RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. 2 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140046

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Artigo Original

Variação sazonal e aspectos clínico-epidemiológicos da leptospirose humana na cidade de Itaperuna - RJ

Seasonal variation and clinical and epidemiological aspects of human leptospirosis in the city of Itaperuna - RJ

Amanda Alves Tavares de Souza; Fabiana Cardoso Ferreira; Hudson Dutra Rezende; Josevânia Fulgêncio de Lima Arruda; Paula Macêdo da Silva Eça

Acadêmico do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Iguaçu Campus - V. Itaperuna, RJ - Brasil

Endereço para correspondência

Amanda Alves Tavares de Souza
E-mail: amanda16tavares@hotmail.com

Recebido em: 09/04/2012
Aprovado em: 24/04/2014

Instituição: Universidade Iguaçu Campus - V. Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde Itaperuna, RJ- Brasil

Resumo

A leptospirose é uma doença bacteriana de distribuição global e apresentação múltipla, variando desde um processo inaparente até formas letais. O principal reservatório dessa antropozoonose, cujo microrganismo causador é a Leptospira sp., é o roedor, associado a condições precárias de saneamento básico. As enchentes e as chuvas fortes constituem, em nosso meio, grande fonte favorecedora do contato do homem com as águas contaminadas e tem relação direta com a maior incidência sazonal da doença, bem como forte ligação com a atividade profissional. Esse estudo de caráter qualiquantitativo foi realizado com base na análise de prontuários da Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde de Itaperuna-RJ, durante os meses de fevereiro e março de 2012, e incluiu dados dos três últimos anos. Não houve relação direta entre a incidência da doença e o período de enchentes; a taxa de letalidade encontrada mostrou-se superior aos dados literários e a profissão doméstica foi a mais acometida. Reforça-se, então, a importância de priorizar a prevenção primária no manejo da leptospirose como forma de evitar novos casos.

Palavras-chave: Infecções Bacterianas; Leptospirose; Leptospirose/epidemiologia; Espiroqueta.

 

INTRODUÇÃO

A leptospirose é uma antropozoonose multissistêmica emergente, infecciosa, causada por leptospiras patogênicas, caracterizando-se por amplo espectro de manifestações clínicas, variando desde infecção inaparente até doença fulminante e fatal e de distribuição mundial.1,2 As leptospiras são espiroquetas aeróbicas obrigatórias, divididas em duas espécies: L. interrogans e L. biflexa, sendo o primeiro detentor dos quatro sorovares responsáveis pela maioria dos casos de doença no homem.

Essa doença é, a princípio, infecção de animais silvestres e domésticos, principalmente ratos, cachorros, bovinos e suínos.3 A infecção humana pode ocorrer de forma direta, como por urina de animal infectado ou indireta com água ou solo contaminado. A penetração do microrganismo ocorre através da pele lesada ou da pele íntegra imersa por longos períodos em água contaminada, bem como através das mucosas (principalmente oral, nasal e conjuntival).4

A forma clássica da leptospirose chama a atenção não só pela acentuada toxemia impressa no doente, como também pela presença de icterícia rubínica (evidenciada entre o 3º e 7º dias), derivada de um misto de alterações vasculares e impregnação biliar tecidual. A doença é bifásica, sendo a primeira denominada septicêmica e evidenciada por febre alta, calafrios, cefaleia, mialgias (principalmente nas panturrilhas, dorso e abdome), anorexia, náuseas e vômitos. Diarreia e sufusão conjuntival podem estar presentes. Na segunda fase, também conhecida por fase imune, geralmente o doente apresenta a tríade: icterícia rubínica, insuficiência renal aguda e hemorragias, configurando a clássica síndrome de Weil.5 A circulação de imunocomplexos pode provocar ainda meningismo, colapso circulatório, entre outros distúrbios. A duração e as manifestações clínicas dessa fase são muito variáveis.6

O âmbito profissional é de grande relevância para a epidemiologia da doença. Algumas profissões apresentam risco crescente de contaminação, como demonstrado na Figura 1. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, sua ocorrência está relacionada a piores condições de vida urbana, em que a infecção humana ocorre mediante o contato com águas ou solos contaminados, principalmente durante períodos de chuvas e enchentes.7 Essa condição favorece a contaminação de outros grupos ao expor indivíduos de diversas classes sociais e profissionais. Não existe suscetibilidade em relação ao sexo quando ambos estão expostos às fontes de contágio, embora seja prevalente no sexo masculino.

