RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. 3 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140107

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Artigo de Revisão

Deficiência de biotinidase: aspectos clínicos, diagnósticos e triagem neonatal

Biotinidase deficiency: clinical and diagnosis aspects and neonatal screening

Marilis Tissot Lara1; Marcos José Burle de Aguiar2; Juliana Gurgel Giannetti3; José Nélio Januário4

1. Médica Neuropediatra. Mestre em Ciências da Saúde. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico. Doutor em Pediatria. Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médica. Pós-Doutora. Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Médico. Mestre em Ciências da Saúde. Professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG; Diretor do Núcleo de Ação e Pesquisa em Apoio Diagnóstico - NUPAD - Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Marilis Tissot Lara1
E-mail: marilistissot@gmail.com

Recebido em: 20/12/2012
Aprovado em: 26/08/2013

Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A deficiência de biotinidase é doença metabólica hereditária com expressão fenotípica variada, na qual há defeito no metabolismo da biotina. A sintomatologia da forma clássica é frequentemente neurológica e cutânea, podendo ocorrer sequelas como: distúrbios auditivos, visuais, atraso motor e de linguagem. Essas manifestações são, geralmente, irreversíveis, mesmo após instituição do tratamento, que é simples e de baixo custo, baseado na reposição oral de biotina, 5 a 20 mg/dia, por toda a vida. O tratamento, quando iniciado nos primeiros meses de vida, evita o aparecimento da sintomatologia referida. A prevalência combinada da doença é variável, de 1:60.000 a 1:9.000. A deficiência de biotinidase preenche critérios da Organização Mundial de Saúde para triagem neonatal devido ao fato dos seus portadores serem assintomáticos nesse período da vida, possuir alta morbidade e tratamento efetivo e de baixo custo. O objetivo deste estudo é o de revisar a literatura nacional e internacional referente aos aspectos relevantes da deficiência de biotinidase.

Palavras-chave: Biotina; Biotinidase; Deficiência de Biotinidase; Deficiência de Vitaminas do Complexo B; Triagem Neonatal.

 

INTRODUÇÃO

A deficiência de biotinidase (DB) é doença metabólica hereditária com expressão fenotípica variada, na qual há defeito no metabolismo da biotina. A doença é classificada em dois subgrupos: deficiência profunda (DPB) e parcial (DPaB), cuja atividade sérica da enzima encontra-se, respectivamente, inferior a 10% e entre 10 e 30% da atividade média normal.1-3

A DPB manifesta-se geralmente a partir da sétima semana de vida com distúrbios neurológicos e cutâneos tais como crises epilépticas, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, hipotonia, microcefalia, alopécia e dermatite eczematoide. As sequelas neurológicas em pacientes não tratados precocemente são distúrbios auditivos, visuais, assim como atraso motor e de linguagem. Seu tratamento, quando iniciado nos primeiros meses de vida, evita o aparecimento da sua sintomatologia, sendo simples e de baixo custo, baseado na reposição oral de biotina na dose de 5 a 20 mg/dia, por toda a vida.1,3

A DB, portanto, preenche alguns critérios da Organização Mundial de Saúde (OMS) para ser incluída na triagem neonatal: ausência de sinais clínicos no período neonatal, elevada morbidade e tratamento efetivo.2

O objetivo deste estudo foi revisar a literatura nacional e internacional referente aos aspectos relevantes da deficiência de biotinidase.

 

MÉTODO

Realizou-se pesquisa bibliográfica em artigos, periódicos nacionais e internacionais, manuais do Ministério da Saúde, livros, teses e dissertações, nos idiomas português, inglês e espanhol, entre 1999 e 2013. Os artigos e outros materiais foram selecionados de acordo com a relevância do tema. Foram incluídos alguns artigos clássicos da literatura, publicados previamente ao período referido, devido à sua importância histórica.

A pesquisa foi realizada nas bases de dados: Scientific Eletronic Library Online (SCIELO), Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (LILACS), Medline, Pubmed e Livraria Cochrane.

