RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. (Suppl.9) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140119

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Artigo Original

Segurança da vacina quadrivalente contra o papilomavírus humano: uma revisão sistemática

Quadrivalent vaccine against human papillomavirus safety: a systematic review

Joao Henrique Coelho Quintao1; Bruna Lana Ziviani1; Carina Lopes Soares dos Santos1; Mariella Azevedo Maciel1; Cristina Botelho Barra2

1. Acadêmico(a) do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médica Pediatra. Mestre em Ciências da Saúde. Professora Assistente do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

João Henrique Coelho Quintão
E-mail: joaohcq@hotmail.com

Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A vacina recombinante quadrivalente contra o HPV (Gardasil®, Merck), qHPV, protege contra verrugas e neoplasia genitais. No Brasil, foi incorporada ao Programa Nacional de Imunizações a partir de 2014. Desde entao, veículos de mídia brasileiros relataram a ocorrência de reações adversas graves atribuídas à vacina, como reações autoimunes e acometimentos neurológicos. Tais relatos têm como consequência o surgimento de uma postura de desconfiança por parte tanto da comunidade leiga quanto da comunidade médica em relação à sua segurança, levando à diminuição da adesão à segunda fase do programa de vacinação. A presente revisão sistemática busca o embasamento científico em relação à segurança da qHPV, como forma de avaliar a pertinência da desconfiança criada em relação à vacina.

Palavras-chave: Vacinas contra Papillomavirus/efeitos adversos; Infecções por Papillomavirus/prevenção & controle.

 

INTRODUÇÃO

O papilomavírus humano (HPV) é um vírus-DNA associado à doença sexualmente transmissível mais prevalente no mundo. Já foram identificados cerca de 130 subtipos virais, dos quais 40 infectam o trato anogenital humano, sendo subdivididos entre associados ao aparecimento de verrugas e câncer anogenitais.1

Há forte correlação entre câncer cervical invasivo e a infecção pelo HPV pelos subtipos 16 e 18. A patogenia do vírus envolve a integração do genoma viral ao DNA das células infectadas, resultando em desregulação dos genes supressores tumorais e modificações funcionais que permitem a indução da carcinogênese cervical.2-4

No Brasil, o câncer de colo uterino é atualmente a terceira causa de morte por neoplasia em mulheres, sendo superado apenas pela doença de mamas e pulmoes. Além disso, nos últimos 10 anos houve aumento de quase 30% no número de mortes atribuídas ao câncer cervical.5

A comercialização da vacina recombinante quadrivalente contra o HPV (Gardasil®, Merck), a qHPV, foi autorizada pela Food and Drug Administration (FDA) em 2006, produzida a partir das proteínas L1 do capsídeo de subtipos virais 6, 11, 16 e 18. A vacina, que protege contra verrugas e neoplasia genitais, já teve sua distribuição realizada em 121 países e mais de 74 milhoes de doses foram já aplicados.6 Além da vacina quadrivalente, também está disponível no mercado a vacina recombinante bivalente (Cervarix®, Glaxo Smith Kline), protegendo apenas contra os subtipos virais 16 e 18, relacionados exclusivamente ao câncer anogenital.

Em março de 2014, a qHPV foi incorporada ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) brasileiro para meninas entre 11 e 13 anos. Foi adotado o esquema vacinal que consiste na aplicação de três doses da vacina: zero, seis e 60 meses. Esse esquema vacinal estendido, comparado com o esquema clássico de três doses aplicadas em zero, dois e seis meses, garante resposta imunológica mais robusta decorrente do maior intervalo entre a segunda e a terceira dose e, paralelamente, possibilita a redução da carga de trabalho das equipes de saúde, aumentando, portanto, as chances de alta cobertura vacinal sem impactar na cobertura das demais vacinas.7

Na primeira fase da vacinação, o programa atingiu cobertura bastante expressiva, com média de 4,7 milhoes de meninas, correspondendo a 96% do público-alvo. Contudo, veículos de mídia brasileiros relataram a ocorrência de reações adversas graves atribuídas à qHPV, como reações autoimunes e acometimentos neurológicos. Tais relatos têm como consequência o surgimento de uma postura de desconfiança por parte tanto da comunidade leiga quanto da comunidade médica em relação à segurança da qHPV, levando à diminuição da adesão à vacina, exemplificada por desaceleração no ritmo de vacinação na segunda fase da campanha iniciada em setembro de 2014, a qual mostrou cobertura de apenas 45% do público-alvo.8

A presente revisão busca o embasamento científico a respeito da segurança da qHPV como forma de avaliar a pertinência da desconfiança criada em relação à vacina.