 


Figura 1 - Relação entre as atividades profissionais associadas à leptospirose na cidade de Itaperuna.
Fonte: Secretaria de Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde 2009-2012 e Instituto de Infectologia Emílio Ribas (SAME 1980-1985).

 

Nos últimos anos, diversos surtos da doença foram relatados em todo o mundo, principalmente nas Américas, com médias de 100 casos ou mais por 100 mil habitantes.4 Apesar da falta de dados precisos, a OMS estima letalidade média de 10%.6 De acordo com o Ministério da Saúde, a principal faixa etária atingida é dos 15 aos 59 anos e a principal região acometida é o Sudeste (37,4%), seguido das regiões Sul (31,7%) e Nordeste (19.1%). Dos casos notificados, 86% são da zona urbana, enquanto somente 11% provêm de zona rural.2

O diagnóstico deve ser fundamentado nos aspectos clínico-laboratoriais e clínico-epidemiológicos, de modo que todos os casos suspeitos devem ser notificados à Vigilância Epidemiológica.7 A confirmação diagnóstica é feita pela pesquisa direta dos microrganismos no sangue ou urina (leptospiremia e leptospiúria), por testes sorológicos e pelo isolamento do microrganismo em animal inoculado, contudo, o método de PFGE é o padrão-ouro para o diagnóstico da leptospirose.8 O tratamento é baseado em antibioticoterapia, medidas de suporte e, quando necessário, internação em unidade de terapia intensiva e apoio ventilatório.

Este trabalho tem por objetivo traçar os perfis epidemiológicos dos casos de leptospirose na cidade de Itaperuna, determinando sua distribuição espacial e temporal, no intuito de disponibilizar uma base de dados ampla e atualizada que possa complementar projetos de controle que visam a impedir a perpetuação da doença.

 

PACIENTES E MÉTODOS

Este estudo, de análise de dados secundários, foi realizado na cidade de Itaperuna, pertencente à mesorregião do noroeste fluminense, no estado do Rio de Janeiro, Brasil. Os dados foram levantados com base na análise de um total de 70 prontuários obtidos na Central de Vigilância Epidemilógica da Secretaria de Saúde, referentes ao período de novembro de 2009 a fevereiro de 2012, sendo o período de coleta de fevereiro a março do mesmo ano. Os casos selecionados para o estudo são aqueles que apresentavam febre, cefaleia e mialgia. Para verificar as características dos casos de leptospirose no município, uma planilha foi elaborada constando as seguintes variáveis: sexo, idade, profissão, cidade, zona (urbana ou rural), critérios clínico-epidemiológicos, reação em cadeia da polimerase (PCR) e ELISA - usados para ratificar ou refutar o diagnóstico -, situações de risco ocorridas nos 30 dias que antecederam as primeiras manifestações, bem como suas datas de início e sua evolução.

 

RESULTADOS

A análise mostrou que, entre os 70 casos que se apresentaram com sintomatologia suspeita para leptospirose, o número de eventos confirmados foi de 24, o que equivale a 34,28% do total. Observou-se forte prevalência no sexo masculino em relação ao feminino, na proporção de 15:9. Em relação à idade, a mediana encontrada foi 38 anos e a média 40,8 anos, sendo a maior idade entre eles 66 anos e a menor 22 anos. Destes casos, apenas quatro eram de procedência da zona rural (16,6%). Considerando-se a profissão exercida, seis eram domésticas (25%), seguidos de operários de construção civil (16,6%), agricultores, comerciantes e estudantes, somando-se 8,3% dos casos confirmados; outras profissões: 33,5%.

