ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Miocardite fulminante
Fulminant myocarditis
Carolina Rohlfs Pereira1; Isabela Nascimento Borges1; Francisco Rezende Silveira2; Mariana Oliveira Rezende3; Thaisa Belligoli Senra3; Thiago Franco Albino3; Tarciane Aline Prata4
1. Acadêmico(a) do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Cardiologista, intensivista e coordenador da Cardiologia do Hospital SEMPER. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Acadêmico(a) do curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Médico-Residente de Clínica Médica do Hospital Semper. Belo Horizonte, MG - Brasil
Isabela Nascimento Borges
E-mail: isabelanborges@hotmail.com.br
Recebido em: 07/04/2010
Aprovado em: 30/09/2011
Instituiçao: Hospital Semper Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A miocardite constitui-se em um dos diagnósticos mais desafiadores em Cardiologia, pois raramente é reconhecida clinicamente. Além disso, não existe um exame que seja padrao-ouro para o diagnóstico e o tratamento atual permanece controverso. O objetivo deste relato de caso é descrever a importância do diagnóstico precoce de miocardite aguda fulminante, na avaliação de paciente com dor torácica e história clínica sugestiva que, após tratamento adequado, apresentou evolução favorável.
Palavras-chave: Miocardite; Imagem por Ressonância Magnética; Insuficiência Cardíaca.
INTRODUÇÃO
A miocardite ou cardiomiopatia inflamatória vem sendo reconhecida como um dos principais determinantes da cardiomiopatia dilatada.1 É caracterizada por uma resposta inflamatória do miocárdio, frequentemente em decorrência de uma agressão infecciosa primária em outro sítio.2 O processo inflamatório pode acometer outras estruturas do coração, mais comumente o pericárdio (pericardite). O acometimento dessa estrutura ocasiona alterações eletrocardiográficas típicas, como o supradesnivelamento do segmento ST-T e a queixa de dor precordial, achados muito semelhantes a um quadro de síndrome coronariana aguda, o que torna a exclusão de doença coronariana obstrutiva essencial em alguns casos.3
O agente agressor mais frequente é o infeccioso, por mecanismo de atuação direta do vírus contra o cardiomiócito e o tecido de sustentação miocárdica ou por reação autoimune pós-infecção viral.1 A miocardite pode também ser secundária a agressões pelo sistema imunológico, como na miocardite periparto, por radioterapia, quimioterapia e hipersensibilidade a drogas. Entre os agentes infecciosos, o mais comum é o viral, principalmente os enterovírus. Entre estes, os Coxsackie vírus tipo B são os mais frequentemente responsáveis pela inflamação miocárdica, apesar de que novos estudos apuraram espectro mais amplo de genomas virais responsáveis, indicando uma mudança de enterovírus e adenovírus para parvovírus B19 e herpes-vírus 6.4
Classifica-se a miocardite em fulminante, aguda e crônica (ativa e persistente). A apresentação clínica é variável, podendo ser assintomática ou apresentar arritmias frequentes, morte súbita, disfunção ventricular sintomática ou assintomática, eventos embólicos e forma fulminante, que geralmente acontece em pacientes jovens sem história prévia de doença coronariana. Quando fulminante, tem início no intervalo de dias após uma infecção viral bem identificada e caracteriza-se por disfunção do ventrículo esquerdo grave e, muitas vezes, choque cardiogênico, sendo que biópsias revelam infiltrados inflamatórios graves e necrose miocítica. Apesar da gravidade do quadro, estudos mostram que aqueles pacientes com miocardite fulminante são os que apresentam mais possibilidade de recuperação completa5,6, sem morbimortalidade relacionada ao coração após a apresentação inicial.7 Os pacientes que sobreviveram exibem resolução histológica de suas miocardites e da insuficiência cardíaca (IC) no período de acompanhamento.