 

DEFINIÇÃO

A DB é doença metabólica hereditária, herdada de forma autossômica recessiva, com expressão fenotípica variada em que se observa deficiência da enzima biotinidase. Sua consequência é a depleção da biotina endógena devido à incapacidade do organismo em fazer sua reciclagem ou usar a biotina ligada à proteína fornecida pela dieta, originando deficiência múltipla de carboxilases (DMC) na forma tardia ou juvenil (Mckusik 253260).1-3

 

ASPECTOS METABÓLICOS

Biotina

A biotina é uma vitamina do complexo B, hidrossolúvel, nutriente essencial para o ser humano,4 envolvida em importantes processos metabólicos como a gliconeogênese, a síntese de ácidos graxos e o catabolismo de vários aminoácidos de cadeia ramificada.3-5

Possui a função de ativar as enzimas que possuem a propriedade de transportar grupos carboxílicos: piruvato-carboxilase, propionil-CoA carboxilase, ß-metilcrotonil-Co-A carboxilase e acetil-CoA. As carboxilases (enzimas biotina-dependentes) são sintetizadas como apocarboxilases e necessitam de biotina para serem ativadas.3,5,6

A deficiência de biotina pode se associar a: alimentação parenteral total; ingestão de avidina (presente na clara de ovo cru), proteína que impede sua absorção intestinal; desnutrição proteico-calórica grave em crianças; erros inatos do metabolismo (deficiência de biotinidase); síndrome do intestino curto; hemodiálise crônica; administração prolongada de alguns fármacos antiepilépticos (carbamazepina, fenitoína, primidona) e antibióticos, provavelmente por inibir sua absorção intestinal ou acelerar seu catabolismo;3,5,7 diminuição da proteína sodium-dependent mult-vitam transporter (SMVT), que desempenha importante papel em sua homeostase, ao atuar no seu transporte livre no intestino, fígado, tecidos periféricos e reabsorção renal.5

Os requerimentos diários de biotina são para adultos e mulheres grávidas - 30 µg; durante a lactação 35-30 µg; e lactentes (0-5 meses) - 5 µg.4

Existe a possibilidade de que a carência de biotina esteja envolvida em malformações fetais em humanos. Em estudos animais, está comprovado que a deficiência de biotina é teratogênica, sendo as malformações mais comuns em ratos a fenda palatina, micrognatia, micromelia e sindactilia.3-5

As células deficientes em biotina exibem acentuada suscetibilidade a dano oxidativo em resposta ao estresse.3-5

Biotinidase

A biotinidase (biotin-amido-hidrolase) (EC 3.5.1.12) é enzima de fundamental importância no ciclo da biotina. Sua função é liberar a biotina, ligada covalentemente à proteína ou aos peptídeos biotinilados, da dieta ou da biocitina endógena.3,7

 

EPIDEMIOLOGIA

A incidência mundial de DB baseou-se em 36 programas de triagem neonatal em 1990, envolvendo o exame de 8.532.617 recém-nascidos (RNs). A incidência combinada de DPB e DPaB foi de 1:60.089 nascidos vivos (NVs) (1:49.500 e 1:73.100), com intervalo de confiança de 95%.8 No Brasil, os estudos sobre a epidemiologia da DB são escassos e os resultados são discordantes. No Paraná, em 125.000 RNs triados, foi encontrada prevalência combinada de DB 1:62.500 NVs, DPB 1:121.000 NVs e DPaB 1:121.000 NVs.9 Em 2004, observou-se em 225.136 RNs triados de várias regiões brasileiras a prevalência de DB, DPB e DPaB de 1:9.000, 1:14.192 e 1:9000 NVs, respectivamente.10 Em 2010, em Minas Gerais, encontrou-se em 182.942 RNs triados pelo Programa Estadual de Triagem Neonatal (PETN) a prevalência de DPaB 1:18.289 NVs, sem caso de DPB.11

 

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

Deficiência profunda de biotinidase

A DPB, na maioria das crianças não tratadas entre o segundo e o quinto mês de vida, pode expressar-se clinicamente com sintomatologia neurológica e cutânea. A sintomatologia, em geral, só aparece após a depleção dos estoques de biotina acumulados durante a vida intrauterina. Há casos confirmados de aparecimento mais precoce, na primeira semana de vida, e outros de início na adolescência.1-3 Muitas crianças não tratadas precocemente desenvolvem atraso no desenvolvimento, perda ou deficiência auditiva, problemas visuais incluindo atrofia óptica, usualmente não reversíveis com o uso da biotina.1

Os achados clínicos mais relevantes observados em 80 pacientes3 são:

em mais de 50% dos casos: alopécia, atraso no desenvolvimento, hipotonia muscular, crises epilépticas, erupção cutânea e infecções de pele;

entre 25 e 50% dos casos: ataxia, conjuntivite, deficiência auditiva, letargia, problemas respiratórios e anormalidades visuais;

entre 10 e 25% dos casos: dificuldades de alimentação, coma, diarreia e infecções por fungo;

em menos de 10% dos casos: hepatomegalia, problemas de linguagem e esplenomegalia. Descrevem-se, ainda, em pacientes adultos sonolência, alucinações e parestesias.3

