ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Infecção abdominal por Cryptococcus sp em paciente com imunodeficiência adquirida em uso de profilaxia secundária com fluconazol
Cryptococcus sp abdominal infection in a patient with acquired immunodeficiency under secondary prophylaxis with fluconazole
Rosane Luiza Coutinho1; Monica Zarehdinne2; Arley Peixoto3; José Tardieu Junior3; Enio Roberto Pietra Pedroso4
1. Médica infectologista do Hospital Eduardo de Menezes, mestranda do CPGCS/Infectologia e Medicina Tropical da da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médica-residente em Infectologia do Hospital Eduardo de Menezes Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Acadêmicos do curso de Medicina da Faculdade de Saúde e Ecologia Humana. - FASEH. Vespasiano, MG - Brasil
4. Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Rosane Luiza Coutinho
Avenida Professor Alfredo Balena, 190, Santa Efigênia
Belo Horizonte, MG - Brasil CEP: 30130-100
Email: coutinho.ccih@gmail.com
Recebido em: 25/08/2010
Aprovado em: 16/03/2011
Instituição: Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo
Este trabalho relata a recidiva de infecção por Cryptococcus spp em paciente com imunodeficiência adquirida após três anos do primeiro episódio, quando a mesma já apresentava contagem de linfócitos T CD4+ elevada e uso regular de antirretrovirais.
Palavras-chave: Cryptococcus; Criptococose; HIV; Recidiva.
INTRODUÇÃO
O Cryptococcus spp é um fungo encapsulado responsável pela criptococose. Desde o início da epidemia pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), as infecções causadas pelo Cryptococcus spp, sobretudo por C. neoformans, são responsáveis por elevada morbidade e mortalidade dos pacientes diagnosticados com a síndrome da imunodeficiência humana (AIDS).1
CASO CLINICO
Paciente do sexo feminino, 31 anos, natural e residente em Belo Horizonte, ensino médio completo, desempregada, uniao estável. Em 2001, após separação do primeiro marido, portador de aids, a paciente realizou Elisa e Western Blot para o HIV, cujos resultados foram positivos. Vinha a acompanhamento irregular em centro de referência e não fazia uso de terapia antirretroviral (TARV). Em 2006, apresentou neurocriptococose, sendo definida aids. Foi tratada com anfotericina B deoxicolato por duas semanas, com dose acumulada de 750 mg, recebendo, em seguida, fluconazol 400 mg por dia, sem previsão de término da profilaxia. Recebeu alta hospitalar em agosto de 2006, em uso de lamivudina, tenofovir e efavirenz. Manteve acompanhamento clínico irregular no ambulatório, mas em uso regular de TARV. Desde novembro de 2008 desenvolveu cefaleia frontal, com generalização, acompanhada de náuseas. Negava febre. Notou, nos três meses seguintes, perda de três quilos (57 para 54 kg). A paciente apresentava contagem de linfócitos T CD4+ de 264 células/mm3 e carga viral indetectável. Nessa época, foi realizada tomografia de crânio e punção lombar. Foi solicitada revisão laboratorial prévia à punção lombar, entre outros exames complementares. Identificado TSH de 1,51 ng/mL e T4 livre inferior a 0,05 UI/mL. Iniciou-se tiamazol 10 mg/dia. A cefaleia desapareceu com a administração de tiamazol e controle da função tireoidiana. Em julho de 2009, diante da melhora da paciente, e pelo tempo de profilaxia, suspendeu-se o fluconazol. Em agosto de 2009, a paciente passou a apresentar lesão nodular em regiao lombar à esquerda, não dolorosa, sem febre ou outra manifestação geral. Foi realizada ultrassonografia (US) de pele e partes moles, evidenciando-se aumento de partes moles em regiao ilíaca, hipoecogênico e em topografia do músculo iliopsoas, à esquerda.
Tomografia (TC) de pelve mostrou: coleção líquida com realce periférico pelo contraste iodado endovenoso localizada em planos musculares na parede póstero-lateral esquerda da regiao pélvica e glútea, envolvendo o osso ilíaco, medindo cerca de 9,0 x 10,0 x 8,0 cm (L X T X AP), com volume estimado em 234 mL. Outra imagem com características semelhantes e menores dimensões era observada no músculo iliopsoas. Não foram evidenciadas alterações em trato geniturinário e gastrintestinal. O exame tomográfico sugeria a existência de hematoma ou abscesso em planos musculares superficiais da regiao pélvica e glútea e no músculo iliopsoas à esquerda.
Em outubro de 2009, a paciente tinha contagem de linfócitos TCD4+ de 461 células/mm3 e carga viral indetectável. Houve retorno da profilaxia com fluconazol 400 mg ao dia, três meses após a suspensão da profilaxia secundária. Diante da possibilidade de celulite de etiologia bacteriana, foi tratada com cefalosporina de segunda geração por duas semanas, sem alteração da lesão.