As alterações miocárdicas podem ser demonstradas por meio do ECG, que tipicamente mostra alterações inespecíficas no segmento ST e da onda T. A radiologia torácica pode mostrar achados de insuficiência cardíaca numa forma mais avançada. As alterações nos biomarcadores de mionecrose, principalmente a troponina I, não são comumente encontradas, apenas quando o paciente se apresenta numa fase aguda, manifestando uma rápida deterioração miocárdica. Outro achado laboratorial pode ser a presença de autoanticorpos.7 Os exames não invasivos incluem a cintilografia com gálio, que apresenta sensibilidade de apenas 36%, mas especificidade de 98%; o ecocardiograma, que pode auxiliar a identificar os pacientes com miocardite fulminante no momento da apresentação; e a ressonância magnética cardíaca (RMC), que tem especificidade entre 90 e 100% e sensibilidade de 100%.7
O diagnóstico de inflamação viral é feito por uma biópsia endomiocárdica do ventrículo direito e a partir da análise imuno-histoquímica, com evidência de mais de 14 linfócitos e macrófagos por mm2 associados a HLADR positivo.1 Na suspeita de miocardite fulminante, a biópsia endomiocárdica deve ser realizada em pacientes com falência cardíaca recém-estabelecida e não explicada, de duração inferior a duas semanas, em associação com ventrículo esquerdo de tamanho normal ou dilatado e com comprometimento hemodinâmico. Além disso, deve-se realizar a biópsia endomiocárdica em pacientes com falência cardíaca recém-estabelecida e não explicada, com duração de duas semanas a três meses, em associação com ventrículo esquerdo dilatado e com novas arritmias ventriculares ou bloqueio atrioventricular (BAV) do segundo grau Mobtiz tipo II ou BAV avançado e em pacientes não responsivos ao tratamento usual em uma a duas semanas. Para pacientes que não se enquadram nesses quadros, a biópsia endomiocárdica não foi bem estabelecida.8
Tendo em vista a diversidade de apresentações clínicas e a inespecificidade dos marcadores laboratoriais, o diagnóstico baseia-se fundamentalmente no alto grau de suspeita clínica e, mais recentemente, na confirmação pelos achados na RMC. O grau de suspeição clínica aumenta com a história de doença viral prévia e na ausência de doença cardíaca preexistente, associadas ou não ao aparecimento súbito de arritmias ou distúrbio de condução cardíaca, assim como em caso de aumento da área cardíaca ou sintomas de insuficiência cardíaca congestiva sem causa aparente.6
O tratamento da miocardite ainda permanece controverso. Todos os pacientes com miocardite devem limitar suas atividades físicas, devem ser tratados adequadamente para IC.8 Quando indicado, devem-se tratar arritmias, além de evitar espasmo vascular.7 São medidas de suporte que pretendem diminuir os sintomas agudos para que o organismo, com seu sistema imunológico, elimine o agente causal da infecção. Contudo, muitos estudos atuais mostram uma nova vertente terapêutica que funciona minimizando os fatores causais. Esse tratamento tem como meta melhorar a função cardíaca e aumentar a sobrevida. A terapêutica é representada por imunossupressão (diminuição da atividade inflamatória) e imunomodulação (eliminação dos imunocomplexos, autoanticorpos, citocinas e infecção viral).1
Vários estudos foram feitos na tentativa de mostrar o benefício da terapia imunossupressora. Em relação a pacientes adultos com cardiomiopatia de diagnóstico recente e miocardite presumida, o uso de terapia imunossupressora não parece ser benéfica, à medida que seu curso clínico é normalmente de uma recuperação espontânea.7 O tratamento da miocardite fulminante pode requerer medidas de suporte de curta duração, como balao de contra-pulsação intra-aórtico ou dispositivos de assistência ventricular esquerda. Além disso, esses estudos não permitem indicar de forma rotineira o uso de terapia imunossupressora ou imunomoduladora nas cardiomiopatias dilatadas crônicas sem etiologia definida.1 Portanto, para que a terapia imunossupressora seja recomendada, é necessário que tenha confirmação histológica de miocardite, estando somente indicada naqueles pacientes que não melhoraram com o tratamento de insuficiência cardíaca.7
RELATO DE CASO
J.R.S.N., masculino, 37 anos de idade, admitido no CTI-B do hospital SEMPER em 05/11/2008, com queixa de dor torácica. Relatava dor precordial típica com comemorativos clínicos evidentes e dispneia em repouso. Informava que a dor teve inicio há dois dias, com períodos de acalmia e exacerbação. A história pregressa apenas revelou quadro de dor abdominal associada à gastrenterite na semana anterior.
Ao exame clínico apresentava-se corado, hidratado, cooperativo, TA=37,2°C sem déficits e sem estase sistêmica. PA= 137/74 mmHg. FC=100 bpm. A ausculta cardíaca, bulhas rítmicas, hipofonese de B1 e B3 em esboço. A ausculta respiratória, murmúrio vesicular diminuído, com crepitações basais bilaterais. Abdome livre. Sem edemas.
Os exames complementares revelaram: radiografia de tórax com área cardíaca aumentada e sinais de cefalização do fluxo pulmonar. ECG de admissão: ritmo sinusal regular, supra de ST em D2, D3, avF, V4 a V8 (Figura 1). Troponina = 4,03; CKMB = 70; CPKT = 781.
A associação da clínica do paciente com dor precordial importante, alteração eletrocardiográfica e evidência de injúria miocárdica levou à hipótese de se tratar de infarto agudo do miocárdio. Foi realizado cateterismo, que revelou coronárias normais. Suspeitou-se entao de miocardite aguda fulminante, por se tratar de paciente jovem, sem comorbidades, não usuário de drogas ilícitas, com história infecciosa prévia e alterações primárias do ECG.
