ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Paracoccidioidomicose pulmonar: manifestações clínicas, diagnóstico e tratamento
Pulmonary paracoccidiodomycosis; clinical manifestations, diagnostic and treatment
Carolina Gama Cabral1; Carlos César Aguiar Brito2; Jefferson Torres Moreira Penna3; Laura Silviano Brandão Vianna4; Luciana Nogueira Delfino4
1. Especializando em Clínica médica
2. Cirurgião torácico
3. Médico internista
4. Médica patologista
5. Especializando em radiologia
Carolina Gama Cabral
Rua Cristina, 1192, apto 1001 Santo Antônio
Belo Horizonte - Minas Gerais. CEP: 30330130
e-mail: fatimaec@uai.com.br
Data de Submissao: 26/05/03
Data de Aprovaçao: 19/11/03
Trabalho realizado no Hospital Mater Dei em fevereiro de 2002
Resumo
Relata-se caso de paciente adulta, sexo feminino, residente em Belo Horizonte, com quadro de infecção respiratória, evoluindo há seis meses. Submetida à propedêutica que incluiu biópsia transbrônquica, foi diagnosticada paracoccidioidomicose. Foi instituído tratamento com itraconazol, com melhora clínica da paciente. Esta descrição alerta para o diagnóstico desta micose, que pode ocorrer também no sexo feminino, apesar de pouco freqüente, e ser decorrente de reativação de foco antigo, quando já não existe contato com a área endêmica ou atividade rural.
Palavras-chave: Paracoccidioidomicose/diagnóstico; Paracoccidioidomicose/quimioterapia; Relatos de casos
INTRODUÇÃO
A paracoccidiodomicose é uma micose profunda, de caráter sistêmico e progressivo, causada por fungo dimórfico, o Paracoccidioides brasiliensis. No tecido animal infectado, natural ou experimentalmente, ele se apresenta sob a forma esférica, com membrana espessa refringente, que dá à célula a aparência de duplo contorno. Em cultura, usando-se meios rotineiros como o meio de Sabouraud, cresce sob a forma filamentosa. Em meios especiais, assume a forma leveduriforme, apresentando-se como células arredondadas e em brotamento. O dimorfismo é reversível, podendo passar da forma leveduriforme à filamentosa e vice-versa1,2,7.
É endêmica na América Latina, apresentando maior prevalência no Brasil, Venezuela e Colômbia. No Brasil, os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás e Mato Grosso do Sul contribuem com as maiores casuísticas1,2.
Na forma crônica, afeta mais freqüentemente o sexo masculino, na proporção de 13:1. Este fato é atribuído à proteção conferida pelos estrógenos à mulher adulta1,4. O fator racial não parece ter influência. Assim, todas as raças são igualmente atingidas1-3.
O contágio não se dá na forma inter-humana. Possivelmente, o fungo, em saprofitismo no solo ou vegetais, alcança diretamente o homem. A principal porta de entrada do P. brasiliensis no organismo humano é a inalação do fungo pelos pulmões. Existem relatos bem documentados sobre a porta de entrada cutânea. A freqüência com que têm sido demonstradas lesões no tubo digestivo faz pensar, também, na eventual aquisição da micose por ingestão do fungo1,2.
Existem basicamente duas formas clínicas: a paracoccidioidomicose-infecção, representada pelos indivíduos infectados que evoluíram para cura espontaneamente ou que albergam o P. brasiliensis em latência, ambos os grupos com teste da paracoccidioidina positivo, e a paracoccidioidomicose-doença que compreende os indivíduos que manifestam os aspectos clínicos e patológicos da infecção.
A doença ativa é uma infecção sistêmica que apresenta como tríade clássica as lesões da mucosa orofaríngea, dos linfonodos e dos pulmões1,3,7.
As lesões da mucosa orofaríngea apresentam pontilhado hemorrágico peculiar. São lesões ulceradas, infiltradas, duras à palpação, apresentando numerosos pontos hemorrágicos em toda superfície.
A passagem do Paracoccidioides brasiliensis pelos pulmões causa lesões nesses órgãos, que são evidenciadas clínica e radiologicamente em 80% dos casos1. Estas lesões pulmonares são comumente assintomáticas ou oligossintomáticas. Os sintomas, quando presentes, são dispnéia progressiva, tosse, expectoração e hemoptise. A dor torácica, em geral, não é referida.
