RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. 2 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140051

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Artigo Original

Dimensões Contextuais do Trabalho: a Visão de Diretores Executivos de uma Unimed de Minas Gerais*

Contextual dimensions of work: the vision of executive directors from the unimed in Minas Gerais*

Fátima Ferreira Roquete1; Maria José Menezes Brito2

1. Enfermeira. Professora Adjunta. Departamento de Enfermagem Aplicada, Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Enfermeira. Professora Associada. Departamento de Enfermagem Aplicada, Escola de Enfermagem da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Fátima Ferreira Roquete
E-mail: fatimaroquete@gmail.com

Recebido em: 24/11/2012
Aprovado em: 27/02/2014

Instituição: Escola de Enfermagem - UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O presente artigo teve como objetivo analisar o macroambiente (saúde suplementar), o ambiente de trabalho (UNIMED-Beta) e contexto do trabalho (cooperado gestor) na perspectiva de diretores executivos de uma Unimed de Minas Gerais. Trata-se de pesquisa com abordagem qualitativa, de caráter descritivo, tendo sido realizado estudo de caso. Os sujeitos foram quatro médicos diretores executivos da organização. Os dados foram coletados por meio de entrevista com roteiro semiestruturado, em 2011, e analisados pela técnica de análise de conteúdo. Na visão dos entrevistados, o macroambiente, o ambiente e o contexto do trabalho são dimensões do espaço de atuação do diretor executivo que apresentam significativos desafios, entre eles destaca-se a dupla função ocupada na cooperativa de trabalho médico, isto é, como diretor executivo (dono) e como médico (prestador de serviços na assistência).

Palavras-chave: Gestão em Saúde; Recursos Humanos em Saúde; Saúde Suplementar; Planos de Pré-Pagamento em Saúde; Setor Privado.

 

INTRODUÇÃO

As cooperativas UNIMED integram um conjunto de operadoras de saúde brasileiras as quais, juntamente com a medicina de grupo, as seguradoras especializadas em saúde, a autogestão e a filantropia, prestam assistência a 46.634.765 milhões de brasileiros1, o que corresponde a um quarto da população do país vinculada ao segmento de saúde suplementar.

O cooperativismo médico é uma modalidade que se destaca nesse macrocontexto, pois, por meio de 335 cooperativas, ou seja, 29,61% do total de operadoras de saúde1, atende ao contingente de 16.981.220 beneficiários. O conjunto de cooperativas UNIMED é responsável por 36,40% da população assistida pelo segmento de assistência suplementar no país.1,2

As cooperativas médicas surgiram no Brasil, em 1967, com a criação da União dos Médicos de Santos - UNIMED-Santos como forma de oposição à medicina de grupo. O sistema cooperativo Unimed cresceu e em 2011 já se configurava como a maior rede de assistência médica do país. As UNIMEDs estão presentes em mais de 83% do território nacional, o que reflete sua capilaridade e, principalmente, capacidade de gerar trabalho e renda para mais de 108 mil médicos cooperados.3 Além de variáveis como a força da marca UNIMED, utilizada por todo o sistema, a intercooperação foi determinante para viabilizar o atendimento aos beneficiários dessa modalidade de operadora de saúde, bem como para impulsionar a expansão do cooperativismo médico.4

A gestão das cooperativas tem sido realizada pelos próprios médicos cooperados, o que tem se configurado como um importante desafio relacionado a diversos fatores. A esse respeito merecem destaque as transformações do ambiente global e da realidade nacional, questões relativas à formação médica, ao mercado de trabalho, à regulamentação do segmento de saúde suplementar ocorrida em 1998, ao aumento da competitividade no setor privado de saúde e, finalmente, às especificidades da gestão cooperativista. Todos os fatores associados criaram um cenário complexo de atuação para aqueles que assumiram as diretorias executivas das UNIMEDS.4,5

Sendo a gestão de sociedades cooperativas uma atividade complexa, dadas suas especificidades, a gestão de cooperativas médicas UNIMED do segmento de saúde suplementar no Brasil agregou variáveis que tornaram o trabalho dos diretores ainda mais desafiador. Nessa perspectiva, torna-se imprescindível conhecer essas variáveis, bem como sua influência no trabalho desses gestores. De acordo com Cheetham e Chivers6, o ambiente do trabalho refere-se às condições físicas, culturais e sociais que cercam o indivíduo no trabalho. Tendo em vista a especificidade e a complexidade do trabalho em uma cooperativa médica do segmento de saúde suplementar, neste estudo o ambiente do trabalho foi considerado em duas dimensões: a dimensão do macroambiente, que trata da saúde suplementar, e a dimensão do ambiente de trabalho, que contempla a UNIMED, cenário do estudo. A dimensão do contexto do trabalho refere-se "à situação particular requerida para um profissional atuar"6:273 e, no caso, o cargo de cooperado diretor executivo.

