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CAPES/Qualis: B2
Terapia ocupacional em criança hospitalizada com desnutrição grave e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor: relato de caso
Occupational therapy in a child hospitalized with severe malnutrition and neuro psychomotor development delay: case report
Cibele de Fátima da Silva Fonseca1; Tábata de Aguiar Barcelos1; Laniele Cristina Muniz2; Zélia Coelho3
1. Acadêmica do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Terapeuta Ocupacional. Mestre em Neurociências. Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais -FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Terapeuta Ocupacional. Mestre. Professora Assistente do Departamento de Terapia Ocupacional da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Cibele de Fátima da Silva Fonseca
E-mail: cibelefsf@hotmail.com
Recebido em: 15/02/2012
Aprovado em: 17/05/2014
Instituição: Hospital Infantil João Paulo II Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A desnutrição, quando não diagnosticada e tratada em crianças em fase de desenvolvimento, pode causar múltipla sintomatologia e provocar danos irreversíveis ao desenvolvimento neuropsicomotor. A terapia ocupacional, na área infantil, apresenta ampla atuação em crianças com atraso no desenvolvimento por diferentes causas, incluindo a desnutrição. A equipe multidisciplinar, no contexto da internação hospitalar pediátrica, favorece a compreensão holística do processo de tratamento e funciona como importante instrumento para abordagem ao paciente e sua família. Este estudo descreve o papel da terapia ocupacional como elemento capaz de potencializar o processo de desenvolvimento neuropsicomotor, associado à abordagem multidisciplinar de uma criança com desnutrição grave em enfermaria pediátrica de hospital infantil público de urgência e emergência.
Palavras-chave: Terapia Ocupacional; Desnutrição; Desenvolvimento Infantil; Criança Hospitalizada.
INTRODUÇÃO
Apesar da redução da prevalência de desnutrição em crianças menores de cinco anos no Brasil, nas ultimas décadas, ainda constitui-se em problema de saúde pública brasileiro, presente principalmente na população economicamente desfavorecida. Crianças gravemente desnutridas chegam aos hospitais infantis com múltipla sintomatologia e risco de morte, demandando abordagem multidisciplinar.1 No Brasil, a taxa de mortalidade hospitalar devido a desnutrição é de 20%, muito acima do preconizado pela Organização Mundial de Saúde (5%), e acredita-se que está subestimada, pois em muitos atestados de óbito não é relatada como principal causa.2
O Ministério da Saúde preconiza 10 passos para o tratamento na desnutrição grave, que se caracteriza pela ingestão inadequada de nutrientes, proteínas e energia, causando danos a múltiplos órgãos. O nono passo denomina-se: "afetividade, estimulação, recreação e cuidado".2 Na intervenção terapêutica ocupacional com crianças hospitalizadas, o ambiente que estimula o brincar torna-se importante recurso na promoção de adaptação, aprendizado e desenvolvimento psicossocial infantil, e a participação da família no tratamento é importante para que os resultados terapêuticos sejam potencializados. Na perspectiva de cuidado centrado na família, programas de intervenção que combinam foco na criança e na família representam a "melhor prática", pois são mais prováveis de terem impacto positivo nos resultados do desenvolvimento infantil.3
Este relato descreve o resultado terapêutico obtido pela intervenção de equipe multidisciplinar na criança com desnutrição e atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, internada em enfermaria de hospital público infantil.
RELATO DE CASO
GRRSS, um ano e três meses de idade, foi admitido no hospital infantil com palidez, evacuação intestinal, uma vez por dia de fezes liquefeitas e vômitos esporádicos. O paciente nasceu a termo, parto natural, hospitalar, apgar 9/10, peso de 3,8 kg, sem intercorrências na gestação e no parto. Há dois meses esteve sob internação hospitalar com duração de sete dias, devido à palidez cutaneomucosa e anemia intensa e infecção do trato urinário.
Seu desenvolvimento foi normal até os seis meses de idade, quando iniciou importante regressão no desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM), ausência da vocalização de palavras ou sons (com intenção comunicativa) e perda da capacidade de engatinhar e ficar de pé com apoio. Espera-se que as crianças com 15 meses de idade exerçam marcha sem apoio, execução de gestos a pedido, emissão de uma palavra e manipulação funcional de objetos.4
A mãe relatou que, diferentemente dos outros filhos, não aceitou a transição da amamentação materna exclusiva para a complementar, após os seis meses de idade. Recusava todos os alimentos e as condições econômicas familiares impediram que tivesse outra dieta que não o leite materno complementado com biscoito e, no almoço, duas colheres forçadas de comida usual de toda a família, incapaz de suprir as suas necessidades nutricionais. O peso do paciente era de 7 kg.
O diagnóstico inicial constituiu-se de desnutrição grave e deficiência de vitamina B12.
A avaliação terapêutica ocupacional, realizada 10 dias após a sua internação, baseada na observação clínica de conjunto de comportamentos cognitivo, motor, emocional e relacional esperados para a faixa etária da criança e de entrevista semiestruturada com a família com o objetivo de coletar informações relevantes para o processo terapêutico,5 revelou criança emagrecida, chorosa, agitada e acompanhada pelo pai, incapaz de se acalentar na ausência da mãe. Ao ser estimulada a brincar, não demonstrou interesse por brinquedos, cantigas e jogos corporais. Observado comportamento independente para mudanças de posturas no leito, mas incapaz de permanecer de pé, mesmo sendo ajudada. Verificaram-se, ainda, ineficiência de força muscular para a sustentação dos membros inferiores e inabilidade importante para a marcha,6,7 com tremores e dificuldades para sustentar o próprio peso.