Anormalidades neurológicas

Crises epilépticas

A atividade de biotinidase no cérebro humano normal e no liquor é muito baixa. O cérebro pode se tornar incapaz de reciclar a biotina e pode depender da biotina transportada através da barreira hematoencefálica. Os estágios precoces da DB podem resultar em acúmulo de lactato no cérebro (acidose lática localizada), que pode associar-se a crises epilépticas antes que surja outra sintomatologia clínica.12

Em 78 crianças sintomáticas com DB, 55% tinham episódios sugestivos de crises epilépticas, sendo mais frequentes o tipo tônico-clônico-generalizado (TCG), semelhante ao observado na maioria das doenças metabólicas herdadas. Os espasmos infantis e as crises mioclônicas foram anotados em 16% dos casos; e as crises focais foram raramente descritas.12

Deficiência auditiva

A perda auditiva foi observada em 76% de 33 crianças com DPB de 29 famílias, identificadas após período neonatal ou triagem, sendo que dois terços delas necessitaram de prótese auditiva. A idade média da perda auditiva foi de 32,5 meses, dentro do período crítico do desenvolvimento normal da linguagem. Registrou-se elevada incidência de problemas de linguagem e de aprendizado nas crianças com perda auditiva (78 e 70%, respectivamente) e sem perda auditiva (62 e 50%, respectivamente). A audiometria típica encontrada foi moderada a acentuada perda auditiva neurossensorial. Verificou-se que na maioria das crianças a DPB, após a instituição do tratamento, não foi progressiva. Em poucas crianças houve discreta e contínua deterioração na audição e em uma houve melhora com o tempo, após o início do tratamento com biotina.13,14

Em 20 crianças com DPB submetidas a testes audiológicos15 houve perda auditiva neurossensorial em aproximadamente 55% delas, desde discreta a acentuada. Há significativa diferença nos resultados dos testes de potencial evocado auditivo central entre as crianças diagnosticadas logo após o nascimento e os irmãos diagnosticados mais tardiamente. A latência mais prolongada foi encontrada no grupo com diagnóstico tardio, comparado ao precoce. O diagnóstico precoce é importante para prevenir deficiência auditiva periférica e central. O diagnóstico tardio, apesar do tratamento, faz com que a lesão auditiva, geralmente, seja irreversível.15

Distúrbios visuais

Em 78 crianças com DB sintomática foi constatada, em 51% delas, anormalidades oftalmológicas, incluindo infecções (30%), neuropatia óptica e distúrbios visuais (13%), distúrbios da motricidade ocular (13%), alterações pigmentares da retina (4%) e alterações pupilares (1%), sendo mais frequentes a atrofia óptica e a ceratoconjuntivite.3

Comprometimento da medula espinhal

O comprometimento medular é raro na DB. Deve ser considerado, entretanto, no diagnóstico diferencial de desmielinização medular de causa desconhecida, uma vez que o tratamento imediato da DB pode cursar com sua recuperação total ou parcial.16

Anormalidades dermatológicas

As alterações dermatológicas são muito comuns na DB caracterizadas, especialmente, por: erupção maculopapular não específica, tipicamente descrita como pele seca rugosa, eritematosa, principalmente em áreas úmidas e periorificiais, como ao redor da boca, nariz e olhos.6,18 Em casos mais graves podem ocorrer liquenificação, crostas e lesões abertas, que podem infectar-se por Candida. O cabelo é esparso e fino, com alopécia parcial ou total, que inclui as sobrancelhas. O mecanismo pelo qual a DB produz manifestações cutâneas é desconhecido, parecendo associar-se a alterações no metabolismo dos lipídeos.17

As erupções resolvem-se após tratamento com biotina, em uma ou duas semanas.4,17

Anormalidades respiratórias

São observadas estridor laríngeo, ins e expiratório, em alguns casos de DB, possivelmente devido à disfunção do centro respiratório.16,18

Disfunção imunológica

A DB tem efeitos adversos nas funções imunes celular e humoral. Os defeitos humorais podem ser devidos à deprivação proteica que afeta a síntese de imunoglobulinas.3