 

METODOLOGIA

O atual estudo visa à avaliação sistemática da literatura médica sobre a segurança da vacina quadrivalente contra o HPV (qHPV). A estratégia de busca baseou-se na pesquisa de artigos com base nos termos "Papillomavirus Vaccines/adverse effects" AND "Papillomavirus Infections/prevention and control" pelo sistema de termos MeSH, na base de dados da PubMed. Tal estratégia foi escolhida por ter gerado maior número de artigos relevantes e condizentes com os objetivos da pesquisa. A revisão foi realizada tendo como base estudos clínicos duplo-cegos randomizados controlados por placebo realizados na era pré-vacinal, estudos retrospectivos de coorte realizados em populações que já introduziram a vacinação em massa e estudos de caso-controle.

Nos ensaios clínicos, as reações adversas graves foram definidas como aquelas que causaram morte, doença com risco de morte, hospitalização, prolongamento de hospitalização ou incapacidade permanente.9 Na análise da prevalência de reações adversas graves, o enfoque, na revisão, foi dado aos tipos de reações adversas graves mais comumente veiculadas na mídia, como infecções, distúrbios musculoesqueléticos, alterações neurológicas, vasculares, respiratórias e autoimunes.

A opção pela análise dos estudos retrospectivos de coorte baseou-se na constatação de que alguns eventos adversos graves atribuídos à qHPV têm baixa prevalência na população em geral10,11, sendo, portanto, necessária a inclusão de amostras populacionais grandes a fim de se analisar a prevalência de efeitos adversos raros, como distúrbios autoimunes e neurológicos.

 

RESULTADOS

A estratégia de busca gerou 229 artigos, dos quais 27 foram selecionados, a partir do título e do resumo, para estudo. Após a leitura na íntegra dos trabalhos pré-analisados, foram finalmente selecionados 10 artigos. O fluxograma de seleção e os critérios de exclusão de artigos estao detalhados na Figura 1.

 


Figura 1 - Fluxograma de seleção de artigos na literatura médica sobre a segurança da vacina quadrivalente contra o HPV (qHPV).

 

Ensaios clínicos

Os estudos em questao avaliaram a segurança da vacina por meio do acompanhamento de notificações de reações adversas por 15 dias (FUTURE I e FUTURE II) e 14 dias12 após a administração de qHPV e de placebo. O estudo FUTURE I13, realizado entre janeiro de 2002 e junho de 2006, avaliou a segurança da vacina em 5455 mulheres entre 16 e 24 anos. O estudo FUTURE II14, foi realizado entre junho de 2002 e junho de 2006 e envolveu 12.050 mulheres entre 15 e 26 anos. Já o estudo de Villa et al.12, publicado em 2005, estudou o perfil de segurança da qHPV em 1.158 mulheres entre 16 e 23 anos. Os resultados desses estudos estao resumidos nas Tabelas 1 e 2.

 

 

 

 

Estudos de coorte

Os estudos de coorte analisados abordam especificamente a prevalência de reações adversas autoimunes, neurológicas e tromboembólicas atribuídas à qHPV, por meio da análise de registros médicos. Foram registradas as ocorrências de diagnósticos desses tipos de distúrbios dentro do período de risco estabelecido de 180 dias após a administração de cada dose da vacina.

Estudo envolveu cerca de um milhao de meninas suecas e dinamarquesas entre 10 e 17 anos (300 mil receberam cerca de 700 mil doses), entre outubro de 2006 e dezembro de 2010. Os resultados mostraram que não houve diferença significativa na ocorrência de 53 doenças autoimunes, neurológicas e tromboembólicas entre o grupo vacinado e o não vacinado, à exceção da síndrome de Behçet, que apresentou risco relativo (RR), RR=3,37 [IC 95% (1,05;10,8)]; a doença de Raynaud, com RR=1,67 [IC 95% (1,14;2,44)]; e o diabetes mellitus tipo 1, com RR=1,29 [IC 95% (1,03;1,62)]15. Entretanto, não foram preenchidos critérios posteriormente estabelecidos a fim de avaliar a força estatística desses dados (ocorrência de 20 ou mais casos da doença, RR>3 e RR significativamente elevado nos dois países analisados separadamente).

