RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. 4

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Relato de Caso

Infecção em humanos por varíola bovina na regiao de Ibertioga, estado de Minas Gerais

Human infection with bovine smallpox in the Ibertioga region, State of Minas Gerais, Brazil

Antônio Fernando Diniz Freire1; Gustavo Henrique Reis de Oliveira1; Luiza Monteiro Rodrigues Magalhaes1; Tiago Augusto Campos de Moura Sousa1; Milton Campos de Souza2

1. Acadêmico do curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Barbacena. Barbacena, MG - Brasil
2. Médico anestesiologista e preceptor do internato do SUS Municipal de IbertiogaMG. Ibirtioga, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Rua Zacarias El-Corab, 27
São João Del Rei, Minas Gerais - Brasil CEP: 36307-240
Email: gustavoreisoliveira@yahoo.com.br

Recebido em: 06/12/2010
Aprovado em: 16/02/2011

Instituição: Unidade Básica de Saúde de Ibertioga - Minas Gerais

Resumo

INTRODUÇÃO E OBJETIVO: a varíola bovina é uma zoonose causada pela proliferação do vírus do gênero ortopoxvírus, sendo os bovinos a fonte primária de infecção humana. É importante apresentar relatos de casos dessa doença para que os profissionais de saúde, em especial os médicos, fiquem atentos para seu diagnóstico e tratamento corretos.
RESULTADOS: quatro casos de varíola bovina em humanos foram identificados e comprovados por exames sorológicos na regiao de Ibertioga, Minas Gerais. Todos os pacientes apresentavam sintomas em comum, como febre alta, falta de apetite, mialgia e lesões de pele.
CONCLUSÃO: deve ser dada mais atenção aos casos dessa zoonose, no sentido de seu correto diagnóstico, adequada terapia de suporte e boa orientação para os pacientes, para que possa se evitar a transmissão intrafamiliar, bem como para animais com os quais venham a ter contato, considerando que a quase totalidade dos casos ocorre em áreas rurais.

Palavras-chave: Varíola; Variola Bovina; Vírus da Varíola Bovina; Orthopoxvirus; Zoonoses.

 

INTRODUÇÃO

A varíola bovina é uma zoonose causada pela proliferação do vírus do gênero ortopoxvírus.1

Nos últimos sete anos, casos de doença pústulo-vesicular ocorreram em diversas propriedades leiteiras no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, acometendo o gado bovino leiteiro e humanos, principalmente ordenhadores e seus familiares.2 Desde o final da década de 90, têm-se registrado vários surtos de uma doença semelhante à varíola bovina em diferentes regioes do país, como no Vale do Paraíba-SP, no município de Cantagalo-RJ, e no Mato Grosso do Sul.3,4

A mão dos ordenhadores e os equipamentos de ordenha constituem as principais formas de transmissão da poxvirose entre os bovinos, com penetração do vírus nas soluções de continuidade da pele e mucosa dos animais, principalmente na regiao das tetas e úbere.2

A doença caracteriza-se por lesões papulares que evoluem para vesículas, pústulas e crostas. Em humanos, pode ocorrer reação sistêmica, tendo o paciente como principais sintomas: náusea, febre e linfoadenopatia. Tanto nos animais como no homem, a imunidade é duradoura (por anos), não sendo observados casos reincidentes.1

O diagnóstico conclusivo da varíola bovina é sempre laboratorial, não sendo possível estabelecê-lo com base no tipo de lesão, nos sinais clínicos e espécies envolvidas. Essas informações são apenas sugestivas, embora bastante indicativas da doença. O diagnóstico laboratorial específico pode ser por meio de: a) demonstração da partícula viral, do antígeno viral ou do ácido nucleico e do anticorpo antiviral; b) identificação das inclusões intracitoplasmáticas. A reação em cadeia da polimerase (PCR) constitui uma das principais técnicas de diagnóstico molecular na determinação dos agentes etiológicos das poxviroses, em especial para os gêneros Orthopoxvirus.5,6

Os surtos de varíola bovina comprometeram centenas de propriedades em todas as regioes e acarretaram expressiva perda econômica devido à diminuição na produção de leite e à ocorrência de mamite e outras contaminações bacterianas secundárias.7

Este trabalho teve como objetivo caracterizar essa enfermidade do ponto de vista clínico e epidemiológico, a partir do relato de casos clínicos.

