ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Certificação e recertificação em medicina: o próximo desafio para a medicina brasileira?
Certification and recertification in the medical profession: the next challange for brazilian medicine?
Cláudio de Souza1; Christiano Andrade Souza2
1. Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG. Doutor em Medicina
2. Bolsista de Iniciação Científica. CNPq
Rua Zito Soares, 205
CEP 30315230. Belo Horizonte. MG
E-mail: csouza@medicina.ufmg.br e chrsouza@medicina.ufmg.br
Resumo
Após conceituar a certificação e a recertificação no contexto da profissão médica, justifica-se a necessidade de sua implementação no Brasil. A despeito dos esforços dos setores oficiais, é praticamente impossível padronizar a qualidade do ensino nas 108 escolas de Medicina existentes no Brasil. Por outro lado, novos conhecimentos são diariamente incorporados às ciências médicas, tornando a necessidade de atualização, problema crucial para os médicos. É feita breve revisão acerca da experiência de outros países com a adoção de programas de certificação e de recertificação. Comenta-se sobre as dificuldades e os custos de tais programas no Brasil. São feitas algumas sugestões e concluise que a implementação de programa consistente não será tarefa fácil no Brasil. Ao mesmo tempo, essa tarefa não deve ser adiada. As implicações sociais e financeiras demandam reflexão e cautela, mas não devem representar obstáculo.
Palavras-chave: Certificação de Qualificação Profissional; Medicina; Educação Médica.
A certificação em Medicina deve ser entendida como patamar definidor do nível mínimo de conhecimento necessário ao exercício profissional e a recertificação, como mecanismo aferidor da manutenção e atualização deste conhecimento.
A despeito dos esforços das entidades oficiais responsáveis pela qualidade do ensino médico, é difícil, senão impossível, formar médicos dentro de um padrão de qualidade homogêneo, no Brasil. Daí a necessidade de instituir a certificação profissional na Medicina. Por outro lado, nestes tempos modernos, é cada vez menor o intervalo necessário à renovação do conhecimento. Os reflexos desta realidade são imediatos na Medicina. Algumas especialidades têm se beneficiado com um avanço tecnológico sem precedentes na história da humanidade. Tudo isso gerou a necessidade de uma reciclagem contínua, sem a qual o médico fica ultrapassado. Reciclando-se em intervalos cada vez menores, o profissional estará garantindo seu aperfeiçoamento e oferecendo à sociedade uma prática médica dentro dos mais elevados padrões de qualidade.
Ainda que as 108 escolas médicas, atualmente existentes no Brasil,1 predominem nas regiões mais desenvolvidas, as realidades loco regionais são diferentes, refletindo na qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão, tripé indispensável à formação médica de qualidade. No Brasil, a tentativa de avaliar a qualidade de ensino ministrado pelas escolas médicas é recente e ainda não surtiu efeito prático interditando ou fechando escolas cujos formandos não atinjam um patamar mínimo de conhecimento. Tal procedimento constitui, na prática, o sistema de acreditação das escolas médicas.
As dificuldades criadas devido à diferença de conhecimento entre os médicos recém-egressos das faculdades poderiam ser parcialmente contornadas, caso o ensino em nível de pós-graduação, latu sensu, oferecesse programas de residência médica de qualidade e em número suficiente para suprir as necessidades dos formandos. Outro mecanismo homogeneizador seria prover educação médica continuada de acesso fácil e custo baixo. Infelizmente, essas hipóteses não fazem parte de nossa realidade.
É provável que a reversão dessas dificuldades seja um objetivo difícil de ser alcançado a curto e médio prazo. Assim sendo, é válido pensar que o estabelecimento de um programa nacional de certificação e recertificação dos médicos, com embasamento legal, traria benefícios imediatos à sociedade. É certo que a implantação de tal programa tem de ser bem avaliada. Seu custo social não pode ser elevado e seu objetivo exclusivo deve ser a melhoria do padrão da prática médica no Brasil.
