RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 13. 3

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História da Medicina

O sintoma na medicina e na psicanálise - notas preliminares

Symptoms in medicine and psychoanalysis - preliminary notes

Arlindo Carlos Pimenta1; Roberto Assis Ferreira2

1. Psiquiatra. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG. Membro do Fórum do Campo Lacaniano, Belo Horizonte
2. Professor Adjunto de Pediatria da UFMG. Doutor em Medicina - área de concentração pediatria; Membro do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG

Endereço para correspondência

Roberto Assis Ferreira
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Resumo

A partir de uma perspectiva histórica discute-se o conceito de sintoma na medicina, observam-se as implicações sobre a prática da clínica e, fundamentando-se em referencial psicanalítico, são elaborados comentários sobre a evolução da psiquiatria.

Palavras-chave: História da medicina; Semiologia; Psiquiatria e psicanálise; Medicina clínica

 

O SINTOMA EM MEDICINA

As palavras trazem confusões. A palavra sintoma é usada ampla e livremente, mas muda de conceito em contextos e disciplinas diferentes. A palavra semiologia também tem sentidos diversos. Semiologia e signo são termos usados pela medicina e pela lingüística, com significados diferentes. O presente ensaio procura compreender o uso do termo sintoma em medicina, em relação com a transformação histórica do conceito de doença. Forçosamente serão realizadas comparações com o conceito de sintoma em outros campos.

O estudo dos signos interessou ao homem desde a Antigüidade, mas o uso da semiologia, como ciência dos signos, é mais recente e teve grande influência da constituição da lingüística como ciência.1 Na medicina, há referência ao uso do termo semiologia já em Galeno (131-201). O Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI, Versão 3.0, define a semiologia como a ciência geral dos signos, mas restringe seu sentido na medicina à descrição dos sinais e sintomas de doença. Entretanto, para a medicina, o significado da semiologia vai além da sua definição e se confunde com o próprio método clínico. Quando nada, a semiologia médica é a disciplina que fundamenta o método clínico, um instrumento com o qual se afirma ou se afasta uma doença e se constrói um diagnóstico. Pelo ideal da semiologia, o método clínico deve se basear fundamentalmente na habilidade artesanal do médico, apropriando-se das manifestações da doença no paciente e, complementado ou não por meios instrumentais, chegar a um diagnóstico.

Um tratado clássico de semiologia médica define semiologia como a disciplina que estuda os sinais e sintomas das doenças. Os sinais são manifestações objetivas das doenças e podem ser detectados por diversos meios. Já os sintomas são os distúrbios subjetivos relatados pelo paciente - incômodos, dor - dos quais o médico toma conhecimento sobretudo através da anamnese.2

A semiologia médica moderna e as técnicas propedêuticas de investigação se consolidaram após a constituição do paradigma anatomoclínico no século XIX. A escola francesa de medicina desempenhou papel relevante nesta evolução.

O sintoma na medicina tem sentido diferente daquele de outros campos do conhecimento como a psicanálise. Na medicina, o sintoma é dotado de sentido, mas compete ao médico dar a sua significação, deve ser decifrado, portanto, como sendo ou não sinal de uma doença. Na psicanálise, o sintoma também é dotado de sentido, mas a clínica psicanalítica, tomando-o em outra dimensão, exigiu a sua redefinição. O sintoma na psicanálise, em diferença com a medicina, não se refere a algo detectável no organismo e que permite elaborar o diagnóstico de uma doença médica. O sentido do sintoma na psicanálise, como sintoma neurótico, leva ao sujeito do inconsciente. O sintoma neurótico é, assim, uma formação do inconsciente, como o são o sonho, o chiste e o ato falho. O sentido do sintoma na psicanálise só poderá ser apreendido dentro da história de cada sujeito. Pode ser decifrado com a participação do psicanalista, mas só trará benefício ao paciente se adquirir sentido para o próprio paciente.3

BARTHES4, como semiólogo e não como médico, fazendo um esforço de compreensão, escreve que o sintoma seria o fato mórbido em sua objetividade e em seu descontínuo, o fenomenal que nada tem ainda de semântico, portanto, não seria dotado de sentido decifrável:

Parece que, medicamente, a idéia de sintoma não carrega imediatamente a idéia de uma decifração, de um sistema para ser lido, de um significado a ser descoberto; no fundo, não seria mais que o fato bruto oferecido a um trabalho de decifração, antes que este trabalho tivesse começado.