Aspectos neuropatológicos

O exame anatomopatológico do cérebro e da medula espinhal, em uma criança que foi a óbito antes do diagnóstico de DB, revelou lesões necróticas similares àquelas observadas na doença de Leigh e na encefalopatia de Wernicke. Estavam afetados também o hipocampo e o córtex para-hipocampal. As lesões mostravam áreas de microcavitação, proliferação capilar e gliose. Na substância cinzenta havia relativa preservação dos neurônios e na substância branca perda da mielina com relativo ou moderado dano axonal.19 Em outros dois casos registraram-se degeneração cerebelar crônica, mielopatia subaguda e mielinização defeituosa ou comprometida.3,19

Aspectos de neuroimagem

Atrofia cerebral, anormalidades de substância branca e achados menos comuns incluem lesões císticas, aparência radiológica de síndrome de Leigh e calcificações dos gânglios da base. Distúrbios da mielinização e outras anormalidades da substância branca são proeminentes nas formas de início precoce, enquanto que naquelas de início tardio são caracterizadas por anormalidades da substância cinzenta e atrofia.3

Deficiência parcial de biotinidase

Antes da implementação da triagem neonatal para DB, a DPaB era desconhecida. Todas as 16 crianças com DPaB identificadas pela triagem neonatal nos EUA eram saudáveis no momento do diagnóstico. As crianças com DPaB, com exceção de um que desenvolveu sintomatologia, permaneceram assintomáticas ou os apresentaram de forma discreta e inespecífica. O diagnóstico de DPaB, nessas crianças, provavelmente não teria sido feito se não fosse pela triagem neonatal.20

Na Hungria, entre 1989 e 2001, registraram-se sete crianças com DPaB. A maioria delas exibia sintomatologia discreta referida como hipotonia e dermatite em face, no momento do diagnóstico. A idade das crianças variou desde várias semanas até meses de idade. Essa sintomatologia resolveu-se após início do tratamento com biotina.21

Em Minesotta, EUA, foram identificadas 26 crianças com DPaB, com duas semanas de vida, todas assintomáticas e que tiveram o tratamento iniciado imediatamente.22

 

CASOS ASSINTOMÁTICOS

Existem muitos casos de DB em ambas as formas, identificados ou acompanhados até a idade adulta e que permaneceram assintomáticos. Isso sugere que pode existir suficiente atividade enzimática residual necessária como substrato e, na vigência de um estresse como infecção grave, pode desencadear sintomatologia. Há fatores relacionados a diferenças dietéticas ou fatores epigenéticos que podem proteger alguns indivíduos assintomáticos.1,3 Os fatores que precipitam sintomatologia na DB assintomática são desconhecidos e podem ser desencadeadas em qualquer idade.23

 

MÉTODOS DIAGNÓSTICOS

O diagnóstico da DB consiste na determinação da atividade da enzima biotinidase. Pode ser suspeitado na triagem neonatal, confirmado pela dosagem sérica quantitativa da enzima biotinidase e, mais raramente na atualidade, em leucócitos de sangue periférico ou em cultura de fibroblastos obtidos por biópsia de pele.

Um dos testes mais utilizados para triagem neonatal é o colorimétrico, em que se mede a capacidade de liberação do substrato artificial N-biotinil p-amino-benzoato (BPABA). Há métodos que utilizam como substratro natural a biocitina e/ou outros derivados da biotina, como biotina-6-amidoquinolina.3

O uso da biotina pelo paciente não interfere no nível da biotinidase cuja atividade está correlacionada com vários aspectos, incluindo idade, gênero e capacidade de síntese de proteína hepática.19 O estudo molecular identificando as mutações dos probandos, apesar de oneroso, é no atual momento o padrão-ouro para o diagnóstico da DB.

Em crianças acima de 30 dias de vida, consideram-se os mesmos valores do adulto. No período neonatal, observa-se baixa atividade da enzima, principalmente nos primeiros dias após o nascimento, com valores entre 50 e 70% da atividade média normal para o adulto.2

 

ASPECTOS BIOQUÍMICOS

Foram relatadas em 80 casos com DPB, em 2003, em algum momento da sua evolução clínica: acidúria orgânica (80%), cetoacidose metabólica (75%), lactacidemia e hiperamonemia.1