 


Figura 2 - Distribuição da leptospirose por sexo.
Fonte: Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde de Itaperuna - RJ, 2009-2012.

 

A análise da situação de risco mostra os expostos a fenômenos naturais, água e lama de enchentes e locais com sinais de roedores como mais suscetíveis a infecção, estando presente respectivamente em 66,7 e 58%. Contato com roedores diretamente e terreno baldio esteve presente em 29% dos casos. Associação com caixas d'água foi encontrada em apenas um caso.

O cruzamento dos dados de sinais e sintomas mostrou febre, mialgia e cefaleia em todos os casos levantados. Prostração foi encontrada em 91,7% e dor na panturrilha em 87,5% dos pacientes. Vômitos estavam presentes em 66,7% e diarreia em 50%. Outras hemorragias, meningismo e alterações cardíacas foram positivos em apenas um caso cada (4,2%).

 


Figura 3 - Fatores de risco e leptospirose.
Fonte: Vigilância Epidemiológica da Secretaria da Saúde de Itaperuna - RJ, 2009-2012.

 

A maioria dos casos (87,5%) esteve distribuída entre os meses de novembro e abril, da seguinte maneira: sete no mês de novembro (29%), cinco no mês de dezembro (21%), quatro no mês de janeiro, assim como no mês de abril (16,6%), e apenas um caso no mês de fevereiro. Durante os outros meses do ano, apenas três casos (12,5%) foram notificados, um no mês de maio e dois casos no mês de agosto.

A evolução da doença mostrou-se favorável na maioria dos casos, obtendo-se a cura em 87,5% dos pacientes. Entre os que apresentaram evolução fatal (12,5%), a principal causa mortis identificada foi hemorragia pulmonar maciça.

 

DISCUSSÃO

O perfil epidemiológico da população afetada no Brasil consiste de adultos jovens, do sexo masculino, residentes em áreas urbanas e contaminados a partir de exposição ocupacional.9 De acordo com os dados colhidos, a incidência de leptospirose na população masculina mostrou forte prevalência, na proporção de 15:9, condizendo com os dados literários. Os achados ratificam a base teórica no tocante à predominância da doença em zonas urbanas e de baixo desenvolvimento socioeconômico em relação às demais, reafirmando a importância dessa antropozoonose como problema de saúde pública suscetível de prevenção e controle.

 


Figura 4 - Sinais e sintomas na admissão de acordo com o número de pacientes que os apresentaram.
Fonte: Vigilância Epidemiológica da Secretaria de Saúde de Itaperuna - RJ.

 

Em relação à idade, os adultos jovens constituíram o grupo mais acometido, sendo observada, porém, ampla variação da faixa etária, dos 22 aos 66 anos, de acordo com a literatura. No âmbito profissional, os dados encontrados revelaram como principais atividades de risco, em ordem decrescente: domésticas, operários da construção civil, seguidos de agricultores, comerciantes e estudantes.

Sobre os aspectos profissionais, operários de construção civil são classicamente os mais acometidos, em contraste com este estudo, que identificou as domésticas como principais afetadas (25% do total). Esse fato reflete a estreita relação entre exposição e contaminação dessa classe, devido ao maior contato com resíduos contaminados e a frequente realização de tarefas domésticas de forma desprotegida. Por outro lado, operários da construção civil ocupam o segundo lugar e agricultores, comerciantes e estudantes foram menos acometidos.

Outro importante aspecto que não deve ser negligenciado, dada sua importância epidemiológica, é a exposição aos principais fatores de risco. Em Itaperuna, o principal fator de risco associado foi o contato com água e lama de enchentes, reafirmando conceitos literários.

Os sinais e sintomas na admissão mostraram inespecificidade semelhante ao reportado por estudos anteriores e reiteram a protelação do correto diagnóstico dessa doença. As principais queixas apresentados ao serviço de saúde pelos pacientes foram febre, mialgia e cefaleia; essa tríade sindrômica esteve presente em todos aqueles posteriormente confirmados por método sorológico para a infecção em questão.

