RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 1

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Avaliação da freqüência de hemoglobina a1s nos candidatos à doação de sangue no hemocentro regional de Uberaba, no período de 1996 a 2000 - estudo retrospectivo

Evaluation of a1s hemoglobin frequency in blood donor candidates at the Uberaba regional hemocentre, in the period from 1996 to 2000: a retrospective study

Paulo Roberto Juliano Martins1; Gilberto de Araújo Pereira2; Karla Delalíbera Pacheco3; Paulo Fernando de Oliveira3; Andréia Alves de Oliveira3; Cláudia Valéria Castanheira Rita3; Eduardo Alexandre Castanheira Silva3

1. Professor Adjunto da Disciplina de Hematologia e Hemoterapia da FMTM
2. Professor Assistente da Disciplina de Bioestatística da FMTM
3. Acadêmicos de Medicina da FMTM

Endereço para correspondência

Rua Getúlio Guarita, nº 250 Bairro Abadia
Uberaba/MG - Cep: 38025-040
e-mail: hemocentro@mednet.com.br

Data de Submissao: 07/08/03
Data de Aprovaçao: 01/11/04

Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro

Resumo

O objetivo deste estudo foi avaliar a freqüência de HbA1S em doadores de sangue do HRU (1996 a 2000). O diagnóstico do traço falcêmico foi realizado pela eletroforese de hemoglobina, prova de falcização e teste de solubilidade. Foram encontrados 696 portadores de HbA1S (9,91/1000). Observou-se queda significativa na incidência anual (de 1996 a 2000) de HbA1S. A raça negra apresentou incidência significativamente maior que as raças branca e mestiça. A incidência no sexo feminino foi 11,41/1000 candidatos à doação e, no masculino, 9,44/1000. O maior percentual de HbA1S foi entre 18 e 29 anos de idade (52,7%) considerando-se a alta prevalência de HbA1S no Brasil, concluímos que é de suma importância conhecer os portadores de HbA1S, visando ao aconselhamento genético em relação às probabilidades de seus descendentes desenvolverem anemia falciforme, a qual representa um importante problema de saúde em nosso país.

Palavras-chave: Anemia falciforme; Hemoglobina falciforme; Doadores de sangue; Estudos retrospectivos

 

INTRODUÇÃO

A hemoglobina S (HbS) é a mais comum das alterações hematológicas hereditárias conhecidas no homem3. O Brasil apresenta alta prevalência de HbA1S, com nítidas diferenças regionais marcadas pelos processos de miscigenação da população2. É notável a diminuição da prevalência de HbA1S na população total na direção norte-sul do Brasil, enquanto a prevalência entre as pessoas de cor negra se mantém em nível quase homogêneo, entre 4,0% e 5,5%3. As prevalências de HbA1S por faixas etárias nas diferentes regiões do Brasil não apresentam alterações significativas. A anemia falciforme é causada por mutação no gene beta da globina, produzindo alteração estrutural na molécula, onde há substituição do ácido glutâmico pela valina na posição de número 63, o que predispõe à falcização em situações de baixa tensão de O2, acidose e desidratação. As células falcizadas passam a apresentar forma de foice, com conseqüências variáveis em seu portador dependente da quantidade de HbS. O traço falciforme caracteriza o portador assintomático, heterozigoto para HbS, representado laboratorialmente por HbA1S. Os portadores não apresentam a doença, nem possuem anormalidade no número e na forma de hemácias, geralmente evidenciados por análises de rotinas3. Por outro lado, no estado de homozigose (HbSS), chamado também de anemia falciforme, as alterações clínicas e hematológicas são bem evidentes: anemia não acompanhada de outros sintomas, exceto durante os episódios dolorosos e tendência à vasoclusão, responsável por manifestações como AVC, priaprismo, úlceras maleolares, problemas psicossociais e suscetibilidade à infecção4. Laboratorialmente, a anemia falciforme é caracterizada por policromasia, prova de falcização positiva, eletroforese das Hb em pH 8,6, com padrão SS e teste de solubilidade quantitativa menor que 20%5. De acordo com a portaria 1.376, de 19 de novembro de 1993, para normas técnicas de coleta, processamento e transfusão de sangue, componentes e derivados, do Ministério da Saúde, deve ser realizada a detecção de hemoglobinas anormais em doadores de sangue. Em conseqüencia dessa normatização e das altas taxas de hemoglobina S em nossa população, nosso objetivo foi a identificação de HbA1S nos doadores de sangue, utilizando técnicas de triagem utilizadas na rotina do Hemocentro Regional de Uberaba. Trata-se de um levantamento de suma importância, pois grande parte dos candidatos aptos A1S são jovens em idade fértil, que poderiam ser submetidos ao aconselhamento genético em relação às probabilidades de seus descendentes desenvolverem anemia falciforme, que representa um importante problema de saúde em nosso país.