As anormalidades bioquímicas ocorrem devido à DMC e consistem em acidose lática, aumento da excreção urinária do lactato, ácido ß-hidroxi-isovalérico (mais frequentemente observado), ß-hidroxio-propionato, metilcitratos e ß-metilcrotonilglicina. A possível normalidade de ácidos orgânicos urinários não afasta a doença. Moderado aumento das quantidades de ácido 3 hidroxivalérico e discreto aumento nos níveis de ácido metilcítrico são fortes indicadores de possível DB.2-4

 

ASPECTOS GENÉTICOS

A DB, assim como a maioria dos erros inatos do metabolismo, apresenta herança autossômica recessiva, sendo afetados indistintamente ambos os gêneros. A prevalência de heterozigotos estimada é de um para cada 123 indivíduos.3

A estrutura genômica do gene da biotinidase está determinada1,3 e o gene humano da biotinidase (BTD: 609019) consiste em quatro éxons. O gene da biotinidase está mapeado no braço curto do cromossomo 3(3p25). O DNA complementar que decifra a biotinidase sérica humana normal já foi clonado e codificado. Análise Northern blot tem demonstrado expressão da biotinidase no fígado, rins, pâncreas, pulmão, musculoesquelético, coração, cérebro e placenta humanos. São reconhecidas cerca de 140 mutações patogênicas associadas à DPB.7,22,24 A maioria dos indivíduos com DPaB tem a mutação c.1330G>C (p.D444H) em um dos alelos, em combinação com a segunda mutação para DPB no outro alelo.3 Essa mutação sozinha causa 48-52% da perda da atividade da enzima aberrante daquele alelo. A frequência desse alelo na população geral é estimada em torno de 0,039.

 

DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL

O diagnóstico pré-natal da DB é possível a partir da determinação da atividade da enzima em extratos de células de líquido amniótico ou da análise molecular. Considerando-se que o RN afetado por DB é assintomático e que os procedimentos referidos previamente não são isentos de risco, sugere-se dosar a atividade sérica de biotinidase logo após o nascimento, quando a história familiar for positiva.3

 

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

O principal diagnóstico diferencial da DB é a deficiência de holocarboxilase sintetase (HCS), que é um erro inato do metabolismo raro, que interfere no metabolismo da biotina, levando à DMC. A deficiência de HCS é confirmada pela dosagem da enzima, em cultura de fibroblastos de pele.3

Outros possíveis diagnósticos diferenciais da DB são: deficiência isolada de carboxilase (que não responde ao tratamento com biotina); uso crônico em crianças de alimentação parenteral sem suplementação de biotina ou de dietas contendo escassa quantidade de biotina.1,3 Em crianças maiores, a biotin-responsive basal ganglia disease, doença neurológica rara, de etiologia indeterminada, pode cursar com sintomatologia piramidal e extrapiramidal, lesão bilateral na cabeça do núcleo caudado e putâmen observada à ressonância nuclear magnética, com dramática resposta à biotina.25

 

TRATAMENTO

A dose de biotina para o tratamento de DB varia entre 5 e 20 mg/dia, via oral, independentemente da idade. A quantidade de biotina necessária vai decrescendo com o aumento da idade. O único método para monitorar se a dose de biotina está adequada é a dosagem de ácidos orgânicos na urina que se normaliza. No entanto, cerca de 20% das crianças com DB não apresentam anormalidades na dosagem urinária de ácidos orgânicos, mesmo quando sintomáticos.3

Há consenso sobre o tratamento da DPB, sendo controverso quanto à DPaB, entretanto, preconiza-se tratar ambas as formas de DB.23

 

TRIAGEM NEONATAL PARA DEFICIÊNCIA DE BIOTINIDASE

A DB foi incorporada à triagem neonatal a partir de 1984, no estado da Virgínia, nos EUA, quando foi desenvolvido um método colorimétrico, simples, utilizado para detectar a ausência ou presença de atividade de biotinidase em amostras de sangue seco de papel filtro (PF) em RN, utilizando um substrato artificial B-PABA2.

Posteriormente, vários países iniciaram programas-pilotos de triagem para a doença (Tabela 1).

 

 

Entre outubro de 2004 e maio de 2008, em Minnesota, triagem neonatal entre 264.727 RNs acusou incidência combinada de DB de 1:8.540 NVs, DPB 1:10.181 NVs e DTB 1:52.945 NVs.22

Dados publicados em 2007 referentes à triagem neonatal para DB, em países europeus, estão demonstrados na Tabela 2.