Tendo em vista as considerações apresentadas, o presente estudo teve como objetivo analisar o macroambiente (saúde suplementar), o ambiente de trabalho (UNIMED-Beta) e o contexto do trabalho (cooperado gestor) na perspectiva de diretores executivos de uma UNIMED de Minas Gerais.

 

PERCURSO METODOLÓGICO

A natureza do problema e os detalhes do fenômeno analisado conduziram à escolha da abordagem qualitativa.7 Optou-se pela realização de um estudo de caso de natureza descritiva, pois este tem como propósito descrever em profundidade as características de determinado fenômeno.8

O cenário do estudo foi uma cooperativa de trabalho médico UNIMED situada em Minas Gerais, a qual, para fins deste estudo, foi denominada UNIMED-Beta. Os sujeitos da pesquisa foram quatro médicos diretores executivos da UNIMED-Beta.

A pesquisa foi estruturada com base no levantamento de dados primários e secundários. A coleta aconteceu em 2011, utilizando-se como instrumento a entrevista com roteiro semiestruturado. As entrevistas foram gravadas com o intuito de garantir a fidedignidade dos dados, favorecer a interação entre o pesquisador e o entrevistado, assim como a incorporação do âmbito de sua produção.9 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG e os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), atendendo à Resolução 196/96.10 Os dados foram transcritos na íntegra e analisados por meio da análise de conteúdo11, que abrange as iniciativas de explicitação, sistematização e expressão do conteúdo de mensagens.

A pesquisa documental foi realizada com base em fontes internas (relatórios, estatuto social, regimento, organograma) e fontes externas (jornais, revistas, informativos), possibilitando o resgate de informações relevantes sobre o histórico da organização e suas transformações.

 

RESULTADOS

A cooperativa UNIMED-Beta ocupa lugar de destaque em Minas Gerais no que concerne ao porte por número de beneficiários. Foi criada na década de 1980 e tem superado desafios do macrocontexto da saúde suplementar tais como a competitividade do segmento e as demandas da ANS, adaptando-se, sobrevivendo e crescendo. Na avaliação de 2010 da ANS12 alcançou o Índice de Desempenho da Saúde Suplementar (IDSS) geral de 0,40 e 0,59, o que significa um resultado mediano nas perspectivas avaliadas: atenção à saúde, econômico-financeira, estrutura e operação e satisfação do beneficiário.

Para alcançar tais resultados, a UNIMED-Beta contou com quatro médicos cooperados nos cargos de direção, sendo que três deles ocupam funções na gestão da cooperativa há 12 anos ou mais. Conforme consta no Estatuto Social da UNIMED-Beta, compete aos diretores executivos, nos limites da lei, das deliberações da Assembleia Geral e do Conselho de Administração, bem como do próprio estatuto, gerenciar, executar, controlar e normatizar. Tal trabalho, desdobrado nos cargos de diretor presidente, diretor superintendente, diretor médico-social e diretor de mercado e relações associativistas, contempla atividades além daquelas específicas da formação de base do médico, o que se configura como importante desafio para os mesmos.

Na visão dos diretores executivos, o trabalho realizado na direção da UNIMED-Beta apresenta particularidades. No tocante à dimensão macroambiental, foi expressa a questão do distanciamento entre organizações privadas que prestam assistência no segmento e o planejamento global das ações de saúde do Brasil. Os diretores entendem que as regras, a legislação e a contabilidade, entre outros fatores do macroambiente, acarretam dificuldades para a gestão da UNIMED-Beta.