Continuando com este pensador,4 já o signo, para a semiologia médica, seria o sintoma adicionado, suplementado pela consciência organizadora do médico:

O signo é o sintoma enquanto toma lugar numa descrição; é um produto explícito da linguagem enquanto participa na elaboração do quadro clínico do discurso do médico; o médico seria então aquele que transforma, pela mediação da linguagem - creio ser essencial este ponto - o sintoma em signo. Se esta definição é aceita significa que se passou do fenomenal ao semântico.

Por outro lado, CLAVREUL,5 psicanalista e médico, considera que o discurso médico não é o discurso da lingüística, mas o das ciências biológicas. Para ele, a medicina e a lingüística não falam a mesma língua, embora utilizem as mesmas palavras: semiologia e signo. Os signos médicos, para este autor, preexistem à linguagem, não dependem da língua falada pelo médico e pelo doente:

Os signos (sinais) médicos não obedecem às leis da lingüística. Se eles se agrupam, é em síndromes e não em sintagmas ou em paradigmas. A aparição de um signo insólito não vem aí constituir metáfora. Nada se encontra aí da ordem da alusão e não há poética dos signos médicos. Nunca um médico suspeitará que um signo seja mentiroso, pois, se pode ser enganador, é porque o médico pode se enganar e não porque o organismo mente.

Prosseguindo, o próprio CLAVREUL5 enfatiza a separação entre o campo da medicina e o da psicanálise, adverte que a abordagem deve ser diferente para o sintoma psiquiátrico (neurótico, psicótico ou perverso). Para este autor, a atitude médica, equivocadamente, continua a proceder muitas vezes com a mesma metodologia que nas doenças orgânicas. O sintoma nesta situação não é redutível e deve ser tomado não como signo, mas como significante, remetendo não a alguma coisa, mas ao próprio sujeito.

Também no campo da clínica, há aqueles que acham que não compete ao médico apenas afirmar ou afastar a doença. Neste caso, o sintoma, além de ser tomado e decifrado para o estudo clínico da doença, deve ser escutado como queixa como sofrimento, e nunca deve ser desprezado, mesmo quando não é objetivável. A pessoa que procura o médico com suas queixas, o faz no sentido implícito de receber cuidados e não apenas para ter excluída uma doença orgânica. Se algo não está bem, o médico deve ser o primeiro a acolher, sem preconceitos e simplificações, o sofrimento do paciente.6

Resumindo, na medicina, o sintoma significa algo que não vai bem, algo de anormal e bizarro, uma alteração de função ou alerta de doença, alguma maneira de o paciente se perceber como um possível doente. Mas compete ao médico decifrar se o sintoma indica a presença ou a possibilidade de uma doença. O médico deverá definir aquilo que é objetivo do que é fantasia, ou pelo menos filtrar as queixas subjetivas indicativas de doença orgânica. Desta maneira, o médico deve procurar no sintoma, como queixa, como manifestação subjetiva, como percepção do paciente, a possibilidade de sua objetivação. Em outras palavras, compete ao médico discriminar se o sintoma tem como significado uma doença. Por outro lado, a ausência de doença orgânica não significa ausência de sofrimento.

 

DA MEDICINA PRÉ-CIENTÍFICA DO SÉCULO XVIII À MEDICINA TECNOLÓGICA DO SÉCULO XX

A medicina do século XVIII ao século XX passou por profundas mudanças. A utilização do conceito de paradigma em medicina, entendendo este como o modelo dominante de construir o conhecimento médico em cada época, pode ajudar a entender tais mudanças.

FOUCAULT7 em "O Nascimento da Clínica" permite distinguir o modelo, ainda pré-científico, mas que dominou a medicina até o fim do século XVIII, daquele da medicina anatomoclínica, que se afirmou desde o início do século XIX e introduziu, desde então, a medicina como ciência no campo da racionalidade moderna.

A medicina científica atual só pode ser concebida dentro da chamada racionalidade moderna, na qual são dadas as condições de sua cientificidade. Pois esta racionalidade dicotomiza homem e natureza, permitindo a objetivação para fins de estudo, da natureza, da sociedade e do próprio homem. No caso da medicina, o corpo humano torna-se objeto da investigação e do conhecimento científico.8

O paradigma anatomoclínico, correlacionando a clínica com a anatomia patológica, dá forte impulso à medicina: várias doenças são descritas, outras redefinidas. O conhecimento médico encontra espaço para se expandir rapidamente, como resultado da nova compreensão da doença e da sua investigação no corpo humano. Como conseqüência lógica, desenvolvem-se numerosas técnicas semiológicas, aperfeiçoando o exame físico, utilizando instrumentos esteto-acústicos e técnicas de laboratório.

