ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Vírus da imunodeficiência humana adquirida/HIV no período neonatal
Acquired human immunodeficiency virus/ HIV in the neonatal period
Fabiana Maria Kakehasi1; Flávia Gomes Faleiro Ferreira1; Jorge Andrade Pinto2; Silvia de Andrade Carneiro3
1. Médica Pediatra. Doutora em Ciências da Saúde. Membro do Grupo de AIDS Materno-Infantil do Hospital das Clínicas-HC da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico Pediatra. Doutor em Ciências da Saúde. Membro do Grupo de AIDS Materno-Infantil do HC/UFMG. Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médica Pediatra da CTR Orestes Diniz. Prefeitura de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil
Jorge A Pinto
E-mail: jpinto@medicina.ufmg.br; jorgeandradepinto@gmail.com
Recebido em: 13/05/2013
Aprovado em: 24/04/2014
Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
O bloqueio da transmissão vertical foi uma das maiores vitórias contra a infecção pelo HIV. Houve redução das taxas de infecção a níveis inferiores a 2% com a aplicação de estratégias como reconhecimento da infecção materna (testagem sorológica anti-HIV ou teste rápido) durante o pré-natal ou no momento do parto, uso de antirretrovirais, via de parto eletiva de acordo com a carga viral e substituição do aleitamento materno pelo uso de fórmula láctea infantil. No Brasil, recomenda-se a utilização de esquema antirretroviral composto de três drogas antirretrovirais de duas classes diferentes a partir da 14ª semana de gestação (após o primeiro trimestre) para todas as gestantes infectadas pelo HIV, independentemente dos parâmetros imunológicos ou virológicos, uso de zidovudina por via venosa no momento do parto e de zidovudina para todas as crianças nascidas de mães infectadas pelo HIV, durante as primeiras quatro semanas de vida. Em situações especiais tem-se sugerido a adição de outros antirretrovirais, como a lamivudina e a nevirapina. Os benefícios do uso materno de drogas antirretrovirais para a prevenção da trasnmissão do HIV para seus filhos são unânimes. A segurança desses regimes em curto prazo já foi demonstrada, mas tem sido descrita associação do uso materno de drogas antirretrovirais e anomalias congênitas, prematuridade, toxicidade mitocondrial, anemia, neutropenia e aumento de enzimas hepáticas. Efeitos graves raramente ocorrem. Ainda é necessário acompanhamento em longo prazo de todas as crianças expostas aos antirretrovirais para responder muitas dúvidas existentes.
Palavras-chave: Infecções por HIV; HIV-1; Antirretrovirais.
INTRODUÇÃO
O bloqueio da transmissão vertical foi uma das maiores vitórias contra a infecção pelo HIV: redução das taxas de infecção a níveis inferiores a 2% foi observada ao final da década de 90 com a aplicação de estratégias como o uso materno de antirretrovirais (ARV), via de parto eletiva de acordo com a carga viral e substituição do aleitamento materno pelo uso de fórmula láctea infantil.1 Estudos realizados nas principais capitais do Sudeste do nosso país têm confirmado a redução desta taxa de transmissão: 3,6% no Rio de Janeiro2, 2,4% em São Paulo3 e 3% em Belo Horizonte4.
METODOLOGIA
Foi realizada revisão não sistemática da literatura nas bases de dados Pubmed, nos últimos 10 anos, utilizando-se os termos HIV infection, HIV-1, antiretroviral, prophylaxis, mother-to-child transmission.
REVISÃO DA LITERATURA
Vias de transmissão materno-fetal
O vírus pode ser transmitido por via vertical em três momentos: no período gestacional; no período periparto (durante o trabalho de parto ou ao nascimento); ou no período pós-parto através do aleitamento materno. Cerca de 20 a 25% das infecções ocorrem durante o período intraútero por diversos mecanismos, como passagem transplacentária do vírus para a circulação fetal ou por células mononucleares maternas infectadas pelo HIV quando alcançam diretamente a circulação fetal ou via infecção célula a célula de camadas placentárias sucessivas a partir do contato no espaço intravilositário. Estima-se que 60 a 75% das transmissões ocorram durante o trabalho de parto ou ao nascimento. Os mecanismos de transmissão incluem: rupturas nas barreiras de proteção da pele da criança com subsequente exposição mucocutânea a sangue e secreções maternas contaminadas; ingestão de fluidos maternos contaminados; microtransfusões transplacentárias durante o trabalho de parto e infecção viral ascendente.