Hoje as empresas, as instituições de saúde estão isoladas do contexto político, da programação governamental adequada, ou melhor, da função de cada uma. Acho que está mais ou menos cada um por si. Eu acho que as regras, as leis, a contabilidade, a legislação, a receita, as regras do país, elas estão, muitas delas, exageradas e confusas. Não tem uma pessoa que tem um domínio disso. (ENTREVISTADO 4)

O depoimento do Entrevistado 4 expressa, ainda, a necessidade de domínio das regras, leis e contabilidade, demandando conhecimentos que extrapolam os conteúdos curriculares e que, na prática, são exigidos dos gestores das cooperativas de trabalho médico operadoras de saúde. Tal relato indica o fato de o exercício da direção executiva demandar a mobilização de competências e habilidades referentes ao conhecimento contextual, isto é, "o conhecimento de fundo geral que é específico para um setor da indústria, organização etc."6,13,14

No tocante ao ambiente de trabalho dos diretores executivos, ou seja, às condições físicas, culturais e sociais da UNIMED-Beta, aspectos relacionados a três momentos evolutivos foram destacados: a fundação; o crescimento significativo após a criação e comercialização do plano coparticipativo na década de 1990, com aumento e diversificação do número de beneficiários e expansão do contingente de cooperados; e as transformações ocorridas pós-regulamentação, mais especificamente de 1998 até 2011.

De acordo com os diretores, o cooperativismo era pouco conhecido quando a UNIMED-Beta foi criada. Porém, notícias veiculadas sobre outras cooperativas médicas fundadas no estado de São Paulo sinalizavam ser essa uma alternativa de enfrentamento da realidade que se configurava, criando-se melhores possibilidades de trabalho para o médico e evitando-se domínio do mercado de trabalho pelas seguradoras e demais convênios médicos.

Na época a gente tinha notícias de várias UNIMEDS funcionando em São Paulo, em Santos, em outras cidades de São Paulo. O sistema estava crescendo e achamos por bem também fazer o mesmo e tentar montar uma coisa que seria nossa, uma cooperativa que seria de médicos, evitando inclusive a influência, o domínio do campo médico pelas seguradoras médicas. A gente conhecia pouco de UNIMED. A UNIMED que tinha por aqui era só a UNIMED de Belo Horizonte e a gente tinha pouca noção do que era UNIMED, o que era cooperativismo médico, mas as UNIMEDs estavam brotando nas maiores cidades, então optamos por aceitar a fundação e ver o que iria acontecer. (ENTREVISTADO 2)

A gente viu nascer o cooperativismo médico como uma alternativa aos outros planos de saúde, outros convênios. (ENTREVISTADO 1)

Uma das dificuldades identificadas na gestão da cooperativa médica está relacionada ao modelo assistencial do país. Por parte do médico, a total autonomia para decidir sobre a utilização de recursos, vinculada à remuneração por procedimento - fee for service - e por parte do usuário o livre acesso ao serviço de saúde das operadoras, criou ambiente propício para se confundir necessidade e interesse. A falta de "protocolos" que organizem a utilização dos recursos diagnósticos e terapêuticos disponíveis e, portanto, limitem a utilização indevida foi citada como falha do modelo assistencial vigente.

Hoje nós temos muito a trabalhar essa questão de necessidade e interesse. Às vezes o usuário, o médico quer fazer muita coisa pelos seus interesses não pela ciência, pelas necessidades. Um dia nós vamos ter que protocolar isso, encaminhar, mudar um pouquinho o modelo. Nosso modelo hoje também é um modelo falho. Nosso modelo hoje é muito assistencial, o médico tem muita autonomia, faz o que quer, nem todos, pois a maioria é coerente; e o usuário também faz o que quer. Nosso modelo hoje está assim, quando mais faz mais se recebe; eu faço o que quero. Nosso modelo vai ter que passar também por um protocolo científico [...] modelar nesse sentido. (ENTREVISTADO 4)

A direção da UNIMED-Beta encontrou como alternativa para "promover uma utilização responsável"15:125 dos recursos diagnósticos e terapêuticos por parte dos beneficiários a criação de um plano coparticipativo. Os objetivos almejados e resultados alcançados pela cooperativa com o lançamento desse tipo de plano de saúde podem ser constatados no relato a seguir.

O pessoal gostou, as empresas gostaram, porque esse plano, o interessante dele é que ele regula os gastos do próprio usuário. A pessoa quando vai fazer uma consulta, vai fazer um exame, ele pensa um pouco mais porque ele vai participar da despesa, ele não ganha tudo de mão beijada, entendeu? Quer dizer ele não é um plano pré-pago; é um plano meio pós-pago. Então ele participa naquilo que é dele, então ele pensa duas vezes. (ENTREVISTADO 2)

O macroambiente da saúde suplementar impõe relações da direção executiva da cooperativa com o Poder Judiciário e órgãos de defesa do consumidor. São contatos decorrentes de conflitos da cooperativa com beneficiários, particularmente após a regulamentação do segmento. Tais conflitos advêm, dentre outros aspectos, de questões relacionadas com contratos de planos de saúde assinados antes da Lei 9.656/98, que não cobrem todos os procedimentos dos contratos regulamentados, mas que são exigidos pelo usuário na justiça e, muitas vezes, autorizados pelos juízes via liminar.