Foi entao internada na enfermaria do Hospital Eduardo de Menezes no início de fevereiro de 2010 e submetida à punção diagnóstica da lesão em regiao lombar. O exame do líquido identificou células leveduriformes sugestivas de Cryptococcus e teste de aglutinação pelo látex positivo para Cryptococcus. Não houve crescimento de microrganismo na cultura, o que impediu a identificação do Cryptococcus. Foi realizado tratamento com anfotericina B deoxicolato por 10 dias, com dose acumulada de 500 mg, seguida de fluconazol 800 mg ao dia por oito semanas. (Figuras 1 e 2).
DISCUSSÃO
O Cryptococcus spp é responsável por doença fúngica invasiva nos seres humanos, com distribuição mundial e elevada morbidade e mortalidade. O C. neoformans pode ser dividido em duas variedades e cinco sorotipos, sendo as variedades denominadas neoformans, sorotipos A, D e AD; gatti, sorotipos B e C. A variedade neoformans é a mais comum, inclusive no Brasil, associando-se à doença em imunossuprimidos.2 O microrganismo pode ser adquirido no ambiente, pelo contato com solo contaminado com excretas de aves, ou em associação com determinados tipos de Eucalyptus.3,4
O papel da imunidade mediada por anticorpos foi mais estudado para C.neoformans do que para qualquer outro microrganismo.3 Esse fungo apresenta, de forma pouco usual para microrganismos eucariotos e patogênicos, uma cápsula de polissacarídeo. O mesmo pode, ainda, se apresentar como um parasita intracelular facultativo.3,5 C. neoformans possui a patogenicidade de microrganismo encapsulado, associado à capacidade de sobreviver em células fagocitárias do hospedeiro.4
As infecções por C.neoformans são raramente encontradas em hospedeiros imunocompetentes. Estudos sorológicos sugerem que a maioria da população humana é infectada pelo microrganismo ainda na infância e é repetidamente reinfectada ao longo da vida. Em função da baixa incidência de criptococose em indivíduos imunocompetentes, admite-se que, embora a resposta imune não possa eliminar o agente do organismo humano, pode, contudo, prevenir o surgimento de doença. Portanto, a manifestação clínica de doença causada por Cryptococcus, sobretudo na idade adulta, pode ser resultado de reativação da doença por microrganismo latente ou por reinfecção, estabelecendo a criptococose como uma infecção crônica.1
No início da pandemia de aids, o tratamento de infecções no sistema nervoso central causadas por Cryptococcus spp (neurocriptococose) era acompanhada de altas taxas de recidiva em pacientes sem profilaxia com antifúngicos por longos períodos. Em 1991, Bozzette et al. demonstraram a eficácia do fluconazol na redução da recidiva de neurocriptococose.2, 3
Nos pacientes portadores do HIV, o tratamento e a profilaxia das infecções em sistema nervoso central pelo Cryptococcus spp estao bem estabelecidos.
A terapia primária deve ser feita com anfotericina deoxicolato, 0,7 a 1 mg/kg ao dia, preferencialmente associada à flucitosina, por período de pelo menos duas semanas, seguida de fluconazol 400 mg (ou 6 mg/kg) por dia, no mínimo oito semanas. A profilaxia é feita com fluconazol 200 mg ao dia e sua descontinuação pode ser considerada após a obtenção de contagem de linfócitos TCD 4+ superior a 100 células/µL e carga viral indetectável por mais de três meses, com mínimo de um ano de terapia profilática antifúngica.1 A paciente aqui estudada mantinha carga viral indetectável por período superior a três anos e sua contagem de linfócitos TCD 4+ não foi inferior a 100 células/µL em momento algum.1
São fatores de risco para recidiva de neurocriptococose em pacientes em TARV: contagem de linfócitos TCD4+ inferior a 100 células/µL; ter recebido TARV por menos de três meses nos seis primeiros meses após a infecção primária por Cryptococcus; antígeno sérico criptocóccico em títulos superiores a 1:512. Os estudos mais recentes demonstram risco de recidiva em pacientes que completaram a terapia primária com sucesso, estavam livres de sinais e sintomas de criptococose ativa, estavam em uso de TARV e com contagem de linfócitos TCD4+ superiores a 100 células/µL e carga viral indetectável por tempo prolongado.5,6 Dois estudos multicêntricos não mostraram vantagem na manutenção da profilaxia após seguimento por 26,1 meses (0% de incidência em 100 indivíduos/ano).2
A literatura consultada não relata caso semelhante ao descrito. Crum-Cianflone et al.8 referiram caso de um homem de 34 anos, com aids desde 1994, em uso regular de TARV e CD4+ superior a 300 células/µL, com meningite crônica de etiologia primariamente não identificada, tratado com 1.000 mg de fluconazol por dia, que evoluiu com formação de shunt ventrículo-peritoneal dois meses após a interrupção do antifúngico. Neste trabalho, descreve-se a presença de coleção líquida na pelve sem relação aparente com o sistema nervoso central.8
No caso presente, a recidiva da infecção por Cryptococcus pode ser explicada, mesmo que o sítio de infecção seja distinto daquele da infecção primária, pela resistência do microrganismo aos imidazólicos, como pela recidiva da infecção secundária à ausência de profilaxia, no curto período de tempo em que a paciente não fez uso do fluconazol.