Determinantes da transmissão materno-fetal do HIV
O risco de transmissão vertical do HIV é multifacetado e, assim, diversas estratégias de intervenção durante o período gestacional têm sido estudadas com o objetivo de reduzir as taxas de transmissão materno-fetal do HIV. O reconhecimento das características sociais maternas assim como seu estado de saúde poderão indicar as intervenções positivas para o bloqueio da transmissão. Inicia-se pelo reconhecimento da infecção materna a partir da testagem (sorologia anti-HIV ou teste rápido) durante o pré-natal regular ou no momento do parto.
Associa-se ainda à maior transmissão o tempo prolongado de ruptura de membrana amniótica5, com aumento progressivo nas taxas de transmissão vertical do HIV a cada hora transcorrida de ruptura de membrana amniótica. O papel da via de parto na redução da transmissão vertical tem sido importante tema de discussão.6-8 A via cirúrgica pode, teoricamente, exercer seu papel protetor de várias maneiras: por limitar a exposição fetal a sangue e secreções vaginais maternas contaminadas durante a passagem pelo canal de parto; por eliminar riscos potenciais como instrumentação vaginal e episiotomia; por eliminar os riscos associados a doenças sexualmente transmissíveis, devido a processos inflamatórios locais com consequentes lesões epiteliais de mucosa vaginal e viremia local mais significativa; por prevenir microtransfusões materno-fetais nas contrações uterinas durante o trabalho de parto; por diminuir o tempo de exposição a secreções infectadas após ruptura das membranas amnióticas. Entretanto, a intervenção cirúrgica carreia riscos inerentes ao procedimento cirúrgico. Assim, o parto cirúrgico eletivo é recomendado para gestantes na 38ª semana de gestação quando a viremia plasmática é superior a 1.000 cópias/mL ou desconhecida, em dosagem após a 34ª semana de gestação.9
Uma das mais consistentes intervenções tem sido o uso de antirretrovirais pela mãe e seu concepto. Tal estratégia visa ao melhor controle da doença, a partir da redução da viremia plasmática materna e do aumento dos níveis de linfócitos T LTCD4+ e da ação profilática direta no organismo da criança: por meio da profilaxia pré-exposição, quando os antirretrovirais cruzam a barreira placentária, ou profilaxia pós-exposição, após o nascimento, especialmente os amamentados ao seio materno.
O estudo ACTG076 foi um dos primeiros a evidenciar redução na transmissão vertical entre mães que utilizavam tratamento antirretroviral profilático.10 Neste estudo duplo-cego, randomizado e controlado com grupo-placebo foram incluídas mulheres entre 14 e 34 semanas de gestação, com contagem de LTCD4+ >200 células/mm3 e que não tinham história anterior de uso de drogas antirretrovirais. O grupo experimental era composto de mães que recebiam zidovudina (ZDV) via oral no período pré-parto, via venosa no periparto e seus filhos recebiam a droga via oral por seis semanas a partir de 24 horas de vida. A taxa de transmissão foi significativamente mais baixa no grupo que recebera ZDV em comparação ao grupo-placebo (taxa de transmissão de 8,3% vs. 25,5%, respectivamente), evidenciando redução na taxa de transmissão de aproximadamente 67,5% (IC95%: 40,7-82,1). Desde então, o uso do ZDV durante a gravidez tem sido recomendado como prática rotineira entre gestantes infectadas nos países desenvolvidos, assim como em alguns países em desenvolvimento, como o Brasil.