Os usuários foram se adaptando ao novo plano [regulamentado], obedecendo à norma, e isso diminuiu as possibilidades de atrito, que ainda persistem até hoje. A gente tem procurado fazer tudo da melhor maneira possível para evitar problemas, por causa de questões judiciais. Hoje mesmo você tendo contrato, falando que você [UNIMED-Beta] tem o direito, os juízes não estão entendendo desta forma. Então não adianta. A gente tem tido esses embates aí, está perdendo, perde na justiça. Vem liminar você tem que dar, vamos dizer assim, aquilo que não está contemplado no contrato, porque aqueles planos que não foram adaptados continuam valendo. (ENTREVISTADO 1)

As dificuldades são de toda ordem. Então os planos de saúde hoje, você tem também exigência do usuário, o Judiciário não está entendendo muito, não entende muito. O Judiciário tem hora que ele arbitra um tratamento. Eu penso assim, você vai efetuar o tratamento, se esse tratamento é incoerente cientificamente, se o usuário vier a ser prejudicado com isso, ele [Judiciário] vai assumir? (ENTREVISTADO 4)

Além de questões macroambientais e do ambiente de trabalho, também foram mencionados pelos entrevistados aspectos que remetem ao cenário do trabalho, ou seja, ao cooperado gestor. Na visão de diretores da UNIMED-Beta, ser médico cooperado é resultado de uma demanda dos médicos em decorrência da expansão do número de empresas no segmento suplementar de saúde. Trata-se de um tipo de organização na qual o médico é o "dono" e, portanto, dirige, decide e transforma, o que é entendido como uma tranquilidade, pois a cooperativa UNIMED possibilita a defesa e a luta pela profissão.

As UNIMEDS cresceram e estamos aqui. Ser médico cooperado hoje é quase uma necessidade por causa do sistema em funcionamento no país inteiro, através de vários planos de saúde, muitas seguradoras de saúde, várias empresas de plano de saúde. Então a cooperativa foi uma necessidade. É uma empresa, mas é uma empresa nossa, a gente é dono, a gente é que dirige, a gente que resolve, a gente que muda; então, a gente que trabalha nela, acho que é uma tranquilidade que temos para nos defender e lutar pela profissão. (ENTREVISTADO 2)

Ser médico cooperado é visto também como algo moderno, difundido nos países de primeiro mundo. Entende-se como uma combinação muito melhor entre cooperação e profissionalismo, pois todos trabalham e o resultado é proporcional à produtividade. Na visão da direção, os médicos cooperados sentem-se satisfeitos com a UNIMED-Beta.

Médico cooperado é coisa hoje moderna. Se nós pudéssemos todo mundo ser cooperado, na Europa e nos países de primeiro mundo a cooperação é muito maior que no Brasil. A ideia de cooperação e profissionalismo é muito melhor. Na Alemanha, nós temos 70%, parece-me, da população são cooperados. Isso eu estou falando dados mais ou menos; no Brasil é 5% da população. Então a cooperação se todo mundo trabalha e divide-se, faz-se um rateio entre os médicos, quem trabalha muito ganha muito e quem trabalha pouco ganha pouco. É uma coisa muito boa que tende a ser mais homogênea. E os médicos estão satisfeitos com a UNIMED aqui. (ENTREVISTADO 3)

Segundo depoimentos, ser diretor da UNIMED é ter espírito participativo e cooperativista, bem como compreender a cooperativa como uma possibilidade de trabalho diferente da oferecida por outros planos de saúde ou convênios.

