RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. 4 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140145

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Artigos de Revisão

Manifestações pulmonares decorrentes do uso de crack

Pulmonary manifestations arising from the use of crack

Raquel Augusta de Castro1; Raquel Neves Ruas1; Renan Costa Abreu1; Renata Bernardi Rocha1; Renata de Figueiredo Ferreira1; Renato Cançado Lasmar1; Sofia Andrade do Amaral1; Antônio José Daniel Xavier2

1. Acadêmicos do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico. Perito Judicial. Titular das Sociedades Brasileira de Medicina Legal e Perícia Médica e da Sociedade Brasileira de Neurologia. Professor da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Antônio José Daniel Xavier
E-mail: ajdxavier@gmail.com

Recebido em: 22/03/2013
Aprovado em: 07/08/2014

Instituição: Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais - FCMMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O crack é considerado a forma mais potente e viciante da cocaína, sendo o pulmão acometido logo após a sua inalação. Associa-se a diversas manifestações como barotrauma, exacerbação da asma brônquica, edema agudo pulmonar, hemorragia alveolar, bronquiolite obliterante com pneumonia organizada e vasculite. Suas manifestações clínicas agudas caracterizam a síndrome "pulmão do crack", com manifestações imaginológicas próprias.

Palavras-chave: Cocaína Crack; Transtornos Relacionados ao Uso de Cocaína; Medicina de Emergência; Pneumopatias.

 

INTRODUÇÃO

A fumaça do crack, após ser inalada, atinge rapidamente as membranas mucosas e o epitélio alveolar pulmonar devido à sua elevada volatilidade dos produtos da sua combustão. Devido à grande superfície pulmonar para absorção e difusão de substâncias, atinge rapidamente a circulação sanguínea, proporcionando efeito mais rápido do que a administração intravenosa de cocaína.

As manifestações pulmonares associadas ao uso do crack são múltiplas, caracterizadas principalmente por: barotrauma, exacerbação da asma brônquica, edema agudo pulmonar, hemorragia alveolar, bronquiolite obliterante com pneumonia organizada e vasculite.1-3 Suas manifestações clínicas agudas compreendem a síndrome "pulmão do crack", objetivo deste artigo.

 

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA INALAÇÃO DE CRACK

O termo pulmão do crack é utilizado para descrever uma síndrome pulmonar aguda que ocorre após a inalação do crack. As manifestações clínicas associadas decorrem de tosse seca, hemoptoica ou com escarro escuro, dor torácica, dispneia, sibilância, febre e infiltrado alveolar difuso.2 Os pulmões são os primeiros órgãos expostos aos produtos de combustão do crack, por isso a sintomatologia respiratória pode ocorrer de minutos até algumas horas após o seu uso.3

É provável que o crack induza vasoconstrição pulmonar, causando isquemia celular, além de provável efeito tóxico direto sobre o endotélio alveolocapilar e reação de hipersensibilidade aos seus componentes inalados.1 O mecanismo de tosse parece se associar à irritação provocada pela droga sobre os receptores subepiteliais. O escarro escuro parece decorrer da inalação de resíduos carbonáceos. A dor torácica, frequente uma hora após o uso da droga, exacerbada com a inspiração profunda, pode representar resposta sensorial local, a partir da irritação das vias aéreas. Outras causas de dor torácica que precisam ser investigadas entre fumantes de crack incluem a isquemia miocárdica aguda, pneumotórax e pneumomediastino.2 A hemoptise é outro achado frequente, presente em 6 a 26% dos usuários de crack.3 Pode resultar da rotura dos vasos sanguíneos presentes na submucosa traqueal brônquica ou originar-se da membrana alveolocapilar.

Imagens radiológicas dos pacientes acometidos podem evidenciar opacidades pulmonares intersticiais e alveolares difusas. Além disso, pequeno derrame pleural pode estar presente.2

A análise anatomopatológica de fragmentos pulmonares obtidos de pacientes inalantes de crack revela, em geral, lesão e hemorragia alveolares com infiltrado celular intersticial e alveolar rico em eosinófilos com deposição de IgE.4

 

BAROTRAUMA

A descrição de barotrauma relacionado ao uso de crack é recente, tendo sido mencionado previamente em usuário de maconha.1 Associam-se ao pneumopericárdio, enfisema subcutâneo, pneumotórax e o pneumomediastino, estes dois últimos comumente associados.