REVISÃO DO TEMA
Segundo Benson, a responsabilidade profissional requer um mecanismo auto-regulador, capaz de definir e manter padrões de credibilidade. A certificação e a recertificação voluntárias, avaliada pelos pares, é benéfica à profissão médica, estabelecendo e reforçando padrões de excelência. Nos Estados Unidos da América (EUA), o programa de certificação conduzido pelo American Board of Internal Medicine visa melhorar a qualidade do exercício profissional, assegurando que internistas e especialistas possuam conhecimento, habilidades e atitudes necessários à provisão de cuidados médicos de alto padrão. A certificação representa um credencial aceitável pelos profissionais e pelos pacientes. A recertificação representa a oportunidade para o médico manter seu padrão de erudição e aperfeiçoamento ao longo de sua vida profissional1.
Nos EUA, o primeiro comitê de certificação foi implantado em 1917, na área de oftalmologia. Nos anos 60 surgiu um comitê para avaliar a prática da medicina familiar, fornecendo ao médico licença para o exercício profissional durante sete anos. Daí para frente surgiram diferentes comitês com critérios distintos.2
Para Norcini2, a avaliação dos resultados da prática médica pelos pacientes é peça fundamental nos programas de recertificação. Este tipo de avaliação não teria a artificialidade dos testes. Por outro lado, pode falhar, pois, na prática, o tratamento, muitas vezes, depende mais da equipe do que do médico individualmente. Além disso, a troca de médico pelo paciente pode dificultar a avaliação. Alguns comitês de especialidades nos EUA têm acompanhado o desempenho do médico em situações específicas, outros adotam o exame oral e outros, o exame escrito. Alguns estão adotando exames através de computadores com acesso aos seus sites. Um parâmetro cuja avaliação tem sido cada vez mais requisitada é o profissionalismo, medido através do relacionamento ético com o paciente. Alguns comitês, antes da recertificação, têm pesquisado a ocorrência de ações disciplinares contra o candidato e colhido informação no hospital em que ele trabalha.
Na Austrália, o programa de manutenção da performance profissional foi introduzido em 1994. Foram tomadas providências para que ele não fosse compulsório, excessivamente burocrático, de custo elevado e para que fosse extensivo aos profissionais que prestam serviços em instituições públicas ou privadas, no interior ou nos grandes centros urbanos. Na Nova Zelândia, uma legislação específica exige que o médico demonstre sua participação em um programa de educação médica contínua para exercer sua profissão.4
Na Holanda, o programa já funciona em áreas específicas desde os anos setenta. Em 1991, foi instituído oficialmente. Em 1995, a profissão médica sofreu nova regulamentação legal. Neste país, a recertificação se fundamenta em critérios técnicos, interpessoais e organizacionais. Além da avaliação técnica estabelecida pelos comitês das especialidades, e da avaliação pelos pares, cada profissional é visitado por um comitê composto por três colegas, um coordenador, um que será também visitado e um que foi recentemente visitado. O local de trabalho é inspecionado a cada cinco anos. O responsável pelo serviço e o médico avaliado devem preencher um questionário de avaliação. Para que o profissional se mantenha na profissão, é obrigatória a comprovação de pelo menos 40 horas de freqüência anual, em curso de educação médica continuada, bem como a prática efetiva da medicina.5
No Reino Unido, a recertificação ou revalidação como é designada, será instituída pelo General Medical Council (GMC), para todos os médicos a partir de 2002. O processo obedecerá a guidelines, relativos a Good Medical Practice previamente definidos para os General Practitioners e para os especialistas. As linhas gerais do processo são as mesmas adotadas em outros países, ou seja, avaliação através dos pares, dos pacientes, do relacionamento com colegas, da capacidade de organizar e armazenar os dados referentes aos atendimentos e em relação ao desempenho profissional. O comitê encarregado do julgamento conta também com a participação de leigos. No caso de insuficiência do profissional, somente o GMC pode suspender o registro.6
COMENTÁRIOS
Apesar de a necessidade da certificação e da recertificação ser inquestionável, sua adoção em nosso meio, provavelmente, passará por uma longa discussão, tanto no âmbito médico como no jurídico. A implantação abrupta desses procedimentos, ainda que legalmente respaldada, poderá ser traumática. O perfil da distribuição dos médicos no Brasil, analisado pelo Conselho Federal de Medicina,1 mostra que 39,1% dos médicos brasileiros trabalham no interior. Como a infraestrutura tecnológica e de suporte à reciclagem em geral está concentrada nas capitais e nos centros maiores, é possível imaginar a dificuldade dos médicos do interior para se manterem atualizados.