Eu tenho esse espírito mais participativo, mais cooperativista. Então eu acho que embora eu tenha uma visão diferente dos outros colegas que a gente convive, nessa trajetória médica e assistencial da gente trabalhando, a gente viu nascer o cooperativismo médico como uma alternativa aos outros planos de saúde, aos convênios. (ENTREVISTADO 1)

 

DISCUSSÃO

De acordo com o Estatuto Social da UNIMED-Beta, os cooperados se organizam na seguinte estrutura: Assembleia Geral, Conselho de Administração, Conselho Técnico e Ético e Conselho Fiscal. A competência da diretoria executiva, nos limites da lei, do Estatuto Social e das deliberações da Assembleia Geral e do Conselho de Administração é de gerenciamento, de execução, de controle e normativa. Essas atribuições denotam que a UNIMED-Beta optou pela estratégia de gestão por meio de um Conselho de Administração constituído pela diretoria executiva e por membros vogais. Tal definição revela que a função de gestão estratégica da organização está sob a responsabilidade dos cooperados da diretoria executiva.16

Segundo os entrevistados, na trajetória UNIMED-Beta, desafios e dificuldades foram enfrentados e superados, sobressaindo-se: o inicial desconhecimento do cooperativismo e a necessidade de aprendizado sobre esse tipo de sociedade; a criação do plano coparticipativo, na década de 1990, produto que viabilizou o crescimento da cooperativa e a geração de trabalho para os médicos; e a comercialização desse produto antes da regulamentação, ocorrida em 1998, favorecendo a redução de conflitos com o usuário e o Judiciário, pelo fato de ter sido bem aceito pelas empresas e por inibir a utilização e, portanto, reduzir custos.

Nessa perspectiva, o distanciamento entre organizações privadas que prestam assistência, via segmento suplementar, e o planejamento global das ações de saúde do Brasil mencionado pelos diretores pode ser analisado na ótica de Albuquerque et al.17. Segundo os autores, "o mercado de planos privados de saúde no Brasil é ainda pouco conhecido e considerado no planejamento do sistema de saúde no país"17:1429 A participação das organizações, bem como dos beneficiários nas discussões de temas de interesse daqueles que são diretamente envolvidos, está em construção, tendo em vista o fato de a ação do Estado sobre o segmento se dar por meio de uma agência reguladora, o que, de acordo com Sato18, pressupõe independência.

Ao abordar a inexistência de uma única pessoa que domine a legislação, bem como os demais fatores relacionados à gestão da operadora de saúde, e entendendo que esses fatores decorrem de ações do Estado, por meio da ANS, foram citadas dificuldades que dizem respeito à função de direção da UNIMED-Beta. Dirigir organizações do segmento de saúde suplementar, pós-regulamentação, tem sido um desafio, tendo em vista a necessidade de qualificação dos gestores para adequar os procedimentos da operadora às modificações exigidas pela legislação.19,20

O histórico padrão de remuneração dos profissionais de saúde, em particular do médico, é um desafio para o sistema de saúde do Brasil. Diz respeito à forma de contratação e remuneração de serviços médicos, especificamente à prática comum de recebimento de honorários por serviços prestados (fee-for-service), herdada do sistema previdenciário.21 Esta poderia, pelo menos teoricamente, fazer aumentar os ganhos dos médicos na proporção do volume de atendimentos prestados, induzindo à utilização indevida dos serviços e comprometendo os resultados econômicos da organização. Postula-se que "na ausência de restrições ético-morais e de regulações gerenciais externas, os médicos tenderiam a produzir mais serviços que os necessários".22:55

Ao mencionar que "o médico tem muita autonomia, faz o que quer", um dos entrevistados aborda um tipo de comportamento do cooperado que, além de outros aspectos de ordem ética, colocaria em risco a estabilidade econômica da cooperativa. Tal conflito gerado pela necessidade de controles das atividades dos colegas de profissão é um espaço para mobilização de competências de natureza política, oriundo desse ambiente de trabalho.

No tocante ao beneficiário "fazer o que quer", diz respeito ao uso dos serviços de forma não controlada externamente, prática existente mesmo antes da regulamentação do setor. Os planos de saúde denominados pré-pagamento, com cobertura sem limites, autorizavam serviços demandados pelo cliente, sem restrições dentro do contratado. Tal procedimento favorece a prática desse uso conforme as preferências daqueles que buscam o serviço.

Os conceitos de necessidade e de demanda foram definidos em estudo clássico de Jeffers et al.23. Necessidade refere-se à quantidade de serviços e recursos que os médicos entendem que um indivíduo deva utilizar para manter sua saúde, considerando-se o conhecimento disponível no campo científico; demanda, por sua vez, diz respeito à liberdade de escolha do indivíduo, em função de suas preferências. Havendo lacuna entre necessidade e demanda, mecanismos poderiam ser criados para reduzi-la.23 A UNIMED-Beta, em 1994, decidiu pela implantação do copagamento como um dos mecanismos para controle da demanda por serviços de saúde.