Após esse marco, vários outros estudos foram realizados com a ZDV prescrita em período de tempo mais curto ou em combinação com outros medicamentos, assim como outros antirretrovirais foram testados para avaliar a eficácia do bloqueio da transmissão vertical.11,12 Estudo HIVNET01213 avaliou o uso de nevirapina (NVP) em dose única dada às mães em trabalho de parto e a seus filhos imediatamente após o parto comparado a grupo de mulheres que receberam ZDV durante o parto e seus filhos que receberam ZDV durante a primeira semana de vida, demonstrando taxa de transmissão significativamente menor no grupo com NVP (13,1% vs. 25,1% na 14ª a 16ª semanas, p< 0,05).
Apesar da praticidade do emprego de antirretroviral em dose única, estudo posterior14 mostrou frequente aparecimento de isolados virais resistentes a esse medicamento entre as mulheres a ele expostas (19% das mulheres na sexta à oitava semana pós-parto) e em seus filhos (49% das crianças infectadas pelo HIV), evidenciando a fragilidade desse esquema em longo prazo.
Outro estudo multicêntrico15 avaliou a adição da NVP em dose única ao parto e para o recém-nascido comparado com a administração de placebo para gestantes sob terapia antirretroviral tripla, não sendo observada diferença significativa nas taxas de infecção pelo HIV (1,4% vs. 1,6%, p=0,82).
Sabe-se assim que, quanto maior a complexidade do esquema antirretroviral, definida como a combinação de três antirretrovirais, maior a eficácia no bloqueio da transmissão vertical pelo HIV. A escolha dos antirretrovirais a compor o regime triplo e qual o melhor momento na gestação para iniciá-lo estão descritos na Tabela 1. No Brasil, recomenda-se a utilização de esquema antirretroviral composto de três antirretrovirais de duas classes diferentes a partir da 14ª semana de gestação (após o primeiro trimestre) para todas gestantes infectadas pelo HIV, independentemente dos parâmetros imunológicos ou virológicos9. Preconiza-se também o uso de zidovudina por via venosa no momento do parto.
Todas as crianças nascidas de mães infectadas pelo HIV deverão receber ZDV 4 mg/kg/dose a cada 12 horas durante as primeiras quatro semanas de vida, o mais precocemente possível após o nascimento e idealmente até a 48ª hora de vida.9 Entretanto, em situações especiais tem-se sugerido que a adição de outros antirretrovirais poderia aumentar a chance no bloqueio da transmissão vertical. Tais situações são aquelas em que não foi possível o melhor controle da viremia materna no momento do parto, quando os antirretrovirais não foram utilizados durante a gestação ou no parto ou o desconhecimento da carga viral materna após a 34ª semana de gestação. Nessas situações, tem-se adicionado a nevirapina para o recém-nascido (em três doses: a primeira até a 48ª hora de vida, a segunda dose 48 horas após a primeira e a terceira 96 horas após a segunda). A associação com lamivudina na primeira semana de vida também tem sido sugerida, mas ainda não se tornou prática rotineira no Brasil.16,17 Para os recém-nascidos filhos de mãe com isolados virais com resistência aos antirretrovirais, o uso da ZDV associado a outros antirretrovirais deve ser discutido com especialistas.
Além da efetividade no bloqueio da transmissão vertical, existem ainda muitas perguntas sobre a consequência da exposição a regimes de ARV de crianças não infectadas pelo HIV. A segurança desses regimes, em curto prazo, já foi demonstrada em ensaios clínicos. Observação de alta incidência de anomalias congênitas tem sido questionada na população de crianças com exposição a antirretrovirais na gestação (1º semestre), especialmente defeitos de fechamento do tubo neural. Prevalência de defeitos congênitos por 100 nascidos-vivos de mulheres com exposição no primeiro trimestre de gestação a antirretrovirais foi de 2,9% (IC95%: 2,5-3,4), segundo dados do elegante banco de dados de registro de exposição em 22 anos de estudo18, e é semelhante à prevalência relatada na população americana.
