ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Culpa na clínica: apresentação de três casos
Guilty feeling in psychotherapy clinics: report of three cases
Carlos David Segre
Psiquiatra pela A. B. P., Psicoterapeuta, Mestre e Doutor em Medicina pelo Depto. de Psiquiatria da FMUSP, Diretor do Núcleo de Desenvolvimento de Pesquisa e Pós-Graduação (NDPPG) da Faculdade de Medicina de Itajubá (Minas Gerais)
Endereço para correspondênciaCarlos David Segre
Rua Paulo Vieira, 374/114 A
São Paulo, SP CEP 01257 - 000
Tel. (11) 38755123
Resumo
Neste estudo, conceitua-se o sentimento de culpa e discutem-se sessões supervisionadas de psicoterapia dinâmica breve de três pacientes psicossomáticos nos quais aparece culpa. Acentua-se a importância da falta e/ou dos erros da comunicação entre os membros da família do paciente, na gênese da psicopatologia e da alteração do rumo vital do sujeito. Assim, é importante frisar, que além de sua origem biológica e constitucional, a doença psicossomática tem causa social: a distorção da comunicação nos vínculos familiares. Essa falha na comunicação, por sua vez, remonta a três causas principais: biológica, constitucional e social, estabelecendo círculo vicioso que se alastra e se mantém. Pretende-se relembrar e sublinhar que o ser humano é uma unidade indivisível; o estudo da culpa pretende destacar um elemento importante, entre tantos outros, na gênese de distorções das quais o ser humano é vítima. Contudo, o fenômeno humano é muito mais amplo do que qualquer teoria ou aspecto parcial com o qual se tenha a pretensão de abordá-lo.
Palavras-chave: Culpa; Depressão; Relações Familiares
A razão pela qual se escreve este artigo, embora sejam apresentados apenas três casos, é a importância da existência universal do sentimento de culpa em todas as relações humanas e, particularmente, no vínculo paciente/terapeuta. Ter ciência da culpabilidade seria mostrar o óbvio; no entanto, em minha experiência de terapeuta, o sentimento de culpa sempre aparece no vínculo, de modo mais claro ou, às vezes, mais escondido. É também muito freqüente que o paciente não saiba distinguir se a culpa se origina nele mesmo ou se veio induzida por alguém de seu convívio ao longo de sua vida. Sem essa distinção, muitas vezes, a pessoa carrega o mundo nas costas, vítima da descarga de tensões alheias, culpando-se pelo que não fez. Assim, apresentam-se três casos nos quais surge a culpabilidade de modo evidente, e tenta-se discuti-los à luz da bibliografia apresentada. Conforme afirmação anterior, difícil será encontrar paciente que não mostre culpa em outro momento de sua terapia. Dessa forma, o leitor que acompanhar esta trajetória, poderá descobrir muitos outros casos semelhantes e estar atento para esse fenômeno humano tão comum.
Definição do sentimento de culpa: trata-se de afeto, sentimento, emoção, paixão, simpatia e dor, segundo Bueno1. Cuvillier2 frisa culpabilidade, acentuando a conotação afetiva; seu efeito sobre o sujeito é mais importante do que o ato em si, classicamente representado pela seqüência: crime, culpa e castigo. Ribeiro3 também se refere à culpabilidade, sob o ângulo jurídico de quem comete um crime de assassinato ou roubo, dos que o perdoam e dos que se arrependem.
Corsini4 afirma que a emoção é apreendida de fora e depende da moral de cada época, que, por sua vez, é determinada por fatores sociopolítico-econômicos. Assim, sem o saber, estamos internamente condicionados pelo meio externo.
Apresenta-se, a seguir, a experiência de alguns autores recentes que estudam a culpa:
Foucault5 estabelece uma ponte relevante entre o poder e o corpo. O primeiro tiraniza e controla o corpo e a sexualidade, provocando aumento do desejo sexual e rebeldia. Segundo esse autor, o Cristianismo coloca sexo e sexualidade no centro do cenário. A cultura manipula a sociedade, a família e os pais, que induzem falsa culpa (imaginária ou inconsciente) na criança. O exercício tirânico do poder socioeconômico-cultural sufoca a sexualidade e a criatividade, induzindo falsa culpa, que se aloja no terreno já preparado, que é a fantasia psíquica inconsciente.
