 0,47 ± 1,34. Houve maior prevalência de valores do índice P/I abaixo de -2 escore Z na classe A. (A=3,6%, B=0,8%, p=0,013). Encontrou-se prevalência de 3,7% e 14,5% de obesidade e sobrepeso, respectivamente, na população total, sendo que houve predomínio de obesidade e sobrepeso no grupo A (p=0,024).
CONCLUSÕES: A população estudada apresenta-se com escore z P/I acima do percentil 50 e baixos índices de desnutrição, sendo que, no grupo de crianças de alto nível socioeconômico houve maior prevalência de desnutridos. Em relação à obesidade, os valores encontrados estão dentro da média internacional e as crianças de alto nível socioeconômico também apresentaram maiores índices de obesidade e sobrepeso.

Palavras-chave: Estado Nutricional; Antropometria; Fatores socioeconômicos; Transtornos da nutrição infantil/epidemiologia; Desnutrição/epidemiologia; Obesidade/epidemiologia

 

INTRODUÇÃO

As recentes constatações mostram melhoria dos índices antropométricos das crianças brasileiras, o que pode ser reflexo da diminuição na desnutrição infantil no Brasil, que vem ocorrendo nas duas últimas décadas1. Considerando o indicador peso para a idade, observa-se redução da desnutrição em 20,8%, no país como um todo, de 1989 a 19962,3. Isso pode ser explicado pela expansão do saneamento básico, pelos níveis crescentes de escolaridade materna, pelo maior acesso da população aos serviços de assistência à saúde e pelo aumento de cobertura de programas de suplementação alimentar1.

Dados antropométricos são largamente utilizados para avaliar padrões nutricionais de crianças individualmente, também como ferramenta de saúde pública para análise nutricional de populações, ou para comparar diferentes grupos populacionais4.

Embora a desnutrição tenha diminuído no Brasil, ela constitui ainda problema de saúde pública. Na população de Belo Horizonte-MG, ainda observa-se, nos ambulatórios de pediatria, presença significativa de crianças desnutridas5.

Em relação à obesidade infantil, sua prevalência está aumentando rapidamente em todo o mundo6. No Brasil, isso também tem ocorrido, paralelamente à diminuição da desnutrição7,8.

É sabido que populações de diferentes níveis socio econômicos apresentam diferentes condições de vida, tais como habitação, alimentação, saneamento básico, assistência à saúde, desporto e educação, que de alguma forma interferem no processo nutricional das crianças.

O presente estudo foi desenhado para avaliar o estado nutricional, por meio de parâmetros antropométricos, em corte transversal, de dois grupos de crianças (uma de alto e outra de baixo nível socioeconômico) da região Centro-Sul da cidade de Belo Horizonte-MG e compará-las por meio dos índices Peso/Idade (P/I), Estatura/Idade (E/I) e Índice de Massa Corporal (IMC).

 

CASUÍSTICA

Foram estudados dois grupos de crianças e adolescentes residentes na região Centro-Sul de Belo Horizonte-MG: um grupo de escola particular (Grupo A) e um grupo de creche filantrópica (Grupo B).

Todas as crianças entre um e 16 anos, regularmente matriculadas na escola e na creche, desde que não houvesse nenhuma objeção à participação na pesquisa (da própria criança ou dos pais/responsáveis), foram incluídas no estudo.

Região Centro-Sul de Belo Horizonte-MG

A região Centro-Sul de Belo Horizonte é considerada como de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais alto (IDH=0,849), quando comparada às outras regiões da cidade (média de Belo Horizonte: IDH = 0,780)9. Entretanto, algumas áreas dessa região fazem parte do Mapa de Exclusão Social da Prefeitura Municipal, por possuírem alto índice de déficit nas seguintes dimensões: moradia, educação, emprego, assistência jurídica e serviços de saúde9.