 

RELATO DOS CASOS ESTUDADOS

São descritos quatro casos comprovados de contaminação pela varíola bovina em humanos, provenientes de diferentes áreas rurais de Ibertioga, Minas Gerais.

Todos os pacientes eram homens, ordenhadores, com idades compreendidas entre 26 e 40 anos, que procuraram espontaneamente o serviço da unidade básica de saúde, no período de julho a novembro de 2010. Relatavam em comum fazerem ordenha manual, não usarem medidas de proteção e terem contato direto com as tetas e úberes de vacas que apresentavam lesões ulceradas (Figura 1).

 


Figura 1 - Presença de lesões úlcero-crostosas em narinas.

 

Todos apresentavam lesões vésico-bolhosas que evoluíram para crostas com infecção secundária, inicialmente nas mãos e antebraços (Figuras 2, 3, 4, 5) Os pacientes apresentavam queda no estado geral, febre alta de aproximadamente 39 graus, sinais de desidratação, anorexia, mialgia, artralgia e adenomegalia axilar, com gânglios dolorosos à palpação. A drenagem linfática podia ser observada através da pele (Figura 6).

 


Figura 2 - Presença de lesões pápulo-vesiculares em mãos.

 

 


Figura 3 - Presença de lesão crostosa em antebraço.

 

 


Figura 4 - Presença de pústula em dedo.

 

 


Figura 5 - Presença de vesículas com infecção secundária em dedos.

 

 


Figura 6 - Hiperemia de vasos linfáticos visualizado em pele.

 

Pacientes com sintomatologia leve foram submetidos apenas a tratamento sintomático com alnalgésicos, antitérmicos e higiene da pele. Os pacientes com pior estado geral foram submetidos à antibioticoterapia devido à contaminação bacteriana nas lesões, analgesia com analgésicos, anti-inflamatórios e hidratação.

Todos foram submetidos a exames laboratoriais como hemograma, glicose, ureia, creatinina, proteína C reativa, cultura e antibiograma da secreção das vesículas. Realizou-se estudo sorológico para vírus do grupo pox. As quatro sorologias comprovaram a existência de anticorpos para orthopoxvirus na diluição de > 1/80, comprovando a infecção.

Todos os pacientes fizeram controle na unidade básica de saúde de Ibertioga, tendo após um mês do início dos sintomas resolução completa do quadro clínico.

 

DISCUSSÃO

O número de casos de varíola bovina em seres humanos vem aumentando a cada ano, porém, apenas uma fração vem sendo demonstrada nos trabalhos publicados sobre este tema no Brasil. A maioria dos pacientes infectados são trabalhadores rurais que normalmente não procuram serviço médico, por tratar-se de uma doença autolimitada. Quando o fazem, são subdiagnosticados em sua maioria, sem investigação ou notificação dos casos suspeitos.1 Foi o que aconteceu no município de Ibertioga, onde apenas parte dos ordenhadores procurou o serviço de saúde da cidade, enquanto outros casos suspeitos foram diagnosticados a partir de busca ativa nas fazendas da regiao.

Considerando-se que as perdas econômicas causadas pela infecção de bovinos são por vezes importantes e que os bovinos constituem a fonte primária da infecção humana, deve-se avaliar a possibilidade de vacinação do gado nas regioes mais atingidas.8 Os profissionais de saúde, em especial os médicos, devem ser orientados sobre a doença e estar atentos para o diagnóstico e tratamento corretos.1

Em Ibertioga, após o diagnóstico do primeiro caso clínico, os profissionais de saúde, incluindo médicos e o serviço de epidemiologia, foram informados sobre a doença e iniciou-se entao uma campanha de prevenção da varíola bovina.

Nas regioes onde existem focos da doença, todos os casos suspeitos deveriam ser notificados. As secretarias de saúde municipais deveriam enviar o material de casos suspeitos para laboratórios de referência mais próximos da cidade, a fim de agilizar o diagnóstico e rapidamente se traçar um mapa da doença na regiao, visando ao seu controle.1 Todos os casos suspeitos do município foram notificados e investigados ativamente pelo serviço de epidemiologia.