Já Dunn6 afirma que a culpa não é apenas porta aberta para o castigo e a penitência; também tem função de encaminhar uma resolução.
Goldberg7 frisa a importância da sinceridade no amor de pai para filho a serviço do fortalecimento da identidade do filho, para facilitar a reciprocidade exatamente por causa da rivalidade edípica. Segundo a teoria psicanalítica, a rivalidade natural entre pai e filho pela posse da mãe é conflitiva e produz culpa. Se houver diálogo sincero entre pai e filho sobre esse assunto, há esperança de que o filho possa crescer menos submisso ao efeito tiranizante da culpa, promovido pela fantasia psíquica inconsciente.
Leitenberg e Henning8 frisam o tabu da sexualidade no Ocidente, sobretudo nos EUA, que induz à culpa e promove o cortejo de sintomas de que o indivíduo lança mão para se punir e/ou para castigar alguém a ele vinculado. Dessa forma, a indução da culpa passa pelo vínculo pai/mãe/filho.
Falsa culpa auto-induzida é relatada por Mahorney e Cavenar.9 Eles descrevem a depressão do paciente que acreditava ter Aids por ter traído a mulher há mais de 20 anos!
Pewzner-Apeloig10,11 relaciona culpa com depressão, religião e cultura. Refere também que a cultura influenciada pela religião molda a comunicação interpessoal. Essa relação é intermediada pela noção do pecado original e de outros pecados: a religião judaico-cristã, no Ocidente, induz, aculpa na cultura, de todos os modos possíveis, incrementando a busca do prazer pelo que é proibido. A depressão ocorre como conseqüência da transgressão, seguindo o parâmetro: crime, culpa e castigo.
O livro da jornalista Maraini12 traz depoimentos de gente famosa (pintores, músicos, literatos, etc.). Alguns dos entrevistados afirmam que o comportamento preconceituoso é produto da associação maligna entre educação autoritária e religião, sobretudo na infância, produzindo muito sofrimento real, possivelmente evitável.
A epidemia mundial de Aids é usada, muitas vezes, para fazer da mulher o bode expiatório pela existência dessa doença. Trata-se de uso social perverso a serviço do poder, segundo a autora Bruyn.13 A história do sujeito humano poderia ser sintetizada assim: há três preocupações fundamentais, ou seja, a vida, a morte e a sexualidade. Alegria e tristeza giram ao redor desses três elementos. A fonte do prazer que é propiciada pela vida e pela sexualidade entra em choque com o preço a pagar, isto é, a doença e a morte. O preço a pagar pela sexualidade sempre foi alto e é representado pelas doenças sexualmente transmissíveis. Hoje, o maior vilão é o vírus HIV. Sexualidade e culpa sempre andaram juntas; basta lembrar a luxúria, que é considerada pecado capital, ou seja, merece a pena de morte. Sexualidade, pecado, culpa e preconceito sobram então para o ser humano, principalmente para a mulher, historicamente submetida ao poder masculino.
Esses autores sintetizam a posição que defende a indução de fora para dentro da culpa, que estou denominando falsa (ou imaginária), mas que o sujeito carrega sem saber, sofrendo conseqüências dela na própria pele.
Outros trabalhos apresentam alguns elementos que, com suas particularidades, acredito que possam enriquecer este relato.
O que dizer do explosivo aumento da criminalidade? De alguma maneira, a indução da delinqüência é referida por Farrington et al.14, que procuram avaliar a prevalência de criminalidade em rapazes cujos pais cometeram algum crime. Os autores discutem os fatores genético e ambiental, que, quando combinados, estimulam a delinqüência juvenil.
O artigo do National Institute of Mental Health15 refere as conseqüências padecidas por crianças e adolescentes que presenciaram situações traumáticas. Dentre as dificuldades, aparecem depressão, pesadelos, medo, irritabilidade, raiva, recusa de ir para a escola e sentimento de culpa por não ter conseguido evitar a morte e o sofrimento de amigos e parentes.