O diagnóstico de Cryptococcus spp pode ser feito pela microscopia direta, por meio de cultura ou testes sorológicos.
O uso da tinta da China para microscopia direta permite o diagnóstico rápido de C. neoformans em vários materiais. Outro método utilizado é o teste de aglutinação pelo látex, que identifica antígenos de Cryptococcus spp.9 O teste de aglutinação pelo látex detecta antígenos da cápsula de polissacarídeos do Cryptococcus spp. De modo geral, a sensibilidade e especificidade dos testes disponíveis comercialmente são muito altas. Podem ocorrer falso-positivos, sobretudo quando há concomitância de artrite reumatóode, doenças oncológicas, infecção por Trichosporon spp, Stomatococcus mucilaginosis ou Capnocytophaga canimorsus (produzem polissacárides que fazem reação cruzada com os polissacárides do Cryptococcus spp) e contaminação durante pipetagem no laboratório.8,9 Desta forma, pela alta sensibilidade e especificidade do teste, acredita-se que a paciente, no caso aqui relatado, tenha apresentado infecção pelo Cryptococcus spp.
O cultivo do C. neoformans é considerado fácil. As colônias habitualmente se formam entre o primeiro e o quinto dia de incubação.9 No caso presente, não houve crescimento do microrganismo nas culturas realizadas, o que impossibilitou o diagnóstico de certeza, assim como a determinação de gênero e espécie e a realização de testes de susceptibilidade.
O teste de susceptibilidade não está rotineiramente indicado em casos de infecção pelo C. neoformans, devido à resistência primária desse agente aos antifúngicos de uso habitual e porque os valores de corte para susceptibilidade in vitro não estao completamente validados para imidazólicos e anfotericina B. Sabe-se que a resistência secundária ao uso de fluconazol é problema emergente em muitas regioes do mundo, sobretudo na Africa, onde o uso profilático de fluconazol é feito de modo irrestrito.
Após a difusão da TARV, manifestações atípicas de infecção por Cryptococcus devem ser sempre levadas em conta como hipóteses diagnósticas, uma vez que os medicamentos reconstituem ou mantêm a resposta imune celular nos pacientes infectados pelo HIV.
CONCLUSÃO
Em função dos efeitos tóxicos mínimos e pela boa penetração em sistema nervoso central, o fluconazol tem sido amplamente utilizado no tratamento e na profilaxia da neurocriptococose em pacientes com aids. Contudo, os azólicos são drogas fungistáticas e a exposição continuada a elas pode induzir resistência do fungo à droga. A heterorresistência do Cryptococcus ao fluconazol representa um mecanismo adaptativo intrínseco do fungo e a determinação do grau de heterorresistência pode constituir um auxílio no manejo de pacientes em uso continuado de fluconazol,11 tais como a paciente descrita neste relato.
REFERENCIAS
1. ShopJ. Protective Immunity against Cryptococcus neoformans infection. J Med. 2007;10(1):35-43.
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5. Mukherjee J, Zuckier LS, Scharff MD,; Casadevall A. Variable efficacy of passive antibody administration against diverse Cryptococcus neoformans strains. Infect Immun. 1995;63:3353-9.
6. Bicanic T. Symptomatic relapse of HIV-associated cryptococcal meningitis after initial fluconazole monotherapy: the role of fluconazole resistance and immune reconstitution. Clin Infect Dis. 2006;43:1069-73.
7. Aller AI, Martin-Mazuelos E, Lozano F, et al. Correlation of fluconazole MICs with clinical outcome in cryptococcal infection. Antimicrob Agents Chemother. 2000;44:1544-8.
8. Crum-Cianflone N, Truett A. Wallace MR. Cryptococcal meningitis manifesting as a large abdominal cyst in a HIV-infected patient with a CD4 count greater than 400 cells/mm. AIDS Patient Care. 2008;22(5):359-63.
9. Forbes BA, Sahm D, Weissfeld AS. Mycology In: Forbes BA, Sahm D, Weissfeld AS. Bayley and Scotfs diagnostic microbiology 12th ed. Missouri, USA: Elsevier; 2007. p. 696-704.
10. Doctor Fungus [site]. [Cited 2011 dez 12]. Available from: http://www.doctorfungus.org/mycoses/human/crypto/Crypto_index.htm
11. Sionov E, Chang H, Garrafo M, Kwon-Chungi KJ. Heteroresistance to fluconazole in Cryptococcus neoformans is intrinsic and associated with virulence. Antimicrob Agents Chemother. 2009;53:2804-15.
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