Por sua vez, a segunda metade do século XIX assiste aos avanços e ao despontar das disciplinas biológicas como a fisiologia, a histologia, a embriologia, a citologia, a bioquímica, a parasitologia, a microbiologia, a farmacologia, a patologia celular. Avanços, alguns deles, em proximidade com a medicina, facilitando a assimilação por esta, como a fisiologia com Claude Bernard (1813-1878), a teoria infecciosa das doenças com Pasteur (1822-1895), a patologia celular com Virchow (1821-1902) e a farmacologia com Ehrlich (1854-1915). Já a genética ficou para o século XX, pois a descoberta de Mendel (1822-1884) dormiu na gaveta de seu mosteiro por três décadas. Com os avanços que a medicina vai incorporando, ao fim do século XIX a maneira de compreender a doença e de produzir o conhecimento médico ultrapassava de muito a anatomoclínica. Estava constituída outra maneira de investigar e de produzir conhecimento em medicina, um novo paradigma: o paradigma biológico. Além da correlação anatomoclínica, era preciso explicar os mecanismos intermediários da doença, ir às alterações funcionais e bioquímicas, impulsionar a evolução da terapêutica. Outra vez, em condições novas, o conhecimento científico, após constituído o novo paradigma, faz avanços acelerados. A medicina biológica permitirá grande salto no conhecimento das doenças e na terapêutica, o que acontece sobretudo no século XX.9

O século XX assistiu a transformações que não podem ser explicadas apenas por mudanças na maneira de produzir o conhecimento. A medicina do século XX foi marcada por alterações de diversas ordens. A medicina que, há algum tempo, era objeto da intervenção do Estado, passou a ser área de grande investimento dos interesses econômicos. Por outro lado, a organização da sociedade e da própria profissão médica passa por profundas modificações. Neste contexto, a medicina deixa de ser uma profissão liberal. A entrada intensiva na prática médica de tecnologias instrumentais leva à fragmentação da profissão em múltiplas especialidades. As mudanças também atingem a relação do médico com o paciente. Assim, no século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, um novo paradigma se impõe: a medicina tecnológica.9

O caminho acima tomado pela medicina não foi o único, mas foi o principal. A história da normalização da medicina científica, como prática universal dominante, só se completará no século XX com as modificações da educação médica e a universalização do modelo Flexner, este implantado a partir de 1910 nos EUA, assunto que não será discutido aqui. Fica como lembrança que há dois contrapontos que se impõem no debate com o modelo científico que dominou a medicina desde então: o primeiro é a medicina social, que surgiu nos meados do século XIX e cujo objeto é a doença no espaço social; o segundo é a psicanálise, que se interessou pelo mal-estar humano, a doença como conflito psíquico inconsciente e que se constituiu a partir do fim do século XIX.9

 

PARADIGMA MÉDICO E SINTOMA

Na medicina que precedeu o modelo anatomoclínico e que pode ser chamada de pré-científica, o sintoma era a própria expressão da doença, era a forma da doença se apresentar; ele definia a essência da doença. Em conseqüência, os quadros nosológicos eram construídos tendo como elemento ordenador os sintomas. O modelo adotado para ordenação era o das ciências naturais, e o modelo classificatório da botânica serviu à medicina das espécies patológicas. Entretanto, a partir de Bichat (1771-1802), no momento em que a medicina se constituiu como ciência e adotou o paradigma anatomoclínico como modelo de produção de saber, o elemento ordenador passou a ser a lesão tecidual. O espaço da doença desde então será o corpo humano. A doença deverá ser investigada no espaço do corpo humano.

Nas palavras de FOUCAULT7 a doença se deslocou do quadro para o corpo. A medicina enfim achou sua forma própria de expressão científica, sua racionalidade, a qual foi viabilizada pelo olhar e só a partir daí pela linguagem. A partir de então não só muda o conceito de sintoma para signo, o qual deve ter significado para o médico, como se inicia também a apreciação estatística das manifestações clínicas na medicina.