Finalmente, Exline et al.16 discutem o papel de oposição à religião na depressão e no suicídio. A idéia desses autores é de que os opositores da religião sofrem de alguma patologia mental. Afirmam que a religião é elemento protetor contra depressão e suicídio. Embora seja oposta à minha experiência clínica, acho interessante incluir a idéia desses autores neste trabalho. Exline et al. referem dois aspectos na religião: negativo (culpabilizante) e positivo (que perdoa).
MATERIAL E MÉTODO
O material clínico se refere a três pacientes tratados com P.D.B. (Psicoterapia Dinâmica Breve). A primeira, M (feminina), e o terceiro, E (masculino), são portadores do vírus HIV. A segunda paciente, F (feminina), tem o vírus HTLV 1, parente do HIV.
O método consiste na exposição de alguns diálogos da relação terapeuta/paciente.
As duas pacientes e o paciente foram tratados pela mesma psiquiatra.
M, a primeira paciente, tem 25 anos, é branca, brasileira, dona-de-casa, tem instrução primária, vive maritalmente, é inteligente e motivada. Foi indicada para P. D. B. por estar em crise ao descobrir ser portadora do vírus da Aids. Fez P. D. B. durante seis meses, com uma sessão semanal. Ao término do processo, seu CD4, que era de 245/mm3 passa a 730/mm3. O foco escolhido é sua destrutividade em função do mau vínculo com a mãe. O pai abandonou o lar quando a paciente tinha dois anos de idade e ela nunca mais soube dele. A mãe sempre responsabilizou o pai pelas desgraças da família. A paciente fugiu de casa aos 15 anos para escapar da tirania materna. A terapeuta desta paciente atende a vários casos encaminhados pelo Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, e, na experiência dela, a contaminação pelo vírus HIV, paradoxalmente, confere tranqüilidade ao sujeito, pois este considera o fato como fatalidade inevitável.
A paciente F tem 50 anos, é branca, chilena, dona-decasa, tem instrução secundária, é casada. Está deprimida após ter sido contaminada, pelo marido, com o vírus HTLV 1. Fez 24 sessões de P.D.B., uma vez por semana, focalizando a relação com o marido. Este a abandonou e foi viver com uma moça da idade de sua filha mais velha.
O paciente E, masculino, 36 anos, branco, brasileiro, médico, solteiro, está a um passo do suicídio. É usuário de droga, HIV positivo e viciado em dolantina. O foco é sua destrutividade e sua relação com os pais. O trabalho psicoterápico em P.D.B., com uma sessão semanal, durou seis meses. A comunicação dessa pessoa com o pai é praticamente nula; a mãe é afetiva, submissa ao pai e muito carola. Os irmãos são muito perturbados: um deles é esquizofrênico e outro, usuário de drogas.
RESULTADOS
Apresentam-se, a seguir, alguns diálogos de M com sua terapeuta (T).
M - "Eu fui uma burra! Ganhei muito dinheiro fazendo programas, mas não juntei um tostão... gastava tudo com roupas, perfumes... eu só vestia roupa assim como a da senhora... era só comprar, comprar...".
T- "Talvez estas coisas que você comprava estivessem suprindo uma falta de outro nível".
M- "Lá vamos nós falar de minha mãe de novo!"
Ser burra significa atacar a própria percepção, não usar os próprios conhecimentos nem usar a própria experiência. A causa desses graves transtornos é a falsa culpa inconsciente (imaginária).
M- (chora) "Me arrependo de muita coisa...eu fui uma idiota... como fui me apaixonar por alguém como A? Eu tenho até vergonha das coisas que eu fazia; eu dava um monte de presentes para ele... e ele me deu este vírus! Não consigo me perdoar... Aliás, não consigo perdoar qualquer coisa que alguém me faça...".
T- Sua mãe também punia pequenas faltas com grandes castigos...".
M- "Eu faço igual, né? E acho que todo o mundo vai me julgar como ela fazia comigo".
T- "Assim você mantém sua mãe sempre por perto".