Outro estudo, envolvendo cerca de 190 mil mulheres norte-americanas que receberam pelo menos uma dose da qHPV entre agosto de 2006 e fevereiro de 2008, mostrou que não houve risco relativo significativamente aumentado para a ocorrência de 12 doenças autoimunes entre as mulheres vacinadas e não vacinadas, exceto tireoidite de Hashimoto, com RR=1,29 [IC 95% (1,08;1,56)] e esclerose múltipla RR=1,37 [IC 95% (0,74;3,20)]. Porém, a análise aprofundada de cada um dos casos confirmados dessas duas doenças mostrou que as mulheres já apresentavam sintomas da doença antes da aplicação da vacina na maioria das vezes, o que diminui a possibilidade de o distúrbio ter se desenvolvido em razao da vacinação16.

Estudo caso-controle

Estudo realizado na França17 comparou o índice de vacinação pela qHPV entre meninas de 14 a 26 anos diagnosticadas com seis tipos de doenças autoimunes - púrpura trombocitopênica idiopática, doenças do tecido conjuntivo, esclerose múltipla, síndrome de Guillain-Barré, diabetes mellitus tipo 1 e doenças tireoidianas autoimunes - e controles individualmente selecionados para cada menina doente levando em consideração idade, local de origem e hábitos de vida. A seleção de casos baseou-se em meninas cujos primeiros sintomas tiveram início entre dezembro de 2006 (data em que a qHPV começou a ser comercializada na França) e abril de 2011, tendo sido selecionados, em média, quatro controles para cada caso.

No total, 211 casos confirmados de doença autoimune foram combinados com 875 controles. Comparando o índice de vacinação entre os dois grupos, a razao de chances medida pela Odds ratio (OR) foi de OD=0,9 [IC 95% (0,5;1,5)]. Analisando cada doença individualmente: OR=1,0 [IC 95% (0,4;2,6)] para púrpura trombocitopênica idiopática; OR=0,3 [IC 95% (0,1;0,9)] para esclerose múltipla; OR=0,8 [IC 95% (0,3;2,4)] para doenças do tecido conjuntivo; e OR=1,2 [IC 95% (0,4;3,6)] para diabetes mellitus tipo 1. Nenhum caso de exposição à qHPV foi encontrado em portadores de síndrome de Guillain-Barré e de doenças tireoidianas autoimunes.

 

DISCUSSÃO

A análise dos estudos realizados revela um perfil de segurança adequado da qHPV para a vacinação em massa, uma vez que não foram identificadas evidências científicas de risco significativamente elevado para a ocorrência de efeitos adversos graves na população vacinada em comparação com a não vacinada.

Os dois maiores ensaios clínicos realizados (FUTURE I e FUTURE II) mostram que não houve risco relativo significativamente elevado entre o grupo vacinado e o não vacinado (RR=1,07 e RR=0,83, respectivamente), sendo o intervalo de confiança bastante estreito [IC 95% (0,71;1,60)] e [IC 95% (0,56;1,24)], respectivamente, conferindo confiabilidade aos dados.

Os estudos de coorte abordam amostras grandes de estudos com mulheres, permitindo a análise de reações adversas graves pouco prevalentes na população; e os resultados demonstram que a vacina é segura também em relação a efeitos adversos graves raros. Apesar disso, possuem a limitação de levar em consideração apenas doenças diagnosticadas durante o período de risco definido, o que leva à possibilidade de vieses: chance de doenças diagnosticadas durante o período de risco terem começado a se manifestar antes da aplicação da vacina, levando à falsa interpretação de que a vacina possui participação na gênese da doença; e a possibilidade de doenças que começaram a se manifestar durante o período de risco terem sido diagnosticadas posteriormente, o que, por outro lado, subestima a influência da vacina no desenvolvimento da doença.

O estudo caso-controle mostrou que não há evidência significativa que possa indicar mais exposição à qHPV, ao comparar portadoras de seis doenças autoimunes e controles hígidos. Nesse caso, deve-se considerar a restrição em relação a doenças autoimunes, não se podendo fazer a generalização para reações adversas graves de outra natureza bem como para outras doenças autoimunes além das seis analisadas.

 

CONCLUSÃO

Estudos prévios mostram que a atual política brasileira de vacinação possui respaldo da literatura científica no que diz respeito à segurança da vacina qHPV. Apesar disso, por se tratar de uma vacina relativamente nova no mercado, estudos nacionais subsequentes são necessários para determinar a real incidência de efeitos adversos.

 

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