Está relacionado ao aumento acentuado do esforço inspiratório e manobra de Valsalva prolongada, geralmente realizada pelo usuário na tentativa de aumentar o efeito da droga. Parece também estar associada a tosse intensa, geralmente desencadeada pelo efeito direto da droga sobre a árvore traqueobrônquica. Esses mecanismos determinam o aumento súbito da pressão intra-brônquica e intra-alveolar, causando ruptura alveolar e subsequente penetração do ar no interstício pulmonar. O ar livre liberado pode dissecar o tecido conectivo peribrônquico, dentro do mediastino, pericárdio, cavidade pleural ou tecidos subcutâneos e determinar pneumomediastino, pneumopericárdio, pneumotórax ou enfisema subcutâneo, respectivamente.2

A sintomatologia associada é de dispneia e dor torácica. O diagnóstico é sugerido pela radiografia de tórax, que pode mostrar gás retroesternal, deslocamento lateral da pleura mediastinal e ar contornando o diafragma. Deve ser diferenciado da perfuração do esôfago e de tumores.4

 

EXACERBAÇÃO DA ASMA BRÔNQUICA

Existe intensa associação entre o fumo do crack e a exacerbação da asma brônquica. É possível que os mecanismos que intensificam o broncoespasmo em usuários de crack previamente asmáticos decorram de hiper-reatividade brônquica similar às outras causas não específicas, como: exposição ao ar frio, produtos químicos, estresse, exercícios físicos, reação imunológica com formação de IgE específica e liberação direta de substâncias broncoconstritoras sobre a árvore brônquica.2 O broncoespasmo em usuários com asma brônquica e com exposição constante ao crack pode se apresentar de forma irreversível e fatal.

 

EDEMA PULMONAR

A patogênese do edema pulmonar após uso de crack ainda é desconhecida, entretanto, parece de origem não cardiogênica.1 Sua patogênese principal decorre do aumento da permeabilidade capilar pulmonar e elevada concentração de proteínas no lavado broncoalveolar.

É provável que a fumaça de crack determine importante descarga adrenérgica, que causa lesão da estrutura microvascular, o que aumenta a pressão do retorno venoso e determina edema pulmonar. É possível também que a cocaína aumente a resistência vascular sistêmica, com falência ventricular esquerda e consequente edema alveolar.2 São descritos casos de edema pulmonar por inalação passiva de crack.

 

HEMORRAGIA ALVEOLAR

A hemorragia alveolar é frequentemente encontrada em estudos anatomopatológicos em usuários de crack, seja aguda ou crônica, sem hemoptise, e cursando de forma assintomática.1

A broncoscopia pode revelar sangue proveniente das aberturas dos brônquios e, a partir do lavado broncoalveolar, pode-se evidenciar hemossiderina nos macrófagos alveolares.

Acredita-se que a vasoconstrição pulmonar e o dano celular causados diretamente pela droga são os mecanismos que podem desencadear hemorragia.2,5-7

 

BRONQUIOLITE OBLITERANTE

A bronquiolite obliterante é, em geral, encontrada em usuários de crack com tosse não produtiva, febre e dispneia, sem resposta à antibioticoterapia e antitussígenos. Devem ser excluídas causas infecciosas e exposição a outros agentes inalatórios conhecidos. A administração de corticosteroides pode representar eficiente terapêutica.1

A bronquiolite obliterante comumente aparece associada à pneumonia, apresentando-se, nestes casos, infiltrado alveolar difuso à telerradiografia de tórax e microrganismos no lavado broncoalveolar.

É provável que essas manifestações clínicas decorram de efeito tóxico direto da droga sobre as vias respiratórias. Sua associação com a pneumonia pode ocorrer como resposta idiopática à cocaína e às substâncias utilizadas em sua adulteração ou a contaminantes encontrados nos objetos usados para sua inalação.2

 

ALVEOLITE, PNEUMONITE INTERSTICIAL E FIBROSE

O uso contínuo de cocaína por inalação pode levar à pneumonite e fibrose intersticial. Suas manifestações clínicas caracterizam-se pelo espessamento do septo alveolar e infiltrado de neutrófilos, linfócitos, macrófagos e eosinófilos, com fibrose intersticial evidenciado pela hiperplasia de pneumócitos tipo II.4,8,9

 

VASCULITE

A vasculite associada ao crack é necrotisante, com mecanismo ainda desconhecido, e associada à vasculite cerebral.4

 

PROPEDÊUTICA COMPLEMENTAR

A disponibilidade de exames complementares para a avaliação das manifestações clínicas da inalação do crack é necessária, em muitas situações, para determinar a intensidade, sistematização e complicações associadas.

 

TESTE DE FUNÇÃO PULMONAR

A função pulmonar de usuários de crack pode estar alterada,4 entretanto, na maioria das vezes em que é avaliada pela espirometria não se encontra alteração nos valores do VEF1 e CVF.

A capacidade de difusão do CO pode estar diminuída ou normal. Essa diminuição parece estar relacionada ao dano direto na membrana alveolocapilar, no leito vascular e doença intersticial devido ao uso concomitante de drogas intravenosas.4

 

TELERRADIOGRAFIA DE TÓRAX

Podem ser encontradas várias alterações à telerradiografia de tórax em usuários de crack. Os principais achados incluem pneumotórax, pneumomediastino, pneumopericárdio, hemopneumotórax, enfisema bolhoso e opacidades alveolares e intersticiais difusas.1 A Figura 1 mostra consolidações heterogêneas predominando em campos pulmonares superior e médio bilateralmente, uma delas projetada sobre o hilo direito simulando massa linfonodal.