Não conseguir perdoar-se é perceber o mau uso que fez dos vínculos e comportar-se de modo sádico consigo mesma. A paciente percebe seu comportamento autodestrutivo e pode relacioná-lo com a educação que recebeu. Apesar do desastre que é ter mãe assim, a paciente precisa de referencial, por pior que seja, e, assim, mantém a mãe por perto.
Em outro momento:
M- "Não transo mais com meu companheiro atual (B), desde que soube ser HIV positiva, por medo de contaminá-lo e por não me sentir uma pessoa normal. Fico com muita raiva de mim mesma ao saber que A me traiu. Eu não aceito esta droga deste vírus! "
T- "Não aceita o vírus, não aceita seu passado, não aceita sua mãe...".
M precisa castigar-se e castigar seu companheiro atual porque não aceita que foi e continua sendo vítima de sua história familiar e social. Ou seja, perceber o mal que lhe fizeram e que ela, inconscientemente, se faz é muito doloroso e difícil.
Em seguida, surge exemplo de tentativa de resolução, como afirma Dunn6 :
M- "...eu achava que tinha de ter só raiva da minha mãe".
T- "... como é que ama alguém que lhe faz mal, como namorado e mãe, mas ama; ninguém no mundo vai lhe trazer só coisas boas... nem você mesma!"
M- (chora) "A senhora acha que eu consigo mudar este meu jeito de ver as coisas?"
T- "Ao se dar conta do que estamos conversando, você já está mudando".
Seguem alguns diálogos da segunda paciente, F, com sua terapeuta (T).
F- "Não quis nunca ver o óbvio! Teria sido menos mal se ele tivesse sido honesto. Ele me fez de palhaça e eu também me fiz e aí fico muito mal. Meu marido se recusa a fazer exame. Duas filhas fizeram o teste que deu negativo. Queria chamar meu marido, vender o apartamento e ir para o Chile".
T- "Estamos iniciando um trabalho e seria bom aguardar algumas semanas".
F- (Chora).
T- "Quer vir também amanhã"?
F- "Sim. É melhor não tomar decisão precipitada. Não sei como seria lá. Fui criada por empregados. Pai e mãe saíam para trabalhar. Eram ricos, mas não me permitiam divertimentos: não ia ao cinema nem ganhava presentes. Meu pai achava que a gente tem de viver como se não tivesse dinheiro, porque não se sabe quando ele vai acabar! Sempre chorei de desgosto na minha infância".
T- "Parece que lhe faltam referências afetivas e você se sente desamparada".
Quando F diz que não quer (ou não pode) ver o óbvio, está se acusando, mas, ao mesmo tempo, tomando, dolorosamente, conhecimento de uma verdade. Durante o tratamento, muitas vezes aparece sua cegueira emocional em função da clivagem com a qual tem vivido. É curioso observar que o vírus HTLV 1 que nela circula produz, entre outras alterações, uma doença ocular que pode levar à cegueira; aliás, ela já teve uveíte. Assim, mente e corpo andam juntos: o ser humano é biopsicossocial.
Outro trecho do diálogo:
F- "...meu pai, católico rígido, com o qual, apesar disso, meu relacionamento sempre foi melhor do que com minha mãe, dizia: "cuidado com os homens, sexo é pecado". Abraçar meu marido sempre foi muito difícil para mim, imagine procurá-lo para sexo! Havia muita briga por ciúme entre nós. Assim o perdi.
T- "E a sacanagem dele?"
F- "Pois é. Tenho raiva às vezes. Este vírus é dele. Mas dependi de meu marido; na infância, apenas o jardineiro me consolava com um doce!"
T- "Você aprendeu a se contentar com pouco".
F- "Nunca havia pensado nisso".
Fica evidente a falsa culpa induzida pelo pai e assimilada por F, com a nefasta conseqüência de borrar a discriminação entre realidade e fantasia. A paciente mal consegue expressar raiva do marido, o qual não merece consideração dela.
Essa afirmação do pai da paciente mostra a tirania, o ciúme, a falsa culpa induzida pelo pai e pela religião, portanto, pela sociedade e pela cultura. Essa tirania paterna pretende (com sucesso) controlar mente e corpo da paciente.