As glândulas supra-renais são afetadas freqüentemente. Lesões extensas podem causar destruição completa desses órgãos, levando à insuficiência glandular crônica, que se manifesta por cansaço fácil, indisposição, anorexia, emagrecimento, hipotensão postural e hiperpigmentação de pele e mucosas.
O acometimento do sistema nervoso central (SNC) pode se dar através da inflamação crônica das meninges, da endarterite supurativa, com conseqüentes lesões isquêmicas, ou pela produção de lesões necróticas no encéfalo1.
Os granulomas podem ser vistos em quase todos os órgãos. Às vezes, ocorrem repercussões severas ao nível do intestino e dos linfonodos mesentéricos, podendo causar síndrome de má absorção.
A hepatoesplenomegalia pode estar presente nas formas disseminadas.
O diagnóstico diferencial das lesões orofaríngeas é feito com a leishmaniose, a tuberculose, a sífilis e o carcinoma. As lesões ganglionares podem ser confundidas com linfoma. Na presença de lesões pulmonares, impõe-se o diagnóstico diferencial com tuberculose, sarcoidose e câncer. As lesões tumorais do abdome podem sugerir neoplasia1,2.
A confirmação laboratorial é obrigatória, mesmo nos casos clinicamente evidentes. O diagnóstico etiológico se baseia na visualização direta do fungo, em exame do material colhido diretamente das lesões. O fungo é facilmente encontrado nas secreções, no raspado das lesões e no material de punção, utilizando-se a rotineira coloração por H.E. Outras colorações utilizadas são o método Giemsa, o PAS, o Gomori-Grocott e o da prata metenamina1,7.
O teste intradérmico com paracoccidioidina pouco contribui, pois pode ser negativo nas formas graves e positivo em indivíduo sadio e residente em área endêmica. Já as provas sorológicas prestam bom auxílio ao diagnóstico. O maior obstáculo é de ordem prática, com poucos laboratórios aparelhados para realizá-las.
Ao estudo radiológico do tórax, as lesões são usualmente bilaterais, predominando nos dois terços inferiores dos pulmões. Pode apresentar-se de forma nodular, com nódulos de diferentes dimensões. Podem também ocorrer consolidações e cavitações. O acometimento pleural é pouco freqüente1.
A tomografia computadorizada do tórax de alta resolução tem fornecido dados importantes quanto ao diagnóstico. Os achados mais comuns são o espessamento dos septos interlobulares, áreas de atenuação em vidro fosco, áreas de enfisema e espessamento peribroncovascular5,6.
O aspecto microscópico predominante é o granuloma, inicialmente epitelióide e posteriormente tuberculóide, já com células gigantes tipo Langerhans. Uma infiltração com predomínio de linfócitos rodeia os nódulos. Plasmócitos são freqüentes e aspectos inflamatórios agudos são pouco vistos. Na fase inicial, aparecem os neutrófilos, capazes de fagocitar o fungo sem destruí-lo. Com a evolução, surgem a necrose fibrinóide e microabscessos. Os eosinófilos, quando presentes, são em baixo número. O achado dos parasitas é fácil pelo método de coloração pela H.E., mas aumenta a evidência se utilizado método de impregnação pela prata, como o de Gomori-Grocott1,2.
A droga de escolha para o tratamento é o itraconazol, um derivado tiazólico de terceira geração, com mecanismo de ação semelhante ao do cetoconazol, porém com alta afinidade pelo citocromo P-450 da célula fúngica. Conseqüentemente, apresenta maior eficácia e menor incidência de efeitos colaterais. É, portanto, a melhor opção terapêutica e a dose recomendada é de 100mg/dia, podendo, nos casos graves, ser aumentada para 200mg/dia. O tempo de tratamento varia de seis a 12 meses As lesões tegumentares cicatrizam-se em 30 dias, as linfadenomegalias regridem em 45 a 90 dias, e a estabilização das imagens radiológicas em seis meses de uso do itraconazol. Deve-se ressaltar que a absorção é ácido dependente1.
O cetoconazol é um derivado imidazólico indicado no tratamento das formas leves a moderadas; especialmente nos casos de resistência à sulfa, sendo contra-indicado na gestante. A posologia é de 400mg/dia/3 meses, seguido de 200mg/dia, até alcançar os critérios de cura, geralmente após um ano. Pode determinar reações de toxicidade e os efeitos colaterais mais freqüentes são dor abdominal, náuseas e hepatite.