Com o paradigma anatomoclínico o sintoma transforma-se, portanto, em signo, em sinal da doença que adquire sentido para o médico. O sintoma remete a uma realidade, surge como expressão desta realidade, podendo antecipar-se aos sinais detectados diretamente pelo médico. Os métodos semiológicos do século XIX, e mesmo em grande parte do século XX, eram quase totalmente dependentes da habilidade do médico, da arte médica. A descoberta das evidências bioquímicas estava em desenvolvimento e o acesso instrumental às lesões internas do corpo era prática tardia em relação às manifestações clínicas, pois, por ser invasiva, era postergada.

Se com a medicina anatomoclínica correlaciona-se sintoma com lesão, na medicina biológica aprende-se que o sintoma pode preceder a lesão; o sintoma já não se relaciona mais só com a lesão, mas também com a função. Procura-se, sobretudo, a correlação fisiopatológica. O conhecimento dos mecanismos intermediários da doença, a evolução da compreensão fisiopatológica e bioquímica, assim como a utilização racional de intervenções terapêuticas, permitem grande avanço interpretativo à própria clínica, correlacionando sintomas, lesão e alterações fisiológicas. A medicina clínica alcança com o paradigma biológico grande refinamento que repercute no diagnóstico e no tratamento.9

A medicina tecnológica, por sua vez, na medida em que absorve técnicas laboratoriais e instrumentais cada vez mais sofisticadas, permite suspeitar, detectar e ter acesso precoce aos processos orgânicos. Desta maneira, muitas vezes pode antecipar-se aos fenômenos clínicos e à manifestação dos sintomas. Por outro lado, o referencial passa a ser ditado em grande parte pelas probabilidades estatísticas e por fatores de risco. Há a tendência, até certo ponto, em minimizar a elaboração clínica. A utilização indiscriminada de procedimentos instrumentais tem como conseqüência limitar o médico à função de um técnico, esvaziando o juízo clínico.9

A medicina tecnológica, na medida em que serve e subordina-se aos interesses econômicos das grandes corporações internacionais, apresenta contradições, gera custos astronômicos e nem sempre alcança eficácia correspondente, além de deixar aspectos mal resolvidos para o médico e também para os pacientes. Por outro lado, há estudos bem fundamentados mostrando que o método clínico bem utilizado apresenta alta resolubilidade na maioria das demandas médicas. Infelizmente, tanto no setor público como no setor privado, as condições que estimulam o emprego do método clínico tornam-se cada vez mais raras. Aliás, a medicina ambulatorial pública e a medicina de convênios neste aspecto se aproximam, estimulando a simplificação dos meios clínicos. Entretanto, há uma diferença, pois a medicina de convênios estimula a propedêutica instrumental, podendo levar à utilização indiscriminada destes recursos, além do mais, pouco acessíveis ao paciente do setor público.9

Entretanto, há correntes preocupadas com a humanização da profissão, considerando que o caráter predominante técnico e instrumental tem tornado superficial a relação médico-paciente. Neste sentido, propõe-se distinguir doença de moléstia. Por doença se entende um evento biológico caracterizado por alterações anatômicas, fisiológicas ou bioquímicas, isoladas ou associadas. Há anormalidade na estrutura ou função de parte do corpo ou sistema do organismo, e sua presença pode ser ou não reconhecida por métodos clínicos. Já por moléstia se compreende um fenômeno humano, mas não obrigatoriamente biológico, correspondendo à experiência do ser humano com a enfermidade, ou seja, a um conjunto de desconfortos ou distúrbios físicos ou psicológicos. Assim, a moléstia representa reações pessoais, interpessoais e culturais à doença ou ao desconforto. O uso do termo moléstia, portanto, pode ser preferível, pois as manifestações biológicas de uma doença são particulares a cada pessoa. O médico deve diagnosticar e tratar não apenas a doença, mas estar atento e saber conduzir as demandas da moléstia do paciente.10

 

O SINTOMA NA PSIQUIATRIA E NA PSICANÁLISE

Desenvolvimento histórico e conseqüências atuais

Em paralelo, mas de forma diversa, os transtornos da alma, na expressão de LORENZER11, seguiram um caminho próprio.

Ao se lançar um olhar retrospectivo sobre a maneira como o mal-estar humano tem sido tratado verifica-se que nas tribos primitivas a figura do xamã cuidava das moléstias e doenças. Sua prática se faz no plano do sagrado (rituais mágicos) e no plano da natureza, na medida em que conhece e usa elementos da mesma (ervas, raízes e poções).