Finalmente, os diálogos do paciente E com sua terapeuta (T).
E- "Venho do interior de Minas Gerais. Minha família, pai, mãe e sete irmãos nunca se entenderam. Meu pai é autoritário e minha mãe, submissa e muito carola".
T- "Que importância tem esse fato com sua preocupação atual com Aids?"
E- "Você já vai saber. Tentaram me educar com religião e boas maneiras. Mas eu detono tudo. Não faço vínculos!"
Ao desfilar a desagregação do vínculo familiar, o paciente mostra a raiz do seu mal e o uso que ele pode fazer disso. Não foi apenas ele a ovelha negra da família; outros dois irmãos o acompanharam.
E- "Tentaram me enfiar o medo do pecado e do castigo... Contudo, de vez em quando, acho que posso acabar mal".
T- Então você acha que podia fazer o que bem entendesse sem conseqüências; contudo, agora, busca refletir a propósito".
E fala de pecado e castigo intermediados pela falsa culpa inconsciente. De modo embrionário, tem noção de que pode acabar mal. O pai é autoritário e E reclama disso com razão, mas o paciente não sabe o que fazer com isso e, por disputa, busca ser mais realista do que o rei. Encarnando o papel de herói, caminha para o suicídio.
Quando este paciente tem noção de que pode acabar mal, está procurando conter a corrida suicida; esforçandose na tentativa de resolução, busca sair do círculo vicioso: crime/culpa/penitência (castigo).
Em resumo, M, F e E apresentam em comum:
Culpa em relação à mãe.
Superego tirânico (M), tanático (E) e rígido (F).
Falsa culpa induzida.
M e E mostram tentativa de resolução.
Desta pesquisa qualitativa, sobressaem as seguintes expressões relativas à culpa:
M
"Eu fui burra".
"Não transo mais".
"Não me sinto normal".
"Tenho até vergonha das coisas que fazia...não consigo me perdoar".
"...eu achava que tinha de ter só raiva dela".
F
"Nunca quis ver o óbvio".
"Meus pais não me permitiam divertimentos".
"Sempre brigamos por ciúmes".
"Cuidado com os homens. Sexo é pecado"!
E
"Minha família, pai, mãe e sete irmãos nunca se entenderam".
"Meu pai é autoritário... tentaram me enfiar o medo do pecado e do castigo".
"Contudo, de vez em quando, acho que posso acabar mal".
A dinâmica da relação terapêutica desses três pacientes permite que apareça a culpa por meio dos diálogos apresentados. As expressões citadas e extraídas das seqüências apresentadas colocam em evidência o fenômeno sobre o qual se chama a atenção neste relato de casos clínicos. Na discussão a seguir, proponho a análise semântica da palavra culpa nas expressões apresentadas.
DISCUSSÃO
Os três casos exemplificam, na história pessoal de cada um e no vínculo terapêutico, a ocorrência de culpa. Em se tratando de uma pesquisa qualitativa (e não quantitativa), inicia-se a discussão dos resultados buscando-se o sentido, ou seja, a semântica na comunicação dos pacientes. Da exposição de alguns momentos do vínculo desses pacientes com sua terapeuta, surgem alguns aspectos.
A paciente M se considera burra, ou seja, durante a P. D. B., ela percebe que tem atacado sua própria percepção. Antes do vínculo terapêutico, sem saber porque, ela caminhava para a autodestruição, disfarçada na busca de felicidade e prazer (princípio do prazer que busca evitar a dor a qualquer custo). Suas paixões têm sido cegas em função da sua falta de auto-estima. Em parte, a baixa auto-estima é conseqüência da falsa culpa de M. Essa pessoa sempre foi muito desprezada pela própria mãe; dessa forma, não pode ter um referencial seguro para sua vida; sofre de falsa culpa induzida e incorporada no cerne de sua personalidade. O sentimento de culpa fica evidente quando ela diz que não transa mais, ou seja, precisa se punir, não se permite dar e receber prazer, atacando sexualidade e vida. Ao se dar conta de seu funcionamento suicida, cobra de si mesma, não conseguindo perdoar-se. Autores como Maraini12 e Goldberg7 enfatizam o malefício causado pela falta de sinceridade nos vínculos, pelo autoritarismo e pela religião, cujos responsáveis são família, sociedade e cultura.