 

METODOLOGIA

A população do estudo foram os doadores de sangue do Hemocentro Regional de Uberaba, no período de 1996 a 2000. Foram incluídos nesse trabalho indivíduos que passaram pela triagem clínica e hematológica (hemoglobina superior a 12g/dl). Os portadores de traço falcêmico foram selecionados através de eletroforese de hemoglobina em pH 8,6, prova de falcização e teste de solubilidade. A eletroforese de hemoglobinas foi realizada em fita de acetato de celulose, pH=8,6, seguida de leitura em espectofotometria após eluição6. A solubilidade da hemoglobina foi feita pelo teste quantitativo, modificado segundo Zago et al7. Os portadores HbA1S foram caracterizados segundo sexo, raça, naturalidade e idade. Os dados foram submetidos à análise estatística e comparados com a literatura.

Foram utilizados para análise teste de comparação de proporções, como o teste Z para proporções, X2-Quiquadrado, exato fisher e análise de variância paramétrica ou não-paramétrica. O nível de significância dos testes foi de p=0,05.

 

RESULTADOS

Entre os anos de 1996 e 2000, foram atendidos no HRU 70.263 doadores. Nesse período foi constatado que 696 (9,91/1000) apresentavam traço falciforme (HbA1S) e 135 (1,90/1000) apresentavam traço A1C. O estudo da incidência anual de HbA1S nos doadores mostrou-se semelhante (Figura 1). Observamos queda linear significativa na incidência de HBA1S, no período de 1996 a 2000.

 


Figura 1 - Incidência anual de HbA1S segundo o sexo
total=3856,823-1,925*x+(r=-0,95) fem=2240,417-1,116*x+(r=-0,72) masc=4354,534-2,175*x+(r=-0,97)

 

Somente no ano de 1997, observou-se discreto aumento em relação a 1996: no total, feminino e masculino (r=-0,95; r=-0,72 e r= -0,97, respectivamente). Dos portadores do traço falcêmico, 328 eram brancos (7,47/1000 dos brancos), 120 eram negros (32,5/1000 dos negros) e 248 eram mestiços (10,97/1000 dos mestiços).

Quanto à incidência anual de HbA1S por raça no período de 1996 a 2000, observamos queda anual significativa nos doadores da raça branca (r = - 0,95; p< 0,05) e também naqueles de raça negra (r = -0,92; p<0,05); entretanto, nos mestiços, esta queda não foi significativa (r = -0,55; p>0,05).

Com base na série de 1996 a 2000, esperamos a seguinte diminuição média da incidência anual de HbA1S segundo as raças: raça branca: 1,73/1000 doadores; mestiços: 1,50/1000 doadores; e negra: 6,21/1000 (Figura 2). Entretanto, proporcionalmente, a queda anual entre as raças foi similar, evidenciando do ano de 2000 para 2001 os seguintes dados: queda de 35% nos portadores de traço HbA1S na raça branca; de 22% nos mestiços e de 32% nos negros. A raça negra mostrou de, forma significativa, maior incidência de HBA1S (p<0,0001) que a branca e a mestiça em todos os anos. Os menores coeficientes de incidência de HbA1S foram na raça branca. Nos mestiços, a incidência de HbA1S foi superior e estatisticamente significante (p<0,0001) quando comparada com a raça branca somente nos anos de 1997 e 1998 (Figura 2). Quanto ao sexo, 507 portadores de HbA1S (9,44/1000) eram do sexo masculino e 189 (11,41/1000), do feminino (Tabela 1).