As sulfas foram as primeiras drogas empregadas e ainda encontram indicação, particularmente a associação com trimetoprim, que implica em sinergismo in-vitro contra o Paracoccidioides brasiliensis. Outras vantagens são o baixo custo, a boa tolerância, a segurança para o uso prolongado e a boa penetração no SNC. A posologia preconizada é de 800mg/160mg, de 8h/8h, por 30 dias e, posteriormente 800mg/160mg, de 12h/12h, até completar um ano.
A anfotericina B tem potente ação antifúngica. No entanto, por ser extremamente tóxica, seu emprego fica reservado para as formas graves (quando há risco de morte imediata), resistência à sulfa, impossibilidade de receber imidazólicos ou tiazólicos e insuficiência hepática grave. A anfotericina B deve ser administrada por via endovenosa, na dose de 0,5mg/kg a 1mg/kg, diluída em 500ml de SGI 5%, até a dose acumulada de 1,5g a 2,0g.
A experiência atual com fluconazol é restrita, e alguns estudos sugerem eficácia na dose de 200mg dia a 400mg/dia, pelo período de seis meses, podendo ser útil quando há necessidade de terapêutica parenteral ou níveis liquóricos elevados1,9.
Os critérios de cura são controvertidos, devendo ser analisado o quadro clínico, com regressão dos sinais e sintomas, a negativação do exame micológico e a estabilização radiológica1.
As curas clínica e sorológica independem da cura biológica, com a total erradicação do P. brasiliensis, que poderá permanecer retido em cicatrizes ou nódulos fibrosos calcificados.
RELATO DO CASO
JAC, 38 anos, sexo feminino, casada, natural e residente em Belo Horizonte, foi admitida no Hospital Mater Dei, com quadro de infecção respiratória.
Previamente hígida, tabagista (20cigarros/dia/20 anos). Iniciou quadro de tosse oligoprodutiva com expectoração mucóide, acompanhada de febre vespertina não termometrada e emagrecimento, quatro meses antes da admissão.
Procurou assistência médica, tendo sido medicada com Amoxicilina por 14 dias, sem melhora do quadro. Posteriormente, surgiu dispnéia aos esforços habituais, associada à presença de escarro hemoptóico. Novo atendimento médico resultou na prescrição de Amoxicilina/Clavulanato, após estudo radiológico do tórax. Como não obtivesse melhora, procurou o hospital, observando-se à admissão: estado geral preservado, ausência de linfadenomegalias, temperatura axilar de 36,5ºC, taquipnéia (26irpm) e crepitações inspiratórias bilateralmente. A pressão arterial era de 100x70mm/Hg e a freqüência cardíaca de 88 bpm. O restante do exame clínico estava dentro dos limites da normalidade.
O estudo radiológico do tórax revelava áreas de consolidação pulmonar, macronodulares bilaterais, principalmente nas bases e ausência de derrame pleural (Figura 1).
Os exames de sangue mostraram: hemoglobina (15g%), hematócrito (46,8%), leucócitos (12200/mm3: segmentados 9600/mm3, eosinófilos 100/mm3, monócitos 700/mm3, basófilos 00/mm3 e linfócitos 1500/mm3), velocidade de hemossedimentação (55 mm/60 minutos), proteína C reativa (117 mg/dl), uréia (16,4mg %), creatinina (0,7mg%), glicose (139mg%), potássio (4,2mmol/l) e sódio (144meq/l). A tomografia computadorizada de alta resolução do tórax evidenciou imagens macronodulares difusas, periféricas, principalmente em bases pulmonares, com comprometimento peribroncovascular discreto e presença de cavitações (>0,5mm). Havia também linfadenomegalia carinal (Figuras 2 e 3).
Com base nesses dados, foram feitas as seguintes hipóteses diagnósticas: carcinoma bronquíoloalveolar; tuberculose pulmonar; granulomatose de Wegener e sarcoidose.
Novos exames solicitados mostraram: ausência de BAAR em exame de escarro (seis amostras); PPD não-reator; radiografia de seios da face sem alterações significativas; pesquisa de HIV negativa; pesquisa de anticorpos anti-citoplasma de neutrófilos negativa (C - Anca e P - Anca) e exame de urina sem anormalidades.