O deslocamento desses profissionais para se atualizarem tem um custo elevado tanto para a comunidade como para o médico. O custo financeiro representado pela freqüência a congressos, a cursos de atualização, compra de livros e acesso à informação via internet, infelizmente, extrapola o poder aquisitivo de parcela significativa de médicos.
Outro problema para o médico das comunidades menores é a inexistência de substitutos. Ao mesmo tempo em que a atenção aos cuidados básicos de saúde não exige níveis profundos de conhecimento, ela representa demanda impossível de ser contida ou controlada.
Estes fatos mostram, de modo inequívoco, as dificuldades enfrentadas para a atualização dos médicos que trabalham afastados dos grandes centros. É claro que, atualmente, essa dificuldade é contornável através do ensino à distância via internet, das salas de chat médico, da telemedicina e de outros recursos já disponíveis, mas que, infelizmente, ainda não fazem parte da rotina e da cultura de grande parcela dos médicos. Tudo isso contribui para a manutenção do status quo atual, segundo o qual é preferível para a comunidade ter um médico desatualizado do que um médico que se ausenta com freqüência.
Nas capitais e nos grandes centros, apesar de o médico estar mais próximo do aparelho formador e da tecnologia de ponta, sua sobrevivência lhe impõe carga horária de trabalho excessiva, fazendo com que seu cansaço físico e sua indisponibilidade de tempo dificultem o acesso aos programas de educação continuada, aos congressos e aos cursos de aperfeiçoamento.
Romper essas barreiras significa mudar os paradigmas que retroalimentam nosso subdesenvolvimento. Esta tarefa constitui grande desafio para a medicina brasileira na atualidade.
CONCLUSÕES
À luz do que foi visto e comentado, acreditamos que sejam aplicáveis à nossa realidade as seguintes afirmações:
A certificação e a recertificação profissional no Brasil são medidas que se impõem, tendo em vista a não-homogeneidade das escolas médicas e a renovação contínua do conhecimento científico. A adoção dos mecanismos de certificação e recertificação é uma questão inerente à política de saúde com reflexos positivos imediatos na qualidade da assistência médica. Os custos sociais e financeiros decorrentes da implantação de programa nacional de certificação e de recertificação exigem reflexão e cautela, mas não devem invalidar sua adoção. É indispensável que os programas de certificação e de recertificação se esforcem também para avaliar, aprimorar e incentivar a formação ética e humanística do médico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- Conselho Federal de Medicina. http://www.cfm.org.br
2- Benson JA Jr. Certification and recertification: one approach to professional accountability. Ann Intern Med 1991;114(3):238-42.
3- Norcini JJ. Recertification in the United States. Br Med J 1999;319:1183-5.
4- Newble D, Paget N, McLaren, B. Revalidation in Australia and New Zealand: approach of Royal Australasian College of Physicians. Br Med J 1999;319:1185-8.
5- Swinkels JA. Reregistration of medical specialists in the Netherlands. Br Med J 1999;319:1191-2.
6- Southgate L, Pringle M. Revalidation: Revalidation in the United Kingdom: general principles based on experience in general practice. Br Med J 1999;319:1180-3.
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