A miocardite aguda fulminante deve ser considerada em pacientes que apresentam rápida e progressiva cardiomiopatia, insuficiência cardíaca (IC), arritmias ventriculares ou alterações no ECG que indicam IAM, mas com coronárias normais.4 Além das alterações do ECG e do exame bioquímico compatíveis com miocardite, o paciente evoluiu com choque cardiogênico no dia 05/11, quando recebeu dobutamina. Foram entao solicitados outros exames complementares para confirmação diagnóstica, inclusive aqueles que mapeiam doença inflamatória: PCR (valores diários mostrados no gráfico a seguir): (Figura 2). Ecocardiograma indicou fração de ejeção do ventrículo esquerdo = 49%, aumento do átrio e ventrículo esquerdos e hipocinesia difusa, indicando uma possível miocardite aguda (Figura 3). As alterações clínicas associadas às alterações da radiografia e do ECO possibilitaram o diagnóstico de insuficiência ventricular esquerda.
Como pode ser mostrado na Figura 2 e na radiografia do dia 09/11 (Figura 4), representando a fase aguda da doença, o paciente evoluiu com piora progressiva, com insuficiência ventricular esquerda grave, necessitando de ventilação não invasiva.
A RMN foi realizada no dia 11/11 e selou o diagnóstico de miocardite aguda fulminante. O exame revelou FE: 29,4%, aumento das dimensões do ventrículo esquerdo associado a importante hipocinesia global, bem como a presença de múltiplas áreas de realce tardio, sendo que tais achados são compatíveis com processo inflamatório (Figura 5).
O tratamento clínico foi o clássico para IC/insuficiência ventricular esquerda: IECA, betabloqueador, espironolactona, furosemida, além de dobutamina (devido ao choque cardiogênico), enoxaparina, VNI e restrição hídrica. Houve melhora progressiva do quadro, como mostrado na radiografia (Figura 6) do dia 13/11. Alta do CTI no dia 13/11/2008.
DISCUSSÃO
A hipótese diagnóstica inicialmente aventada nesse caso foi a de uma síndrome coronariana aguda, devido à constatação de clínica característica e de alterações eletrocardiográficas e bioquímicas consistentes com o IAM. Porém, a progressão da doença e um cateterismo com laudo normal excluíram a possibilidade de episódio coronariano agudo. Suspeitou-se entao de miocardite aguda fulminante, cujo diagnóstico clínico é feito, na maioria das vezes, em paciente jovem, com história prévia de infecção viral recente. Podem ser observadas alterações difusas do segmento ST-T e aumento dos marcadores de injúria miocárdica. No entanto, essa forma de apresentação clínica não é uma constante e muitas vezes o diagnóstico de miocardite não é confirmado. Métodos auxiliares no diagnóstico, como exames laboratoriais e ECG, são pouco específicos e outros, como a sorologia, a cintilografia e a biópsia endomiocárdica, não são realizados na maioria dos casos, devido à sua complexidade, à necessidade de contrastes específicos e de uma janela de tempo adequada para a sua realização. Foi solicitada entao a ressonância nuclear magnética cardíaca (RMC), método capaz de avaliar a função miocárdica, fluxos e perfusões e de caracterizar áreas de necrose e fibrose. Os padroes de necrose encontrados na RMC realizada foram compatíveis com miocardite fulminante, confirmando o diagnóstico. O paciente evoluiu com insuficiência cardíaca rapidamente progressiva e o tratamento instituído foi o clássico para IC e insuficiência ventricular esquerda. O tratamento da miocardite é controverso, não tendo sido estabelecido algum tratamento específico. Porém, estudos mostram que todos os pacientes devem receber terapia randomizada para IC e que a terapia imunossupressora não leva à melhora da sobrevida ou da função cardíaca em pacientes com miocardite fulminante. Assim, não foi instituído tratamento imunossupressor ao paciente, que mesmo assim evoluiu com melhora progressiva após a introdução do tratamento para a ICC.
CONCLUSÕES
O diagnóstico precoce da miocardite aguda fulminante, muitas vezes de difícil realização, foi determinante para a boa evolução do quadro do paciente. Nesse aspecto, a RMC foi essencial, permitindo a precisa avaliação do território lesionado. Com a recente introdução na prática clínica, a RMC vem se firmando como pilar importante no diagnóstico da MA, apresentando sensibilidade de 100% e especificidade de 90%. Nesse caso, o paciente evoluiu de maneira favorável a partir da instituição de um tratamento adequado para ICC, sem a necessidade de terapia imunossupressora, que não parece ser benéfica para pacientes adultos com cardiomiopatia de diagnóstico recente e miocardite fulminante presumida.
REFERENCIAS
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