RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. 4

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História da Medicina

Transplantes de hipófise de vitela em uma doente acometida de diabete insípida

Joao Galizzi

Professor Catedrático de Clínica Propedêutica Médica da Faculdade de Medicina da UMG. (1909/1999). Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Editor Geral
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Resumo

O autor comunica o resultado obtido com o enxêrto de hipófisede vitela em uma doente portadora de diabete insípida. Ao primeiro transplante, sucedeu um período de calmaria da doença que durou cerca de 4 anos. Voltando a paciente a apresentar os sintomas primitivos, embora com poliúria mais atenuada, foi praticada nova heteroplastia, que se acompanhou de nova normalização de volume urinário que se mantém, ainda agora, já decorridos quase dois anos da última intervenção. Apesar do resultado aparentemente razoável, o autor julga que a observação deve ser recebida com as reservas cabíveis às comunicações de caso único.

 

Na presente comunicação, será relatado o êxito ou aparente êxito obtido pelo transplante, duas vezes feito, de hipófise de vitela em uma doente portadora de diabete insípida. Seria escusado dizer que tal recurso terapêutico, de valor assás discutido, só entrou em cogitação e finalmente em prática, depois que outras medidas das recomendáveis haviam se mostrado ineficazes. Demais, dada a própria natureza da terapêutica em jogo, ao recorrermos e ela não nos movia a esperança de uma cura definitiva da doente, senão apenas o desejo de um alívio transitório.

Há injustificável reserva ou indiferentismo por parte da maioria dos endocrinologistas, com relação ao efeito da heteroplastia no tratamento da diabete insípida, sendo raros os que se manifestam a favor ou contra tal medida. Entretanto, vem ela sendo experimentada há vários lustros e, fato inegável, tem conquistado prosélitos entre os que à mesma recorrem.

Entretanto, ou porque os benefícios do transplante, por serem problemáticos e transitórios, não compensem o emprêgo do trabalhoso recurso, ou porque não justifique a sua prática a relativa obscuridade ainda reinante tanto no mecanismo bioquímico dos disturbios metabólicos que geram a doença, como no tocante à participação de cada um dos componentes do sistema hipotalâmico-hipofisiário, o certo é que o assunto continua a ser pouco agitado.

A experimentação e tao somente à experimentação cabe a última palavra e esta se já dada, não teve, ao que nos parece, a divulgação necessária.

A paciente que constitui objeto da presente comunicação, acometida de diabete insípida que podemos rotular de grave, pois que chegára a eliminar 16 litros de urina em 24 horas, não sendo beneficiada satisfatoriamente pelas medidas terapêuticas mais recomendadas, teve a sua sitomatologia dominada em seguida a um transplante de hipófise heterologa (hipófise de vitela recentemente abatida). Depois de quase quatro anos de vida normal, voltando a paciente a apresentar os sintomas primitivos, mas já com uma poliuria moderada, atingindo um máximo de 48 litros por nictemero, à nova heteroplastia seguiu-se mais uma vez o desaparecimento de tôda a sintomatologia atribuída à doença. E, ainda agora, aproximadamente dois anos após o segundo enxerto, continua a doente com saúde normal.

Embora esta sucessão feliz de fatos se mostre tao animadora com relação ao alcance dêste recurso terapêutico tao pouco em uso, todavia não nos cabe tirar qualquer conclusão, pois além de nossa experiência se limitar a um único caso, há ainda a assinalar o comportamento extravagante da diabete insípida, muitas vêzes não se deixando vencer por qualquer medida terapêutica, outras vezes curando-se expontâneamente.

Após a realização de vários exames complementares, foi feito o diagnóstico de diabete insípida idiopática.

Como a doente não se beneficiasse satisfatoriamente com a medicação instituída (principalmente opoterapia retrohipofisária, piramido, etc.), foi lembrado o tratamento pelo enxerto de hipófise de vitela. A doente foi entao removida para a enfermaria de Cl. Cirúrgia de Mulheres (serviço do prof. Rivadávia de Gusmão), tendo sido feito, em 21-6-1941, pelo dr. Sávio Nunes, o transplante de hipófise de vitela recentemente abatida, no seio do músculo grande obliquo, da fossa ilíaca direita.

Já nos dias que se seguiram ao enxerto, a poliúria desapareceu, passando a doente a urinar normalmente. Em 28-8-41, recebeu alta.

Após quase quatro anos de saúde normal, voltando a doente a apresentar as queixas primitivas, mas com poliúria não tao intensa como dantes, procurou novamente a Santa Casa, onde se internou em 10-945, (ficha do Hospital, 56.181, ficha da clínica, 235). Na enfermaria, o volume máximo de urina por nictemero foi de 4.800, girando a média em torno de 3.600 a 3.800cc. Novamente foi tentada a opoterapia hipofisária, mas como os resultados não fôssem alentadores, foi a paciente mais uma vez transferida para a Cl. Cirúrgica de Mulheres, para novo transplante, o qual foi feito no dia 8-10-1946, também pelo Dr. Sálvio Nunes, sendo aplicado ao nível do pequeno obliquo, na fossa ilíaca esquerda.

Transcrevemos, a seguir, o resumo da observação clínica:

M. G. L., 27 anos, solteira, preta, tecela, brasileira, natural de Itapecerica, ridente em Belo Horizonte (Vila Nova Esperança), vacinada. Data do internamento 10-12-1940. Reg. Do Hospital nº 24.732; reg. Da Clínica nº 459; leito 20.