Na idade antiga, na medicina pré-científica, já se observa por um lado a cisão entre o espaço do sagrado e do natural, mas por outro a prática médica ainda permanece mesclada de elementos religiosos. Os epilépticos, por exemplo, são considerados mensageiros dos deuses.

Na idade moderna, com o advento da hegemonia da racionalidade, a partir de Descartes, há enorme desenvolvimento da ciência, em geral, e da medicina, em particular. Como já foi dito, com a medicina científica vai ocorrer grande impulso na sistematização e tratamento das doenças. Entretanto, durante longo tempo a psiquiatria não segue o mesmo caminho de outros ramos da medicina.

Nas perturbações da alma as relações foram mais complicadas. As lesões anatomopatológicas, apesar de exaustivamente procuradas, não eram encontradas, quer macro quer microscopicamente. Isto gerou grande perplexidade na psiquiatria dos séculos XVIII e XIX que, sob certo sentido, permanece até hoje.

Não podendo lançar mão da correlação anatomopatológica, muito menos ser auxiliados pelos exames complementares e aparelhos, os psiquiatras se vêem na condição do clínico da medicina pré-científica.

A psiquiatria clássica descreve exaustivamente os quadros clínicos classificados e sistematizados, que vão constituir sua psicopatologia. Nesta posição, apenas para citar alguns, encontram-se: Kretschmer, Kraepelin e Bleuler pela escola alemã; Morel e Clérambault, pela escola francesa.

Por outro lado, nos séculos XVII, XVIII e XIX, o cuidado dos enfermos da alma passa da esfera religiosa para a esfera do Estado. É quando se dá a chamada secularização do delírio. Com a Revolução Industrial as primeiras casas de internação aparecem na Inglaterra, em seguida na França (Lyon) e na Alemanha (Hamburgo).11

A secularização deste campo de problemas herdado pelo estado é repassada à medicina. Salpêtrière, Bicêtre e outros depósitos de miséria tornam-se ou pretendem tornar-se estabelecimentos curativos. Da repressão estatal passou-se ao poder médico, ao regime da domesticação, da técnica de internamento e exploração, acrescentando a pedagógica. Não se pode deixar de mencionar, neste ponto, a figura de Phillipe Pinel (1755-1826) e seu "traitement moral". A prática médica asilar foi por muito tempo o exercício da autoridade e do castigo.11

A Psiquiatria, com todo este poder, com a posse do corpo do enfermo e no afã de se cientificar, como os outros ramos da medicina, cometeu as maiores barbaridades, nisto em muito se assemelhando às torturas da Inquisição.

A busca frenética de causas orgânicas e terapêuticas somáticas levou às extrações dentárias generalizadas, aos abscessos de fixação, à piroterapia, à malarioterapia, além das convulsoterapias e comas insulínicos.

A Psiquiatria, ao não poder se utilizar do paradigma anatomoclínico e biológico como as outras especialidades médicas, colocou-se em posição de inferioridade, tornando-se assim uma prática, sob certo aspecto, enlouquecida.

A histeria

Toma valor particular o estudo e a abordagem da histeria, que ao tempo da medicina pré-científica é perseguida na figura das bruxas. Assim, como estas resistiram às torturas e às fogueiras, resistem também à medicalização da possessão.

Diferentemente do que aconteceu ao delírio, no século XVIII, a interpretação religiosa cede passo à abordagem médica, mas estabelece-se um conflito entre a figura do padre (exorcismo) e do médico. São descritas por LORENZER11 as disputas entre o padre Johan Josef Gassner e Franz Anton Mesmer, inventor de uma prática médica que veio a se chamar hipnose.

Mesmer (1734-1815), usando magnetizadores, obtém grande sucesso na abordagem de manifestações misteriosas. Insere-se aqui o magnetizador no papel autoritário do sacerdote. Mesmer terá suas atividades investigadas por uma comissão da Real Academia de Medicina da França, da qual fazem parte Benjamin Franklin (embaixador norte-americano) e Lavoisier. De modo geral, os integrantes da comissão, referenciados à medicina científica, classificam a atividade mesmeriana de charlatanice, o que leva o rei a proibir suas atividades. No entanto, um dos integrantes da comissão real, de nome Jussie, discordando de seus colegas, observa que nas práticas de Mesmer parece atuar um agente desconhecido, talvez o calor animal. Mostra, com isso, alguma sensibilidade e considera que deva existir algo além do objetivamente detectável por meios científicos. O mesmerismo se expandiu pelo território lingüístico francês e pela América do Norte, mas aos poucos foi sucumbindo às criticas da medicina científica, dirigida aos métodos marginais, sobretudo à hipnose.