No copagamento, o beneficiário fica responsável pelo pagamento de parte do custo total do prestador, ou seja, ocorre um compartilhamento do risco. [...] Isso já é bastante comum em países onde o setor supletivo opera há algum tempo, com a adição de fatores de moderação aos contratos de planos de saúde.18:59-60

A criação do plano coparticipativo pela UNIMED-Beta foi uma resposta estratégica da direção dessa cooperativa de trabalho médico.3 A iniciativa antecipou a solução para um problema futuro, que se tornaria evidente após controles advindos com as regras da ANS, a partir de 2000. Trata-se da criação da realidade futura de uma organização, na perspectiva de Drucker24.

Uma das dificuldades enfrentadas pela direção da cooperativa na relação com os beneficiários tem sido as demandas por parte dos portadores de planos de saúde não regulamentados. A coexistência de contratos com direitos diferenciados "pode ser citada como a maior fonte de conflitos do processo regulatório: a convivência de dois 'mundos', com regras contratuais bastante distintas e possibilidades regulatórias também distintas", é uma situação que provoca "enfrentamento cotidiano entre operadoras, Judiciário e órgão de defesa do consumidor"25:1468.

A cooperativa foi vista pelos diretores como uma alternativa de trabalho para o médico, preconizada desde a criação do Sistema Unimed no Brasil. 26 Entretanto, há a necessidade de se "promover a educação cooperativista, ou seja, o entendimento real da cooperação é fundamental para o devido reconhecimento e desenvolvimento sustentado do sistema" 27:216.

Os diretores executivos mesclam as atividades na função de direção da UNIMED-Beta com aquelas concernentes à assistência aos beneficiários. Essa dupla função contempla espaços de atuação que diferem no que diz respeito aos aspectos socioculturais. Como prestadores de serviço da cooperativa, há tendência a se pautarem nos interesses individuais, isto é, na produtividade e na remuneração; como diretores executivos, portanto, responsáveis pelos resultados da UNIMED-Beta, a tendência seria visar ao benefício do conjunto de associados, favorecendo a manifestação de interesses que são coletivos, ou seja, as sobras e os investimentos no próprio negócio.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho foram apresentados aspectos da visão dos diretores executivos da UNIMED-Beta sobre três dimensões do espaço profissional no qual atuam, isto é, o macroambiente (saúde suplementar), o ambiente de trabalho (UNIMED-Beta) e o cenário do trabalho (cooperado gestor).

A UNIMED-Beta conta com quatro médicos cooperados em funções de direção executiva, três deles praticamente desde sua fundação, portanto, atuando em função de gestão há mais de 12 anos. Na qualidade de cooperativa médica do segmento de saúde suplementar atingiu, em 2011, a posição de uma das primeiras em números de beneficiários em Minas Gerais, com mais de 120 mil, gerando trabalho e renda para mais de 500 médicos cooperados.

Na visão dos diretores entrevistados, o macroambiente (saúde suplementar) apresenta situações desafiadoras para o médico gestor, como, por exemplo, o distanciamento das operadoras do planejamento global de saúde, as históricas práticas de remuneração por serviços prestados (fee for service) e a ampla liberdade de escolha do usuário pelos serviços, entre outras, demandando reposicionamento da organização e, portanto, capacidade de gestão para enfrentá-las.

Quanto ao panorama do trabalho (cooperado gestor), a participação e a cooperação foram citadas pelos entrevistados como comportamentos importantes para o exercício do cargo. Eles entendem o cooperativismo médico como uma combinação muito melhor entre cooperação e profissionalismo, pois todos trabalham e o resultado é proporcional à produtividade, o que tem sido motivo de satisfação do médico com a UNIMED-Beta.

Na visão dos médicos que ocupam a função de diretores executivos de uma UNIMED de Minas Gerais, o macroambiente, o ambiente e o contexto do trabalho são dimensões do espaço de atuação profissional que apresentam significativos desafios. Entre esses, identifica-se a dupla função ocupada na cooperativa de trabalho médico, isto é, o trabalho como diretor executivo - dono - e as atividades como médico, prestador de serviços na assistência.

O macroambiente, o ambiente e o âmbito do trabalho são dimensões do espaço de atuação profissional do médico que contribuem como variáveis relevantes no processo de configuração da identidade e mobilização de competências profissionais.

 

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*Artigo inédito, resultado parcial de pesquisa de doutorado.