A associação entre prematuridade e uso de antirretrovirais maternos ainda permanece obscura. Alguns estudos não evidenciam aumento de risco, enquanto outros sugerem associação entre uso de TARV combinada e prematuridade.19,20 Deve-se observar que diversos outros fatores de risco, como uso de drogas lícitas e ilícitas, coinfecções e baixa imunidade podem estar presentes e tornar a prematuridade mais frequente nessa população, com aumento da morbidade entre as crianças expostas verticalmente ao HIV.
Ressaltou-se elevada incidência de toxicidade mitocondrial, descrita como acidose lática, manifestações neurológicas graves e miocardiopatia transitória na coorte francesa21, com incidência aos 18 meses de 0,26% (IC95%: 0,10-0,54) entre crianças expostas comparando com a incidência de 0,01% na população geral. Entretanto, tais achados não foram confirmados em outros estudos de coorte22,23 e tal associação permanece controversa.
Em coorte prospectiva de lactentes expostos em países da América Latina, incluindo o Brasil, Mussi-Pinhata et al. mostraram que cerca de 60% desses lactentes apresentaram algum tipo de infecção que não pelo HIV durante o acompanhamento clínico-laboratorial por seis meses. Em análise multivariada desse estudo, os fatores associados à infecção no período neonatal foram: a classificação materna da infecção pelo HIV, o tabagismo durante a gestação, a anemia ao nascimento e número de pessoas que moram na mesma casa.24 Nessa mesma coorte, verificou-se que 20% das crianças (0,7-1,0/100 criança-semana) exibiram um episódio de infecção no trato respiratório nos primeiros seis meses de vida. Bronquiolite (81%) foi o evento mais comum, com necessidade frequente de hospitalização (45,7%).25
Outros dados mostram ainda mais ocorrência de anemia e neutropenia, especialmente se associados ao uso da terapia antirretroviral combinada.24,26-28 Feitarna-Sperling et al.28 obtiveram aumento no risco de anemia (OR 2,22, IC95: 1,06 - 4,64; p = 0,034) e neutropenia (OR 2,15, IC95%: 1,02 - 4,55; p = 0,045). Anormalidades laboratoriais como o aumento de enzimas hepáticas e anemia foram observados entre 63% e 24% dos recém-nascidos à alta hospitalar.29 Lipshultz et al. também salientaram que crianças expostas a antirretrovirais têm crescimento miocárdio comprometido, mas com função preservada.30
Tratamento antirretroviral
Estudos revelaram que durante o primeiro ano de vida o risco de progressão da doença é elevado e que a introdução do tratamento precoce é eficaz. Desse modo, em 2009, o Consenso brasileiro publicou como recomendação iniciar tratamento em todos os menores de 12 meses, independentemente de sintomatologia clínica, classificação imunológica ou carga viral. Em maiores de 12 meses de idade, manteve a recomendação de iniciar o tratamento antirretroviral baseado em critérios clínicos e imunológicos. A terapia combinada com três drogas antirretrovirais, incluindo duas classes de fármacos diferentes, é o tratamento inicial recomendado para crianças e adolescentes com infecção pelo HIV.31
DISCUSSÃO
Os benefícios do uso materno de drogas antirretrovirais para a prevenção da transmissão do HIV para seus filhos são unânimes. Entretanto, efeitos adversos potenciais são esperados, mas efeitos graves raramente ocorrem.
Os estudos conduzidos até o momento são de curta duração. Nesse cenário, torna-se imprescindível o acompanhamento ambulatorial em longo prazo de todas as crianças expostas aos antirretrovirais, com periodicidade mínima de um ano, até que novos dados estejam disponíveis (Tabela 2).
CONCLUSÕES
O bloqueio da transmissão materno-fetal do HIV é factível a partir de diferentes intervenções durante a gestação e no período neonatal. Há necessidade de acompanhamento prospectivo das crianças nascidas de mães infectadas pelo HIV para mensuração dos efeitos em longo prazo.
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