RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. 4 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140133

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Editorial

Trauma é uma doença

Trauma is a disease

Domingos André Fernandes Drumond

 

O trauma é a principal causa de morte nas primeiras quatro décadas de vida. Estatisticamente, para cada morte, há três sequelados definitivos. Também do ponto de vista estatístico, 350 brasileiros morrem a cada dia devido à doença trauma e outros 1.000 tornam-se sequelados permanentes. O trauma é doença conhecida de alguns e negligenciada por muitos. A cada ano morrem aproximadamente 50.000 brasileiros em acidentes de trânsito. Outros 56.000 são assassinados. Falta segurança e sobra violência em estradas e nos espaços urbanos. Essa violência pesa sobre a economia brasileira e ceifa a vida de milhares de jovens todos os anos.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o custo dos acidentes fatais no trânsito chega a 5% do Produto Interno Bruto (PIB). Vale dizer que os gastos hospitalares, a perda de produtividade relacionada a mortes e sequelas e os danos materiais subtraem significativa fatia da produção do país. Segundo a Organização Mundial da Saúde, estima-se que 7% do PIB sejam gastos com a violência urbana. Assim, essas duas causas custam 580 bilhões de reais/ano, o que equivale ao PIB do Chile! Em outras palavras, a violência no Brasil equivale a um Chile por ano. Realmente, a vida humana não tem preço, mas tem custo exorbitante. Considerando o trauma um subproduto da realidade social e cultural muito complexa, a sociedade brasileira vive em estado de alerta e medo diante dessa doença.

Apesar disso tudo, o trauma é negligenciado como doença em nosso país. Embora seja endêmica, mutilante e fatal, carece de financiamento, estudo e pesquisa. O número de escolas médicas contendo a disciplina "trauma" em sua grade curricular é desprezível. É difícil entender, por se tratar de endemia que deveria estar sob o domínio dos profissionais de saúde. A produção científica sobre a violência no país limita-se a contar o número de mortos, sem analisar o contexto social em que se dá a violência. Aos sobreviventes, resta pertencer ao grupo de sequelados e improdutivos. Os milhares de novos pacientes sequelados anuais passam a necessitar dos recursos da previdência social. De fato, o problema é, antes de tudo, social.

A doença trauma não escolhe idade. Embora alcance os jovens na fixa etária entre 15 e 35 anos, crianças e idosos no Brasil passaram a ocupar os leitos de terapia intensiva dos hospitais públicos padecendo do mesmo mal. O conhecimento das principais causas de morte violenta entre crianças e adultos jovens é essencial para a elaboração e implantação de medidas públicas de prevenção. O ensino de prevenção de acidentes e violência deveria ser incentivado e fazer parte do currículo escolar. É uma forma sustentável de mudança do comportamento social.

Um fato relativamente novo e importante diz respeito à população geriátrica. Ela está aumentando em todo o mundo, inclusive no Brasil. O idoso traumatizado passou a ser visto com mais frequência nas instituições de trauma. Em nosso meio o atropelamento do idoso por motocicleta já é ocorrência comum. Atualmente, discussões pertinentes a esse assunto fazem recomendações baseadas em evidências e preveem grande impacto sobre o uso de todos os cuidados médicos a essa faixa etária. Ademais, alertam sobre as mudanças comportamentais na prática médica. Além dos comentários sobre a formação médica na subespecialidade denominada Medicina de Emergência Geriátrica, há discussões sobre espaço físico específico dentro dos serviços de urgência, reservados exclusivamente aos idosos. Essa tendência denuncia a contemporaneidade desse assunto. De fato, é desalentador assistir ao idoso vítima de algum tipo de violência. Pela riqueza que a longevidade traduz, o idoso constitui o grupo que preenche todos os quesitos relacionados à assertiva de que a vida humana não tem preço.

Inegavelmente, estamos em "guerra civil". Além dos altos custos financeiros, o custo social é altíssimo e a sociedade não vai tolerar essa situação por muito mais tempo. Para a abordagem da doença trauma, a solução passa pelo aprimoramento do aparelho assistencial e dos seus profissionais, extinção da impunidade, cumprimento das leis e educação da sociedade, principalmente sobre a prevenção de acidentes. Se existe uma doença realmente evitável, ela se chama trauma. Por ser doença que sangra, mata ou deixa sequela, é preciso conhecer o seu custo social e saber que é realmente avassaladora, em todos os aspectos. Urge a realização de trabalho preventivo, orientado para a sociedade, a fim de que ela possa participar do controle desse mal. O médico tem a responsabilidade de tratar, mas também a de educar para prevenir.

 

TCBC - Dr. Domingos André Fernandes Drumond
Cirurgião Coordenador do Serviço de Cirurgia Geral e do Trauma do Hospital João XXIII;
Cirurgião Coordenador do Serviço de Cirurgia Geral I do Hospital Felício Rocho.