Informa a doente que, aproximadamente há 2 anos, começou a sentir dor no estômago, inapetência, vômitos alimentares, cefaléa, tonteiras e sonolência postprandial, sendo obrigada a dormir após as refeições, transpirando muito durante o sono. Tempos depois, como observasse que estava urinando em excesso, procurou medir o volume urinário, verificando cerca de 16 litros diários. Por isto procurou a Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, sendo internada na 1ª Enfermaria de Clínica Médica. No Hospital, o volume urinário máximo atingiu a 12 litros. A paciente não sabe a que atribuir o inicio da sua doença.

Quanto aos antecedentes pessoais fisiológicos, há a assinalar hipermenorréa, com cantamênios tipo 15/8. Nos antecedentes patológicos, refere-se apenas a pneumonia, na infância.

Antecedentes familiares, sem interesse (pai sadio, mae hipertensa; 9 irmãos, todos com boa saúde).

Hábitos de vida precários, trabalhando em coletividade, como tecela.

O exame geral nada revelou de anormal e o exame dos diferentes aparelhos e sistemas assinala apenas dor generalizada à apalpação profunda do abdômen e as perturbações da esfera genital, já assinaladas.

Oito dias após as operação, o volume urinário era de 1.500cc., volume este confirmado em exames posteriores. Em 4-11-46, a doente volta à Cl. Médica, queixando-se apenas das dores gastrointestinais. Procurando esclarecer a causa das queixas digestivas da doente foram feitos vários exames inclusive várias intubações gástricas, com a administração de diferentes estimulantes da secreção gástrica, ficando positivada a existência de aquilia, pois, mesmo a estimulação histamínica, reiterada, não provocou o aparecimento de ácido clorídico no estômago. Em 28-11-46, o volume urinário subiu a 2.300cc., em seguida voltando ao normal. A doente recebeu alta em 5-12-1946, ficando, entretanto, trabalhando como enfermeira do hospital, cargo que ocupa até a época atual. Até a data em que foi redigida esta observação (agosto de 1948), a doente continua sem qualquer sintoma da moléstia.

 

COMENTARIOS

As primeiras comunicações sobre o emprego de enxerto de hipófise heteróloga no tratamento da diabete insípida, ao que nos conste, datam de 1933, quando Sacorrafos (1) apresentou à Academia de Medicina de Paris, em sessão de 28 de março daquêle ano, uma observação considerada pelo autor como primeira gênero e Rueder e Wolf (2), em novembro do mesmo ano, publicaram um novo caso. Entretanto, êstes dois últimos autores se referem, em seu trabalho, a experiência de Von K. Ehrhardt, que certamente os precedeu no emprêgo dêste processo. No doente de Sacorrafos, após o enxerto, o volume urinário permaneceu normal durante 15 dias para depois aumentar discretamente, enquanto que no doente de Rueder e Wolf, o volume de urina continuou normal durante vários meses.

A partir de 1933, tornaram-se mais freqüentes as comunicações sobre o assunto.

O mecanismo de ação do enxerto ainda não está inteiramente aclarado, não se podendo dizer que êle atue como medicação substitutiva, ou também lhe compete um papel estimulante sôbre a Glândula doente ou qualquer outra função.

O fato de alguns autores, como Wolf(3), Loewenberg (4), Viégas (5), etc. admitirem a cura expontânea da doença, embora outros como Goldziher (6), a ela não se refiram, dificulta qualquer juízo seguro a respeito do caso em estudo. Todavia, a possibilidade de involução expontânea da doença torna-se menos provável dada a extranha coincidência de um novo acometimento da doente entrar em declínio exatamente na época em que se fez outro transplante. A ação apenas substitutiva do enxêrto também dificilmente explicaria um efeito tao duradouro.

De qualquer modo, embora muito sugestiva a comunicação presente, por se buscar em caso único, deve ser recebida com as reservas cabíveis às observações dêste gênero.

 

BIBLIOGRAFIA

1. SACORRAFOS, M.: Recherches experimentales et biologiques sur le diabetes insipide (Greffe de Phypophyse du veau sur un malade). Bul. Acad. Med. Paris, 109:453-461,1933.

2. RUEDER, F B. Und Wolf R. : Substitutionelle Organtherapie bei Diabetes insipidus (Implantation einer artfremden Hypophyse), Deutsche Medizinische Wochenschrift, 59:1696-1699,1933.

3. WOLFF, W: Endocrinolgy in Modern Practice. Philadelphia, W. B. Saunders Companhy pág. 102, 1937.

4. BOEWENBERG, S. A.: Clinical Endocrinology . Philadelphia. F A. Davis Companhy pág. 221, 1937.

5. VIEGAS, A. P: Diabetes Insipida (análise de 14 casos), Brasil-Médico, 16-17:149-154,1945.

6. GOLDZIHER, M.: The Endocrine Glands. New York. D. Appleton-Century Companhy, pág. 477, 1939.

 

NOTA - O autor expressa o seu agradecimento aos colegas Drs. Sálvio Nunes. Nereu de Almeida Júnior e Aprígio de Abreu Salgado. pela valiosa colaboração que lhe emprestaram.
Trabalho publicado originalmente em: Anais da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais - UMG, v.12, p. 21-24, 1948/1950. Foram mantidos o formato, normas e ortografia originais.