A hipnose é, no entanto, recuperada por Auguste Ambroise Liébeault, médico da aldeia de Pont Saint Vincent, próximo de Nancy. Tratava seus clientes pela medicina oficial (quando cobrava honorários) ou pelo magnetismo (gratuitamente). Sua fama chegou aos ouvidos de Hyppolyte Berheim, professor e pesquisador da Universidade de Nancy, que aí introduziu, em 1882, a prática da hipnose. Foi, no entanto, pela influência de Jean Martin Charcot (1825-1893) que, ao apresentar à Academia de Ciências, também em 1882, os resultados de suas pesquisas sobre a hipnose, fez com que a mesma obtivesse algum reconhecimento.11

É este o universo que o jovem neurologista Sigmund Freud (1856-1939) vai encontrar: por um lado, a progressiva hegemonia da medicina científica e, por outro, seu fracasso na abordagem dos casos de histeria. Freud, com sólida formação médico-científica recebida da escola alemã e também por influência da escola francesa, com Charcot, percebe a impotência da abordagem médica da época nas questões anímicas.

A ambivalência é marcante em toda a obra de Freud. Se, por um lado, como homem da ilustração iluminista, desejasse criar uma ciência, por outro, a sensibilidade em captar pela escuta os fatos da clínica o levava a dificuldades de inserção neste campo, objetivo que sempre perseguiu. É digno de nota, mormente nos primeiros escritos, a preocupação que ele tinha em afastar as possíveis causas orgânicas em seus casos clínicos. Os exames neurológicos acurados e detalhados atestam esta afirmação. Além do mais, nos estudos sobre a histeria, ao se contrapor à posição eminentemente cientificista de Breuer (18421925), pede desculpas a seus leitores por seus relatos de casos não conterem o severo selo da ciência.12

A prova da genialidade freudiana está na capacidade de perceber a natureza radicalmente diversa do sintoma neurótico. A anatomia histérica é diversa da anatomia orgânica. A conceituação do recalque, do inconsciente enquanto sistema, das pulsões e seus destinos, proporciona a Freud a condição de elaborar a teoria psicanalítica, a fim de dar conta deste outro espaço, desta outra cena, da dimensão fantasmática e, assim, captar e decifrar as mensagens contidas nos sintomas neuróticos. Contrariamente ao sintoma médico, sinal de doença e que deve ser eliminado, o sintoma psíquico, sinal de moléstia, de mal-estar, de conflito, de um desejo recalcado, deve ser acolhido e decifrado.13

O modelo cientificista de medicina, entretanto, sempre resistiu a que seu discurso não desse conta inteiramente do sofrimento humano, pois tal fato está em contradição com a concepção positivista.

A psiquiatria na era da medicina tecnológica

A descoberta dos psicofármacos, a partir da década de 50, deu à psiquiatria, apesar de tardiamente, a oportunidade de ingressar pelo viés da psicofarmacologia, na era científica. Isto significa que, apesar dos meios científicos não serem ainda capazes de lançar concretamente alguma luz sobre a etiologia das moléstias anímicas, o tratamento medicamentoso passa a ser um ponto de referência a partir do qual toda psiquiatria é reelaborada. O sintoma psíquico passa a ser igualado ao sintoma médico comum. O que se aspira é sua eliminação pura e simples. É digno de nota, já nos anos 40, a polêmica entre Henri Ey (1900-1977) e Lacan (1901-1981), quando este último questionava a posição organodinamicista do primeiro, postulando uma causalidade psíquica própria. O psiquismo e sua sintomatologia eram para Henri Ey um epifenômeno do orgânico, do que discorda radicalmente Jacques Lacan.14 Esta polêmica ganha cada vez mais corpo nas décadas seguintes do século XX. A psiquiatria, mais uma vez, no afã de se cientificizar, se propõe como biológica, desconhecendo a dimensão psíquica como específica de seu campo de abrangência e como impossível de ser abordada totalmente por esta concepção da ciência.