Realizou-se lavado broncoalveolar, por meio de fibrobroncoscopia, com obtenção de líquido hemorrágico. As pesquisas de Pneumocystis carini, BAAR e fungos foram negativas. O exame citopatológico desse líquido não evidenciou células neoplásicas.
Nova fibrobroncoscopia foi realizada com obtenção de material para estudo anatomopatológico, por meio de biópsia transbrônquica. O resultado da biópsia revelou P. brasiliensis nas colorações hematoxilina-eosina e Grocott (Figuras 4 e 5).
Iniciou-se tratamento com itraconazol (200mg/dia) e encaminhando a paciente para controle ambulatorial.
DISCUSSÃO:
O diagnóstico presuntivo envolveu as doenças pulmonares com padrão radiológico predominantemente nodular, que se acompanham de febre e emagrecimento. Por se tratar de paciente tabagista, o emagrecimento, aliado às alterações radiológicas, transformou a neoplasia em principal hipótese diagnóstica e a apresentação difusa das lesões; sugeriu o diagnóstico de carcinoma bronquíolo-alveolar. Nesses casos, o derrame pleural ocorre em apenas 8% a 10%, sendo rara a linfadenomegalia mediastinal.
Dentre as doenças infecciosas ressaltam em importância a tuberculose e as micoses, e dentre elas a paracoccidioidomicose, que no presente relato não foi aventada inicialmente1,2.
Dentre as vasculites destaca-se a granulomatose de Wegener, em sua forma limitada. Nesses casos, a positividade do anticorpo anticitoplasma de neutrófilo (C-Anca) cai para 50%1,8.
Doença de etiologia desconhecida, a sarcoidose pode também ter esta apresentação clínico-radiológica, porém a cavitação não ocorre.
Diante das possibilidades sugeridas e resultados inconclusivos dos exames, tornou-se necessária a propedêutica invasiva, que consistiu na realização de biópsia transbrônquica, que se mostrou de grande valor na elucidação do diagnóstico.
Este caso nos leva a refletir sobre a inclusão da paracoccidioidomicose no diagnóstico das lesões pulmonares difusas, mesmo na ausência de lesões cutâneo-mucosas, em pacientes do sexo feminino e sem subsídio epidemiológico para esta micose.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- Martinez R. Blastomicose Sul-Americana. In: Veronesi R, Focaccia R. Veronesi tratado de infectologia. São Paulo: Atheneu;1999. p.1081-111.
2- Gonçalves AP. Paracoccidiodomicose. In: Pinto JM. Doenças infecciosas com manifestações dermatológicas. Rio de Janeiro: Medsi;1994. p.411-34.
3- Sampaio SAP, Rivitti EA. Micoses profundas. In: Sampaio SAP, Rivitti EA. Dermatologia básica. São Paulo: Artes Médicas;2000. p.535-44.
4- Clemons KV, Stevens DA. Interactions of mammalian steroid hormones with Paracoccidioides brasiliensis: estradiol receptor binding and mediation of cellular functions. Interciencia. 1990;15:206-8.
5- Marchiori E, Moraes HP, Muniz MAS, Santos MLO, Capone D. Paracoccidiodomicose: correlação da tomografia computadorizada de alta resolução com a anatomopatologia. Radiol Bras. 2000;33:333-40.
6- Funari M, Kavakama J, Shikanai-yasuda MA. Chronic Pulmonary Paracoccidiodomycosis (Shouth American Blastomycosis): High-Resolution CT Findings in 41 Patients. AJR. 1999;173:59-64.
7- Bethlem EP, Capone D, Maranhao B, Carvalho CR, Wanke B. Paracoccidioidomycosis. Curr Opin Pulm Med. 1999;5:319-25.
8- Isidio C. Síndromes vasculíticas. In: Moreira C, Carvalho MAP. Reumatologia: diagnóstico e tratamento. Rio de Janeiro: Medsi. 2001. p.489-510.
9- Diaz M, Negroni R, Montero-Gei F, Castro LG, Sampaio SA, Borelli D, et al. A Pan American five-year study of fluconazole therapy for deep mycoses in the immunocompetent host. Clin Infect Dis. 1992;14:S68-76.
Copyright 2024 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License