 


Figura 1 - Radiografia do tórax. Fonte: Mançano A, Marchiori E, Zanetti G, Escuissato DL, Duarte BC, Apolinário LA. Complicações pulmonares após uso de crack: achados na tomografia computadorizada de alta resolução do tórax. J Bras Pneumol. 2008; 34(5):323-7. Reproduzido com permissão dos autores.

 

TOMOGRAFIA COMPUTADORIZADA DE TÓRAX (TC)

O edema (cardiogênico ou não cardiogênico) e a hemorragia alveolar podem se manifestar na TC por comprometimento pulmonar difuso ou multifocal, com opacidades em vidro fosco, consolidações, espessamento de septos interlobulares e derrame pleural. Podem também aparecer lesões escavadas decorrentes de infartos pulmonares.4 A Figura 2 mostra consolidações focais esparsas, com broncograma aéreo de permeio, observando-se opacidades em vidro fosco na periferia das consolidações, com pequeno nódulo no pulmão direito.

 


Figura 2 - Complicações pulmonares após uso de crack. Fonte: Mançano A, Marchiori E, Zanetti G, Escuissato DL, Duarte BC, Apolinário LA. Complicações pulmonares após uso de crack: achados na tomografia computadorizada de alta resolução do tórax. J Bras Pneumol. 2008; 34(5):323-7. Reproduzido com permissão dos autores.

 

CINTILOGRAFIA

Há casos relatados em que o rompimento da integridade da membrana alveolocapilar determina alterações à cintilografia.4,7 A lesão do epitélio pulmonar parece ser consequente ao aumento da permeabilidade pulmonar pela ação direta de vapores de crack e liberação de mediadores inflamatórios por células efetoras ou estruturais expostas ao fumo.

 

LAVADO BRONCOALVEOLAR E ESCARRO

A análise de lavado broncoalveolar entre os fumantes de cocaína revelou grande número de eosinófilos, cristais de Charcot-Leyden, populações maiores de macrófagos alveolares, muitas vezes contendo hemossiderina, e concentrações elevadas de proteínas. Esses resultados revelam a maior permeabilidade do epitélio alveolar e a provável resposta inflamatória intersticial alveolar desencadeada pela agressão pulmonar associada ao uso da droga.4,5,79

 

REFERÊNCIAS

1. Mançano A, Marchiori E, Zanetti G, Escuissato DL, Duarte BC, Apolinário LA. Complicações pulmonares após uso de crack: achados na tomografia computadorizada de alta resolução do tórax. J Bras Pneumol. 2008;34(5):323-7.

2. Costa MRSR, Alves RF. Manifestações pulmonares causadas pelo uso do crack. J Bras Pneumol. 1998;24(5):317-21.

3. Associação Brasileira de Psiquiatria. Abuso e dependência: crack. Rev Assoc Med Bras 2012;58(2):138-40. [Citado em 2012 nov. 04]. Disponível em:http://www.scielo.br/scielo.php?pid= S0104-42302012000200008&script=sci_arttext

4. Terra Filho M, Yen CC, Santos UP, Munoz DR. Pulmonary alterations in cocaine users. São Paulo Med J. 2004;122(1):26-31. [Citado em 2012 nov. 04] Disponível em:http://www.scielo.br/pdf/spmj/v122n1/a07v1221.pdf

5. Kleerup EC, Koyal SN, Marques-Magallanes JA, Goldman MD, Tashkin DP. Chronic and acute effects of "crack" cocaine on diffusing capacity, membrane diffusion, and pulmonary capillary blood volume in the lung. Chest. 2002;122(2):629-38.

6. Janjua TM, Bohan AE, Wesselius LJ. Increased lower respiratory tract iron concentrations in alkaloidal ("crack") cocaine users. Chest. 2001;119(2):422-7.

7. Baldwin GC, Choi R, Roth MD, Shay AH, Kleerup EC, Simmons MS, et al. Evidence of chronic damage to the pulmonary microcirculation in habitual users of alkaloidal ("crack") cocaine. Chest. 2002;121(4):1231-8.

8. Eurman DW, Potash HI, Eyler WR, Paganussi PJ, Beute GH. Chest pain and dyspnea related to crack cocaine smoking: value of chest radiography. Radiology. 1989;172(2):459-62.

9. Gotway MB, Marder SR, Hanks DK, Leung JW, Dawn SK, Gean AD, et al. Thoracic complications of illicit drug use: an organ system approach. Radiographics. 2002;22(Spec No):S119-35.