A psiquiatria, tal como o Fausto de Goethe, vende sua alma ao diabo da ciência, a fim de obter um status de especialidade médica. No entanto, o que se vê é o risco de seu desaparecimento enquanto tal. Os quadros clínicos são agrupados em transtornos, para os quais existem, basicamente, um antidepressivo e/ou um ansiolítico, e a observação clínica acurada de cada paciente é, muitas vezes, dispensável. Não há especificidade nos casos clínicos, e não se dá valor à singularidade e à subjetividade. Desta maneira, não há razão de ser para a existência deste ramo da medicina, pois outras especialidades podem cumprir suas tarefas.

Além do mais, há o fato de que o discurso do capitalismo prevalece nos dias atuais.15 Ao mesmo tempo em que promove o incremento do mal-estar na civilização, propõe seu lenitivo pelas drogas, oficiais ou não: cria a demanda e oferece a "resposta". A psiquiatria tem servido como fiel vassala a este discurso. Com isto, ensaia os primeiros passos no afã de ingressar na medicina tecnológica. O diagnóstico por aparelhos e gráficos começa a aparecer. As hipóteses diagnósticas não obtidas através do paradigma anatomoclínico e biológico são agora propostas no nível fisiológico e neuroquímico (neurotransmissores). Diante deste quadro atual, cabe à psicanálise o papel de marcar bem a especificidade da causalidade psíquica, descoberta por Freud e acentuada por Lacan ao postular a tese do inconsciente estruturado como linguagem.

Os médicos, que nos primeiros tempos da psicanálise eram sua maioria, deixam para os não médicos a ocupação deste campo, dando mostras da não compreensão da especificidade do mesmo e criando um fosso cada vez maior entre os espaços científico e psicanalítico. Nesta dificuldade de confrontação e intercâmbio, o discurso capitalista se aproveita para negar a especificidade entre o campo médico e o campo psicanalítico. Oferta-se uma solução pseudo-científica ao tentar equivaler as sintomatologias específicas a cada um dos campos. Assim, tenta-se amordaçar a dimensão inconsciente de uma mensagem. A proposta cientificista, mais uma vez, coloca uma camisa-de-força nas doenças da alma, desta vez de forma tecnológica e sofisticada.

Dito isto, colocar-se-á uma situação clínica bastante comum hoje em dia: o uso concomitante de psicofármacos na situação analítica. Sabe-se que o tratamento médico farmacológico é sintomático, enquanto a abordagem psicanalítica pretende ser singular a cada paciente e procura a causalidade psíquica. Sabe-se, além do mais, que a posição freudiana, expressa em seus escritos técnicos no início do século XX, é a do não uso de nenhum outro tratamento concomitante durante a análise. Será que tal posição seria sustentável hoje? Por um lado, a eliminação pura e simples da sintomatologia retira do paciente a motivação que o leva a demandar uma análise; por outro, já que se dispõe destes recursos, seria lícito deixar que o sofrimento do paciente se mantenha, pois o processo analítico é lento e demorado? A medicação do paciente pode ser feita pelo próprio analista, quando ele puder receitar, ou necessariamente deve ser encaminhada a outrem? O discurso científico é necessariamente contrário ao da psicanálise? Não será o uso que o capital, como senhor pós-moderno, faz do saber científico o gerador de tais conflitos?

O não clareamento adequado das diferenças essenciais do sintoma visto pela psiquiatria ("abordagem científica") e pela psicanálise ("visão não científica"), não seria um dos fatores que manteria a confusão e o conflito existentes neste campo?

Os psicanalistas, para identificar-se a Lacan, apresentam sua produção em uma linguagem hermética e inacessível, criando um campo de saber esotérico; com isso, não estão contribuindo para manter as dificuldades de confrontação das idéias?

Por fim, o apelo para Freud em seu conceito de narcisismo das pequenas diferenças não levará a entender melhor a necessidade de hegemonia, seja do campo psicanalítico ou seja do campo científico?

O acirramento desta disputa psiquiatria/psicanálise interessa sobretudo à apropriação da psiquiatria pelas multinacionais e lança-se mão de um marketing, visando, de um lado, desacreditar a psicanálise, de outro, sugerindo ao cliente que demande de seu médico o receituário de tal ou tal medicamento.

Além destas, há muitas questões a trazer para discussão. Certamente da dificuldade de interlocução interdisciplinar - dificuldade, quem sabe, até certo ponto orquestrada - resulta a impossibilidade de esforço concentrado e maior em favor da diminuição do mal-estar dos clientes.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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