A tristeza de M mostra que sua mãe nunca a compreendeu e sempre a desprezou. Faltou, para M, a mãe que compreende, contém emoções violentas e perdoa. Assim, emoção externa sádica, por falta de compreensão, produz desequilíbrio entre fantasia interna e realidade externa, induzindo comportamento perverso na paciente.4
Durante a P. D. B., M percebe a discrepância efetiva entre ela e sua mãe e consegue discriminar o que é de responsabilidade de uma e da outra, ou seja, identifica a própria culpa. Nunca é demais recordar que a condição necessária para que esse processo de identificação aconteça é existir vínculo afetivo confiável, no qual emoções positivas e negativas possam ser postas em palavras e, assim, conscientizadas, muitas vezes pela primeira vez.
M consegue discriminar o que é dela do que é da mãe, principalmente a culpa e, dessa maneira, procura remediar, encaminhando uma resolução e melhorando a qualidade da própria vida, como afirma Dunn6 .
Mahorney e Cavenar9 relatam autoculpa induzida e depressão em paciente que o levam a crer ter Aids porque traíra a mulher há mais de 20 anos. No relato desta pesquisa, tanto M quanto E têm doença somática potencial porque são portadores do vírus HIV. Em parte, eles provocaram sua doença em função de falsa culpa induzida de fora. O paciente dos autores citados tem falsa culpa autoinduzida. Contudo, Spencer (sem data de publicaçãonão consta da bibliografia - ) evidencia relação dinâmica e dialética dentro e fora, aproximando o relato dos autores citados ao dos pacientes aqui apresentados e o denominador comum é o sofrimento.
Bruyn13 lembra o uso do poder sobre a mulher que, no mundo da Aids, fica sendo a responsável, como evidenciam claramente M e F.
M sofre porque seu self é falso, em função das distorções vindas de fora e incorporadas pela paciente: a mãe que cobra é o fator inoculador da culpa. O comportamento dela é perverso. Neste caso, em que fica clara a identificação patológica, a dependência do exterior tornase berrante. O modelo que surge à lembrança é o do usuário de drogas, do dependente químico. M, desde muito cedo, assume, sem sabê-lo, comportamento suicida induzido, pelo menos em boa parte, por mãe filicida. Essa pessoa fica submissa à tirania do superego. A falsa culpa induzida pela mãe e produto da própria distorção transborda para o vínculo afetivo-sexual: tem muita raiva do companheiro e de si mesma e, sem saber, comete suicídio: é condenada à morte pelo próprio inconsciente.
A falta de sinceridade nos vínculos se traduz em comportamento estereotipado e repetitivo dos pais sobre o filho. Essa falha na comunicação, ou seja, a mentira, é influência maligna sobre corpo e mente do sujeito, com grave repercussão psicossomática. Um dos veículos malignos é a falsa culpa induzida, que abre caminho para instalação e perpetuação da doença na mente e no corpo, mediante o ataque à percepção. Assim, a pessoa, sem sabê-lo, torna-se muito vulnerável, como bem exemplifica F. Seu vínculo com a realidade foi perturbado precocemente por pais filicidas. A brincadeira, que é o instrumento usado pela criança para conhecer o mundo, apreender com a experiência e crescer, não foi adequadamente desenvolvida por F. Ela supervalorizou o elemento negativo, ou seja, o ciúme. Assim, F nunca pôde enxergar o que ela chama de óbvio, não pôde desenvolver consciência crítica, daí seu comportamento ingênuo e submisso ao marido, pois ela representa o papel da "menina boazinha". Funciona assim porque foi impedida em boa parte pelo pai, presente, mas preconceituoso e tirânico, e pela mãe, indutora de ciúme, porque ostensivamente preferia a irmã. Assim a história de vida de F retrata e confirma as assertivas de Pewzner-Apeloig,10,11 o qual correlaciona depressão, religião e cultura, que são elementos que moldam a comunicação interpessoal. F foi desajustada por criação: os homens são perigosos e ela deve se afastar deles. Então, não pode procurar o marido; sexo é pecaminoso, fonte de culpa. O vínculo entre F e sua terapeuta procura desfazer os mal-entendidos anteriores, atualizando sua vida e promovendo progresso.