Para a maioria dos casos em Ibertioga, o tratamento realizado foi apenas para alívio dos sintomas e informações gerais. A literatura afirma que não é necessário o tratamento específico da varíola bovina, por se tratar de doença autolimitada na maioria dos casos, devendo-se apenas realizar medidas de limpeza e higiene local. São indicados tratamento sintomático e antibioticoterapia nos casos de infecção bacteriana secundária.9,10 O emprego de corticosteroides é contraindicado, podendo agravar as lesões. O uso do antiviral cidoforvir vem sendo utilizado com sucesso em modelos animais infectados com o vírus cowpox, mas ainda não é indicado em humanos devido ao seu alto potencial tóxico, em especial no sistema urinário. 11,12

Mais atenção deve ser dada a essa zoonose, com o objetivo de realizar seu correto diagnóstico, adequada terapia de suporte e a orientação dos pacientes, para que se possa evitar a transmissão intrafamiliar, bem como para os animais com os quais venham a ter contato. São necessárias campanhas de esclarecimento sobre a varíola bovina nas áreas rurais, principalmente para os ordenhadores, com o foco nos meios de contaminação da doença, os principais sinais e sintomas e medidas de prevenção e cuidados com os animais doentes.

 

REFERENCIAS

1. Silva AC, Reis BB, Ricci Junior JE, Fernandes FS, Corrêa JF, Schatzmayr HG. Infecção em humanos por varíola bovina na microrregiao de Itajubá, Estado de Minas Gerais: relato de caso. Rev Soc Bras Med Trop. 2008;41(5):507-11

2. Donatelle DM, Travassos DCE, Leite JA, Kroon EG. Epidemiologia da poxvirose bovina no Estado do Espírito Santo, Brasil. Braz J Vet Res Anim Sci 2007;44(4):275-82.

3. Fagliari JJ, Passipieri M. Relato sobre a ocorrência de pseudovaríola em vacas lactantes e ordenhadores do município de Aparecida do Tabuado-MS. Arq Inst. Biol. 1999;66:128.

4. Damasco CRA, Esposito JJ, Condit RC, Moussatche N. An emergent poxvirus from humans and cattle in Rio de Janeiro State: Cantagalo virus may derive from Brazilian smallpox vaccine. Virology 2000;277:439-49.

5. Acha PN, Szyfres B. Zoonosis y enfermedades transmisiblescomunes al hombre y a los animales. 2nd ed. Washington, DC: Organizacion Panamericana de la Salud; 1986. p. 297-551.

6. Iketani Y, Inoshima Y. Asano A. Murakami K. Shimizu S. Sentsui H. Persistent parapoxvirus infection in cattle. MicrobImmun. 2002;46:285-91.

7. Lobato GS, Trindade MCM, et al. Surto de varíola bovina causada pelo vírus Vaccinia na regiao da Zona da Mata Mineira. Arq Bras Med Vet Zootec. 2005;57(4):423-9.

8. Schatzmayr HG, Costa RVC, Gonçalves MCR, et al. Infecções humanas causadas por poxvirus relacionados ao vírus vaccinia no Brasil. Rev Soc Bras Med Trop. 2009 nov-dez;42(6):672-6.

9. Schatzumauyr HG, Lemos ER, Mazur C, et al. Detection of poxvirus in cattle associated with human cases in the State of Rio de Janeiro: preliminary report. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2000;95:625-7.

10. Schupp P, Pfeffer M, Meyer H, Burck G, Komel K, Neumann C. Cowpox vírus in a 12-year-old boy: rapid identification by an orthopoxvirus-specific polymerase chain reaction. Br J Dermatol. 2001;145:146-50.

11. Heilbronner C, Harzic M, Ferchal F, et al. Infection à cowpox virus chez l'enfant. Arch Pediatr. 2004;11:335-9.

12. 12. Postma BH, Diepersloot RJA, Niessen GJCM, Droog RP. Cowpox-virus-like infection associated with rat bite. Lancet. 1991;337:733-4.