 

 

No Brasil, a triagem neonatal ficou conhecida como teste do pezinho, que foi incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS) pela Portaria GM/MS nº 22, de 15 de janeiro de 1992, com legislação que determinava a obrigatoriedade de sua realização em todos os RNs vivos e incluía a avaliação para a fenilcetonúria e hipotireoidismo congênito primário.27 Na segunda fase, iniciada em março de 1998, anemia falciforme e outras hemoglobinopatias passaram a fazer parte da triagem neonatal. No ano de 2001, o Ministério da Saúde publicou a Portaria Ministerial nº 822, de 06 de junho de 2001, que criou o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN) e também os Serviços de Referência em Triagem Neonatal (SRTN) em cada estado.27 A terceira fase foi implantada em 2003 com a inclusão da fibrose cística. Atualmente, a quarta fase foi implantada incluindo na triagem neonatal a hiperplasia adrenal congênita e a deficiência de biotinidase.28

 

FATORES RESPONSÁVEIS POR FALSO-POSITIVOS E FALSO-NEGATIVOS NOS TESTES DE TRIAGEM NEONATAL PARA DB

Fatores responsáveis por falso-positivos

Icterícia

Observa-se baixa atividade de biotinidase em RNs a termo, prematuros e fetos pequenos para a idade gestacional com icterícia, sendo atribuída ao comprometimento da função hepática. Os altos níveis de bilirrubina total (BT) podem ter papel inibidor da enzima. A idade gestacional (IG), como os níveis de BT, devem, por isso, ser escritos nos cartões de Guthrie para a correta avaliação da atividade de biotinidase.29

Prematuridade

No Brasil, em 1999, em 86 prematuros a atividade da biotinidase apresentava correlação direta com a idade gestacional.6

Fatores responsáveis por falso-negativos

Os testes de triagem neonatal que usam o método colorimétrico podem mostrar atividade de biotinidase muito elevadas em crianças sob tratamento com sulfonamidas,2 que são primariamente aminas aromáticas e reagem com as substâncias químicas utilizadas no teste, desenvolvendo cor. No caso da procaína/benzilpenicilina, a cor é devida ao grupo 4-aminobenzoico na estrutrura da procaína. Nessas duas condições pode-se ter falso-negativos. Para eliminar erros diagnósticos, recomenda-se que as duas determinações com e sem substrato sejam feitas simultaneamente no teste.2,3

É descrito o caso de duas crianças com sintomas sugestivos de DB, porém com atividade de biotinidase sérica muito elevada. Foi diagnosticada glicogenose tipo Ia (GSD) em ambas. Esse tipo de doença deve ser considerado em crianças com atividade sérica de biotinidase muito elevada. Não se sabe o real motivo dessa elevação.30

 

CONCLUSÃO

A DB é doença metabólica hereditária, com padrão de herança autossômico recessivo, na qual há deficiência da enzima biotinidase. A incidência mundial combinada de DB é estimada em torno de 1:60.000, com variabilidade na incidência em diferentes países, ressaltando-se a importância de estudos regionais.

A DBP manifesta-se com sintomatologia neurológica e cutânea, com possibilidade de sequelas neurológicas irreversíveis em pacientes não tratados precocemente. A DB preenche os critérios da OMS para sua inclusão na triagem neonatal, importante medida de saúde pública já adotada em vários países e regiões do mundo, inclusive no SUS desde 2013.

O diagnóstico da DB pode ser feito a partir de dosagem quantitativa da enzima biotinidase, que não está isenta de casos falso-positivos. Por isso o estudo molecular de DNA assume muita importância, sendo considerado padrão-ouro na confirmação da DB.

Atualmente, são reconhecidas cerca de 140 mutações patogênicas associadas à DB. Até o momento não é possível inferir totalmente qual paciente desenvolverá ou não sintomatologia baseado apenas no genótipo ou mesmo na dosagem enzimática.

O tratamento consiste no uso de biotina em pacientes com DPB. Em relação ao tratamento da DPaB, observam-se muitas divergências. O fator favorável ao tratamento desses pacientes é que as reais consequências da deficiência parcial de biotina, quando associada a outros fatores desencadeantes, não foram totalmente elucidadas, podendo o cérebro ser dos primeiros órgãos atingidos nessa situação.

Mais pesquisas sobre a DB são necessárias, principalmente no que diz respeito à identificação e evolução dos casos sintomáticos e assintomáticos, bem como a estudos bioquímicos e moleculares. Tais dados poderão trazer subsídios para a melhor compreensão sobre a variabilidade clínica na DB.

 

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