Da mesma forma, Maraini12, por meio de depoimentos, propõe a associação maligna entre educação autoritária e religião, sobretudo na infância e na adolescência.
Pai e mãe, ignorantes quanto ao papel da mente nos vínculos e tomados de preconceitos, crenças e medo, não sabem como lidar com a angústia diante do princípio do prazer que motiva promiscuidade sexual, uso de álcool e drogas. Funcionam de modo autoritário ou, outras vezes, permissivo demais e fazem de forma pior o que já não estava bom.
Assim, E mostra o conflito sociofamiliar-cultural, mediado pela religião e pelo preconceito que, em parte, o impele ao suicídio. Essa situação tão tristemente destrutiva recorda as assertivas de Goldberg7 quanto à urgência de sinceridade na comunicação de pai para filho, a fim de facilitar a reciprocidade exatamente por causa da rivalidade edípica. Também Leitenberg e Henning8 abordam o assunto: a sexualidade é tabu por falta de franqueza na comunicação familiar. Assim, erotismo, luxúria e ambição são tidos como pecados e são fonte de culpa, graças à moral ocidental judaico-cristã. E expõe as mazelas da família que nunca se entendeu, ou seja, a moeda circulante deve ter sido a repressão, o sufoco, a autoridade exercida com tirania e de modo filicida. De alguma forma, ao perceber que pode acabar mal, esse sofrido sujeito se agarra à realidade e, assim, vincula-se do melhor modo que lhe é possível à sua terapeuta.
A falsa culpa induzida em E permite conjecturar que este movimento seja responsável por desencadear falta de discriminação entre sentimento e sensação. Essa falta de discriminação equivale a um estado confusional entre realidade e fantasia, que ficam demasiado próximas ou excessivamente distantes.
Dos três casos, principalmente F e E evidenciam a tirania do poder sobre o corpo e a sexualidade5. O Cristianismo, cuja origem é judaica, coloca sexo e sexualidade no centro do cenário. A tirania é exercida mediante indução de falsa culpa pela fantasia psíquica inconsciente.
As pacientes M e F, por serem mulheres, encarnam o papel passivo em boa parte de acordo com as normas preestabelecidas pela sociedade e pela cultura. Esse papel passivo recorda a antiga descrição de Freud sobre o masoquismo primário, que se manifesta sobretudo nas mulheres.
E desfila seu papel homossexual por oposição aos pais e, em dado momento, afirma que sempre soube ser heterossexual. Contudo, ele "embarca" em um papel passivo, masoquista e suicida. Sem esquecer a importância da constituição genética, ele encarna esse papel por causa da imposição familiar e sociocultural que desde cedo, distorceu e/ou impediu franqueza nos vínculos. Sua dependência química ilustra também esse aspecto, como já exemplificaram os autores da literatura citada. A entrega de E ao princípio do prazer (sexo e droga) encobre masoquismo suicida. Além de fatores genéticos, é útil lembrar a dificuldade que este paciente teve de fazer vínculo com seus pais na infância e na adolescência, o que o levou à falta de discriminação entre realidade e fantasia.
As mulheres M e F assumem papéis masoquista e suicida em função de suas respectivas histórias e pelo fato de serem mulheres.
Assim, falsa culpa induzida, tabu, preconceito, crença e medo induzem comportamento suicida em M, F e E, confirmando as assertivas de Pewzner-Apeloig,10,11 Maraini,12 Goldberg,7 Leitenberg e Henning8 Foucault,5 entre outros.
Contudo, graças ao esforço psicoterápico na P.D.B., o que traduz grande dificuldade para paciente e terapeuta, por ser terapia de curta duração, M e E mostram tentativa de resolução, de acordo com Dunn.6 É conveniente ressaltar a dificuldade adicional da P.D.B. no caso de pacientes somáticos, em função da sua labilidade emocional e, principalmente, da grave doença que neles se instalou.