Enquanto as crianças do grupo A são consideradas de alto nível socioeconômico, por residirem na região Centro-Sul de Belo Horizonte, as crianças da população B, apesar de serem também residentes da região Centro-Sul, moram na Favela do Cafezal, uma das áreas de exclusão social. Por isso foram consideradas como de baixo nível socioeconômico.

A creche filantrópica recebe recursos financeiros de instituições nacionais e internacionais, que permite o desenvolvimento de programas de educação, alimentação e lazer para as crianças. Elas permanecem na creche das oito às 17 horas, onde fazem cinco refeições, em média. O cardápio diário para cada faixa etária é preparado por nutricionista.

Estas crianças são avaliadas, no mínimo, semestralmente, por médico, que registra seus dados antropométricos e de saúde. É desenvolvida, ainda, por enfermeira, busca ativa de crianças com índice P/I abaixo do esperado, que são catalogadas e acompanhadas, recebendo nutrição e atenção especial, até que saiam do estado de desnutrição.

 

MÉTODO

Os dados antropométricos foram obtidos em visitas diárias e locais, nos meses de setembro e outubro de 2001.

As crianças foram medidas em local reservado. Na creche, foram cedidas à equipe duas salas: um consultório médico e outro odontológico. Na escola, foi utilizada uma sala especial, usada rotineiramente para recreação das crianças.

Para as medidas de peso foram usadas as seguintes balanças: para as crianças que ficam de pé (a partir de três anos), foi usada balança do tipo "plataforma", com escala de 100 g e peso máximo de 150 kg. Para as crianças de colo (um e dois anos), foi utilizada balança do tipo "bebê", com escala de 10 g e peso máximo de 16 kg.

Para as medidas de altura, na creche, foram usados antropômetros verticais e horizontais. Antropômetros verticais, da marca Filizola (com escala de 0,5 cm e altura máxima de 190 cm), foram usados para medir as crianças de idade maior ou igual a três anos e antropômetros horizontais, da marca Dr. O. Lustosa (com escala de 0,5 cm e altura máxima de 110 cm), para as crianças menores de três anos. Os antropômetros verticais foram operados conforme as instruções dos fabricantes, em plataformas próprias, enquanto os antropômetros horizontais foram operados sobre uma mesa. Na escola privada as medidas de altura foram obtidas com uso de fita métrica aderida à parede, já que todas as crianças ficavam de pé.

Para cálculo do escore z, foram usadas curvas do National Center of Health Statistics (NCHS), empregando-se como valores de corte para definição de desnutrição -2 escores z10.

Para definição de sobrepeso e obesidade, o presente estudo baseou-se nos valores propostos por Cole at al.15, que apresenta valores de percentis de IMC de acordo com algumas recomendações da OMS. Os valores de ponto de corte para sobrepeso e obesidade seguem os pontos de corte na idade adulta (IMC 25 e 30), apresentando continuidade entre infância, adolescência e idade adulta.

Análise de dados estatísticos

Os dados obtidos a partir das medidas antropométricas foram analisados no programa EpiInfo® 6.04b, sendo estudadas as seguintes variáveis: idade, nível socioeconômico, sexo, cor, peso, estatura, escore z P/I, escore z E/I e IMC. Para a comparação de proporções foi empregado o teste de Qui-quadrado (x2) com correção de Yates. Para a comparação entre médias, foi empregado o t de Student. Para variáveis contínuas que não apresentaram distribuição gaussiana, foram comparadas medianas por meio do teste de Kruskal-Wallis. Foi considerado o valor de 5% (p < 0,05) como limiar de significância estatística.

O presente projeto de investigação foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFMG.

 

RESULTADOS

O número de crianças e sua distribuição segundo idade, sexo e cor, nas duas populações, podem ser observados na Tabela 1.

 

 

Tendo como referência as curvas do NCHS, a população total teve média de escore z P/I de 0,22 ± 1,21 e média de escore z E/I de 0,10 ± 1,23. A Tabela 2 compara a média do escore z P/I e E/I entre os dois grupos estudados. Ambos estão acima do percentil 50, sendo que o grupo A apresentou média de escore z P/I maior que o grupo B (p = 0,006).