 


Figura 2 - Incidência anual de HbA1S segundo a raça
Brancos=3465,734-1,731*x+(r=-0,95) mest.=3001,33-1,497*x+(r=-0,55) neg.=12439,004-6,209*x+(r=-0,92)

 

 

 

A tendência é que a incidência de doadores HbA1S diminua, em média, 1,93/1000 doadores, anualmente, na população total de doadores, sendo esta diminuição de 2,18/1000 nos doadores masculinos, e de 1,12/1000 nos doadores femininos (Figura 1). Em todos os anos, os doadores do sexo feminino tiveram uma incidência HbA1S superior às do sexo masculino, exceto em 1996. Porém, apenas em 2000 essa diferença foi estatisticamente significante (Figura 1). Com relação à faixa etária, observou-se maior incidência entre 18 e 29 anos (52,7%), diminuindo com aumento da idade do doador. A maioria dos doadores A1S eram de Uberaba (98,2%).

 

DISCUSSÃO

Em nosso país, há uma alta prevalência de HbA1S, com nítidas diferenças regionais marcadas pelos processos de miscigenação da população2. Em estudo referente à cidade de São José do Rio Preto, realizado pelo Departamento de Biologia da UNESP durante o ano de 1999, foi encontrada freqüência de 15,8/1000 de traço falcêmico6. No presente estudo, encontramos uma incidência total, nos anos de 1996 a 2000, de 9,91/1000, tendo sido a maior em 1997 (13,4) e a menor em 2000 (6,18). A queda anual na incidência total de HbA1S (de 1996 a 2000) pode ser justificada pelo fato de que os candidatos à doação de sangue que tinham diagnóstico de traço falcêmico, realizado pela eletroforese de hemoglobinas em sua primeira doação, não retornavam nos anos subseqüentes, pois, segundo a portaria 1.376 de 19 de novembro de 1993, eram considerados inaptos definitivos para a doação de sangue os portadores de anemias congênitas. Nãoum et al. em estudo realizado em 1997, encontraram freqüência (11,8/1000) de traço falcêmico na população de cor branca e de 48,77 indivíduos da raça negra, enquanto em nosso estudo, a incidência (por 1000) foi de 7,47 nos brancos e 32,5 nos negros. Encontramos ainda uma maior incidência do traço em mestiços (10,97/1000), comparando-a à dos brancos, o que era esperado, uma vez que os primeiros resultam de miscigenação. Segundo a distribuição por sexo, não encontramos diferença significativa entre as incidências de traço falciforme nos sexos masculino e feminino, o que também era esperado, já que o gene bs não está ligado ao sexo. Com relação à faixa etária, verificou-se que 52,7% dos portadores de HbA1S tinham entre 18 e 29 anos. Isso demonstra um grande contingente de portadores do traço em idade fértil, o que representa risco potencial para o nascimento de crianças com anemia falciforme. Considerando-se a alta prevalência de HbA1S no Brasil, torna-se de suma importância conhecermos os portadores de traço falcêmico. A detecção desses portadores possibilita a realização de aconselhamento genético a fim de se evitar o nascimento de crianças com anemia falciforme, a qual representa um importante problema de saúde em nosso país, uma vez que 25% das crianças com anemia falciforme morrem antes de completar cinco anos de idade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- Prudêncio BCAB, Covas DT, Bonini-Domingos C. Comparação de metodologia utilizada para detecção de hemoglobina S (HbS) em doadores de sangue. Rev Bras Hematol Hemoter. 2000;22:5-8.

2- Nãoum PC. Prevalência e controle da hemoglobina S. Rev Bras Hematol Hemoter. 2000;22:142-8.

3- Tomé-Alves SR. Hemoglobina AS/Alfa Talassemia: importância diagnóstica. Rev Bras Hematol Hemoter. 2000;22:388-94.

4- Hebbel RP. Beyond hemoglobin polymerization: the red blood cell menbrance sickle cell disease pathophysiology. Blood. 1999;77:214-8.

5- Serjeant GR. Sickle cell disease. 2nd ed. Oxford: Oxford University. (In press).

6- Marengo-Rowe AJ. Rapid electrophoresis and quantitation of haemoglobins on cellulose acetate. J Clin Pathol 1965 Nov;18:790-2.

7- Zago MA, Ferreira Costa F, Bottura C. A modified quantitative solubility test in normal hemolysates and in hemoglobin variants. Rev Paul Med. 1982;100:15-7.

8- Nãoum PC. Hemoglobinas anormais e dificuldade diagnóstica. Rev Bras Hematol Hemoter. 2000;22:396-403.

9- Nãoum PC, Domingos CBR. Doença falciforme no Brasil: origem, fenótipos, haplótipos e distribuição geográfica. J Bras Patol Clin. 1997;33:145-53.