M, ao tomar contato com a destrutividade da sua mãe, podendo discriminá-la da sua própria destrutividade, procura aproveitar, da melhor maneira possível, o tempo de vida que lhe sobra, incrementando a qualidade da mesma: retorna aos estudos interrompidos. Essa possibilidade decorre do interjogo transferência/realidade no vínculo terapêutico. Ou, dito de outra maneira, como é possível fazer um teatro vivo em vez de um teatro morto?
Entre outras coisas, com bom humor e ironia. Dario Fo, em uma entrevista, lembra que a sátira ajuda a enfrentar a tirania. M também sente culpa por atacar bons aspectos que recebeu de sua mãe e por estar fazendo mau uso deles. E procura fazer o mesmo quando se esclarece a respeito das diferenças entre ele e sua família. Tenta refrear, na medida do possível, sexo e droga.
A violência é condição cada vez mais freqüente na vida atual. Dessa forma, são relevantes as observações de Farrington et al.14 e também o artigo do National Institute of Mental Health15. De modo indireto, M, F e E foram submetidos a dificuldades por falta de compreensão de pai e mãe e também por seguirem, sem o saber, um modelo prejudicial para eles. Os elementos comuns discutidos por esses autores e os que aparecem na vida dos pacientes citados são: raiva, depressão, culpa, rebeldia e medo.
Exline et al.16 pesquisam depressão, medo, crime, culpa, castigo e tentativa de suicídio, mediante estudo de ampla amostragem e concluem que a recusa da religião está associada à maior prevalência de depressão. Portanto, as pessoas que acreditam em um deus que perdoa pecados parecem estar menos sujeitas à depressão, segundo esses autores.
A supervisão de psicoterapias de vários casos, inclusive os deste artigo, apontam para uma indução externa consciente e/ou inconsciente da culpa (ou de outros elementos), que é captada pelo inconsciente individual e transformada em doença. Portanto, de acordo com minha experiência, há necessidade de buscar nexo causal entre a fantasia do sujeito ligada a crime (pecado), culpa e castigo e a indução externa de culpa introjetada pelo mesmo.
Para finalizar, lembro o testemunho de Saramago em sua obra-prima literária "O Evangelho segundo Jesus Cristo", recentemente transformada em peça teatral. Nesse texto admirável, o fecundo autor lusitano mostra, passo a passo, a indução da culpa de pai para filho. Isso se dá de modo inexorável, em função da falta de comunicação e/ou de vínculo distorcido em que medo de ser autêntico, preconceito, tabu e submissão à autoridade povoam o cenário. Dessa forma, Cristo encarna até a morte o papel de bode expiatório, que lhe foi preparado previamente pela família, pela sociedade e pela cultura.
CONCLUSÕES
1)Preconceitos, crenças, medo do castigo, autoritarismo, vergonha e pecado são elementos malignos da cultura, que agem às claras ou nos bastidores sobre a sociedade, a família e o sujeito.
2)A falsa culpa penetra na criança e no adolescente por meio da cultura, da sociedade e da família. A criança e o adolescente são moldados pelas pessoas das quais dependem afetiva e economicamente. Essa indução é possível porque encontra terreno propício na fantasia psíquica inconsciente.
3)Comportamento consciente e/ou inconsciente dos pais constitui o veículo para a indução da culpa.
4)O estudo destes três casos parece apontar para o efeito deletério da culpa induzida sobre a saúde mental e física do indivíduo, o que , inclusive, coloca em risco a sua vida.
5)Sugerimos aprofundar trabalhos a respeito, inclusive do ponto de vista quantitativo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- Bueno FS. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva; 1968.
2- Cuvillier A. Pequeno vocabulário da língua filosófica. São Paulo: Nacional; 1976.
3- Ribeiro LRA. Dicionário de conceitos e pensamentos de Rui Barbosa. São Paulo: Edart; 1967.
4- Corsini RJ. Encyclopaedia of psychology. New York:John Wiley & Sons; 1984.
5- Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1995.
6- Dunn B. Growing up with a pychotic mther: a retrospective sudy. Am J Orthopsychiat 1993;63(2):177-89.
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