 

 

Em relação ao índice E/I, observa-se que o grupo B ficou pouco abaixo do percentil 50, enquanto o grupo A ficou acima do percentil 50.

A Tabela 3 mostra que, a partir do índice P/I, a proporção de crianças desnutridas foi maior no grupo A (A=3,6%, B=0,8%, p=0,013). Quando o indicador foi E/I, a prevalência de crianças abaixo de z < -2 desvios-padrão (dp) foi maior no grupo B, mas não houve significância estatística quando aplicado o teste x2 (p=0,110). Na população total, encontraram-se 3,6% de desnutridos, percentagem dentro dos valores esperados para as crianças estudadas.

 

 

Encontrou-se prevalência de 3,7% e 14,5% de obesidade e sobrepeso, respectivamente, na população total, sendo que houve predomínio de obesidade e sobrepeso no grupo A (p=0,024) (Tabela 4).

 

 

DISCUSSÃO

A população total estudada apresentou média de índices P/I e E/I acima do percentil 50, quando comparada com as curvas do NCHS. Quando comparando os dois grupos pelo índice P/I, percebemos que as crianças do grupo A (média do escore z = 0,47) ficaram um pouco acima das do grupo B (média do escore z = 0,01), com significância estatística (p = 0,006). Já utilizando o índice E/I, percebemos maior diferença entre os dois grupos, sendo que as crianças de baixo nível socioeconômico ficaram abaixo da média do NCHS (média do escore z = -0,11). Acreditamos que este pequeno déficit estatural pode ter sido causado por fatores genéticos ou devido a um déficit nutricional, possivelmente sofrido nos primeiros meses de vida, quando estas crianças ainda não freqüentavam a creche filantrópica.

A prevalência de desnutrição na população total estudada foi de 1,8%, considerado o índice P/I. Utilizando este mesmo índice, a Pesquisa Nacional em Demografia e Saúde, realizada pelo Ministério da Saúde, em 1996, encontrou prevalência de 5,7% de crianças desnutridas no Brasil3. No nosso estudo, o grupo de maior nível socioeconômico apresentou 3,6% de desnutridos. Este valor, apesar de superior ao da população de baixa renda (0,8%), ainda é menor que o encontrado pelo Ministério da Saúde na população brasileira3. Dessa maneira, a prevalência de desnutrição nas crianças de alto nível socioeconômico não é superior à esperada.

Segundo demonstrado por Monteiro at al., em 198611, a prevalência de desnutridos na população brasileira de menor renda per capita familiar foi de 13,6%, em contraste com os 0,8% encontrados por nós. Acreditamos que a manutenção do bom estado nutricional das crianças de baixo nível socioeconômico deve-se à boa condição da assistência prestada pela creche filantrópica, com refeições bem balanceadas e busca ativa de crianças desnutridas ou com risco maior de desnutrição.

O IMC, expresso em quilogramas por metros quadrados, é uma comum e válida medida de gordura em adultos, que tem sido usada, também, para caracterizar obesidade e sobrepeso em estudos epidemiológicos de larga escala, de crianças12-14. Cole et al. propuseram, em 2000, pontos de corte que possibilitassem taxas de prevalência internacionalmente comparáveis de obesidade e sobrepeso em crianças e adolescentes12,15. A amostra deste estudo foi baseada em 197.727 crianças e adolescentes entre dois e 18 anos dos seguintes países: Brasil, Grã-Betanha, Hong-Kong, Holanda, Singapura e Estados Unidos15. Optamos por estes pontos de corte porque se baseiam nos largamente aceitos pontos de corte 25 kg/m2 e 30 kg/m2, usados para adultos, que oferecem menos arbitrariedade, além de serem mais internacionais do que outros.

Aplicando o ponto de corte de Cole at al., encontramos índices de obesidade e sobrepeso de 3,7% e 14,5%, respectivamente, que estão compatíveis com os valores internacionais de 0,1% a 4% e 5% a 18%15.