Em concordância com relatos mundiais, a evolução para cura foi a mais comum; a despeito do que se refere à taxa de óbito, aquela encontrada em nosso estudo foi maior 2,5%. A principal causa de óbito, como esperado, foi hemorragia pulmonar.

O município de Itaperuna, estado do Rio de Janeiro, possui uma característica marcante de regime pluvial sazonal. Anualmente, nos meses de dezembro a janeiro fortes chuvas assolam a região, culminando na cheia do rio Muriaé, que corta a cidade, facilitando a ocorrência de enchentes, embora o maior número de casos tenha sido encontrado em novembro.

De acordo com os dados colhidos, a frequência da leptospirose na cidade de Itaperuna tem nítida variação de acordo com o índice pluviométrico. Os dados epidemiológicos, em conjunto com os dados clínicos e laboratoriais, mostraram-se consistentes com os critérios de probabilidade para o diagnóstico de leptospirose e corroboram observações prévias.

 

CONCLUSÃO

De acordo com o exposto, pode-se adquirir o perfil dos habitantes mais suscetíveis à infecção pelo Leptospira sp e adequar a estratégia de saúde para prevenir o surgimento da doença, como também presumir o seu diagnóstico de maneira mais rápida e intervenções mais precoces utilizando-se esses resultados. Deve-se priorizar a importância da prevenção primária no manejo da leptospirose como forma de prevenir novos casos. Podem-se citar como medidas eficazes: coleta, acondicionamento e destino adequado do lixo; manutenção de terrenos baldios; limpeza e desinfecção adequada dos reservatórios de água; construção e manutenção permanente das galerias de águas pluviais, esgotos em áreas urbanas além da redução do risco de exposição à lama de enchentes.9

Diante desses achados, reafirma-se a importância dessa antropozoonose passível de prevenção e que atinge a comunidade menos favorecida socioeconomicamente.

 

REFERÊNCIAS

1. Levett PN. Leptospirosis. Clin Microbiol Rev. 2001;14:296-326.

2. Damasco PV, Ávila CAL, Barbosa AT, Ribeiro CMM, Pereira GMB, Lemos ERS, et al. Atypical lymphocytosis in leptospirosis: a cohort of hospitalized cases between 1996 and 2009 in State of Rio de Janeiro, Brazil. Rev Soc Bras Med Trop. 2011 Out; 44(5):611-5.

3. Freitas JC, Silva FG, Oliveira RC, Delbem ACB, Müller EE, Alves LA, et al. Isolation of Leptospira spp from dogs, bovine and swine naturally infected. Rev Cienc Rural. 2004 Out; 34(3):853-6.

4. Soares TSM, Latorre MRDO, Laporta GZ, Buzzar MR. Análise espacial e sazonal da leptospirose no município de São Paulo, SP, 1998 a 2006. Rev Saúde Pública. 2010 abr; 44(2):283-91.

5. Souza VMM, Arsky MLNS, Castro APB, Araujo WN. Anos potenciais de vida perdidos e custos hospitalares da leptospirose no Brasil. Rev Saúde Pública. 2011 dez; 45(6):1001-8.

6. Instituição Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: Instituição Oswaldo Cruz; 1999 Jan 1 [Atualizada em 2012 set 8; Citado em 2012 ago. 23]. Disponível em: "http://www.fiocruz.br/ioc/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home".

7. Brasil. Ministério da Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso. 8ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. 135 p.

8. Machry L, Ribeiro RL, Vital-Brazil JM, Balassiano IT, Oliveira ICM, Avelar KES, et al. Caracterização de cepas de referência de Leptospira sp utilizando a técnica de pulsed field gel electrophoresis. Rev Soc Bras Med Trop. 2010 abr; 43(2):166-9.

9. Gonçalves DD, Teles PS, Reis CR, Lopes FM, Freire RL, Navarro IT, et al. Seroepidemiology and occupational and environmental variables for leptospirosis, brucellosis and toxoplasmosis in slaughterhouse workers in the Paraná State, Brazil. Rev Inst Med Trop. 2006;48(3):135-40.