Nos nossos resultados, o grupo A de crianças teve prevalência mais alta de obesidade (4,6%) que o grupo B (3,1%). Estes dados estão de acordo com os obtidos por Sichieri at al8, que demonstraram, no Brasil, associação positiva da obesidade ao nível socioeconômico.

Destacamos a importância da atenção direcionada à nutrição infantil em instituições de cuidados e ensino como creches e escolas, pois, como visto, mesmo crianças sob alto risco de desnutrição, como as residentes em favelas, com baixa renda per capita e desorganização familiar, podem ter bom desenvolvimento nutricional, se bem acompanhadas e alimentadas.

Em relação à obesidade infantil, sua prevalência está aumentando. Ela está associada a vários fatores de riscos para doença cardiovascular e outras doenças crônicas, como dislipidemia, hiperinsulinemia, hipertensão arterial e aterosclerose precoce16. Devido à importância da obesidade infantil em saúde pública, ela deve, também, ser monitorada de perto, como a desnutrição.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Centro Infantil Prof. Estevão Pinto e ao Colégio Lúcia Casa Santa, que com tanta disponibilidade nos receberam, e à Professora Rosângela Diamante, pelas orientações sobre obesidade infantil.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- Monteiro CA. Velhos e novos males da saúde no Brasil: a evolução do país e de suas doenças. São Paulo: Hucitec/Nupens-Universidade de São Paulo;1995.

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3- Brasil. Ministério da Saúde. Situação atual da Criança no Brasil [Citado 16 mar.2003]. Disponível em: http://www.saude.gov.br/sps/areastecnicas/scriança/criança/situacao.htm.

4- World Health Organization (WHO). A Growth Chart for International Use in Maternal and Child Health Care: Guidelines for Primacy Health Care Personnel. Geneva, Switzerland: Word Health Organization;1978.

5- Malta DC. Inquérito nutricional em crianças menores de cinco anos em Belo Horizonte em 1993. Rev Med Minas Gerais. 1998;8:141-6.

6- World Health Organization (WHO). Obesity: presenting and managing the global epidemic. Report of a WHO consultation. Geneva, Jun 1997. Geneva: WHO, 1998 (WHO/NUT/984)

7- Monteiro CA, Mondini L, Souza AL, Popkin BM. The nutrition transition in Brazil. Eur J Clin Nutr. 1995;49:105-13.

8- Sichieri R, Recine E, Everhart JE. High temporal, geographic, and income variation in body mass index among adults in Brazil. Obes Res. 1995;3(Suppl 2):117-21.

9- Belo Horizonte. Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte. Plano Municipal de Saúde de Belo Horizonte 2001-2004. Belo Horizonte; 2001.

10- Nacional Center for Health Statistics. Center for Disease Control and Prevention. [Citado em 16 mar 2003]. Disponível em: http://www.cdc.gov/growthcharts.

11- Monteiro CA, Benicio MHDA, Lunes RF, Gouveia BC, Taddei JAAC, Cardoso MAP. Nutritional status of Brazilian children: trends from 1975 to 1989. Bull WHO. 1992;70:657-66.

12- Abrantes MM, Lamounier JA, Colosimo EA. Índice de massa corporal para identificar obesidade na infância e adolescência: indicações e controvérsias. Rev Med Minas Gerais. 2002;12:150-4.

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14- Pietrobelli A, Faith MS, Allison DB, Gallagher D, Chiumello G, Heymsfield SB. Body mass index as a measure of adiposity among children and adolescents: A validation study. J Pediatr. 1998;132:204-10.

15- Cole TJ, Belizzi MC, Flegal KN, Dietz WH. Establishing a standard definition for child overweight and obesity world-wide: international survey. BMJ. 2000;320:1-6.

16- Berenson GS, Srinivasan SR, Bao W, Newman WP, Tracy RE, Wattigney WA. Association between multiple cardiovascular risk factors and atherosclerosis in children and young adults. The Bogalusa Heart Study. New Engl J Med. 1998;338:1650-6.