Apresentava deficiências importantes no desenvolvimento neuropsicomotor, com ausência de habilidades cognitivas, motoras e emocionais esperadas para sua idade. Identificados ainda sinais de disfunção sensorial, pelo choro constante e dependência do colo materno para se reorganizar, bem como a recusa total ao contato com outros estímulos do ambiente. Era nítida a defensividade tátil, proveniente de imaturidade sensorial e caracterizada pela esquiva a estímulos sensoriais desconfortáveis e estressantes.8,9
A internação hospitalar permitiu observar a dedicação materna à criança, inclusive em detrimento de seus outros filhos sob o cuidado paterno. Sabe-se que a atenção da mãe para com seus filhos de pequeno intervalo interpartal é dificultada,10 porém o comportamento em favorecimento à atenção dada ao paciente foi identificado como sinal de vínculo patológico, o qual se caracterizava pela ausência de delimitação entre os pares, fator causal de dependência e consequências ao desenvolvimento emocional do indivíduo.11
A partir da avaliação de terapeuta ocupacional, foram traçados os objetivos para a intervenção na enfermaria, com o intuito de: proporcionar respostas mais adequadas aos estímulos externos e aceitação de alimentos; promover estímulos para o desenvolvimento do brincar para favorecer o DNPM e social; e modular a intensidade do vínculo mãe-filho, com momentos de autoconhecimento e maturação psicossocial do indivíduo.
Durante os atendimentos iniciais de terapia ocupacional na enfermaria, o paciente mantinha comportamento irritado, com choro constante, apenas se acalentando no colo da mãe, a qual relatava apresentar baixo limiar de tolerância ao choro do filho e preferência por mantê-lo no colo durante boa parte do dia. O paciente não possuía vivência do brincar em casa e de acordo com o relato familiar havia ausência de brinquedos para ele e irmãos.
Os atendimentos foram compostos pela modulação e repetição de estímulos que acalmavam a criança, uma vez que ela possuía comportamento hiperresponsivo e necessitava de estímulos gradualmente aumentados de acordo com boas respostas adaptativas.8,9 Os principais estímulos utilizados nessa abordagem foram: massagem corporal manual (estímulo tátil profundo); estímulo vestibular com balanceio rítmico e lento no leito; confecção de brinquedo artesanal e familiarização da criança com esse objeto; e oferta de brinquedos variados durante os atendimentos.
Durante um mês de acompanhamento pelo setor de terapia ocupacional hospitalar foram realizadas 12 sessões dessa terapia, sendo que quatro foram realizadas em conjunto com a fonoaudióloga, cujo objetivo foi proporcionar estímulos capazes de organizar e acalmar o paciente para a obtenção de respostas mais adequadas à intervenção da fonoaudiologia. Esta se constituía em massagem na área intra e extraoral e o treino de alimentação, atividades visivelmente estressantes para o paciente.8
Apesar da mãe se mostrar no início resistente a seguir as orientações, aos poucos demonstrou modificação do comportamento e passou a alternar os cuidados do paciente com o pai, assim como reduzir a oferta de leite materno à criança. Nesse momento, o trabalho multidisciplinar, a partir das discussões do caso, atendimentos em conjunto e trocas de informações, foram decisivos para a abordagem familiar e resultaram em condutas e orientações similares junto aos pais, formando uma rede de apoio à família.12
Um dos desfechos observados a partir da mudança de comportamento da mãe foi a criança passar a aceitar os atendimentos no leito pela terapeuta ocupacional e outras abordagens clínicas, inclusive com a aceitação aos estímulos para a alimentação nos atendimentos de fonoaudiologia e na retirada da sonda nasogástrica com a alimentação totalmente via oral.
DISCUSSÃO
A miséria aumenta a vulnerabilidade infantil, tornando-se ameaça constante ao seu desenvolvimento e sendo causa de desnutrição, privação social e desvantagem educacional.10 Considera-se que a alimentação pobre em vitaminas e proteínas gera carência nutricional em período de desenvolvimento crítico do cérebro, configurando alterações morfológicas e funcionais no desenvolvimento do sistema nervoso central e ocasionando déficits neuropsicológicos, atrasos na aquisição de habilidades cognitivas, alterações nas medidas antropométricas e fraqueza muscular.6 Essa alimentação provavelmente estava contribuindo para o desenvolvimento de atraso no DNPM do paciente. Aos 15 meses de idade, a criança encontrava-se no período sensório motor, em que há grande necessidade de exploração, manipulação de objetos, de si mesmo e dos outros, assim como a busca por experiências sensoriais,13 o que era ausente na avaliação inicial do paciente.
A utilização da consultoria aos pais nos atendimentos de terapia ocupacional favoreceu a compreensão das necessidades de estímulos sensoriais e lúdicos na rotina da criança; da importância do brincar no contexto domiciliar; da necessidade da criança explorar mais o ambiente, fazer escolhas e reduzir a dependência do contato físico com a mãe. No decorrer dos atendimentos, foram surgindo brinquedos disponibilizados pela mãe na enfermaria e a criança passou a experimentar novas possibilidades de forma lúdica.
As intervenções realizadas na enfermaria hospitalar e a mudança de atitude materna proporcionaram ambiente estimulante, com oportunidades para progressão do desenvolvimento do paciente,14 principalmente com o brincar, o que proporciona treino de habilidades físicas, desenvolvimento social, emocional, intelectual, compreensão da cultura, flexibilidade do pensamento, adaptação e aprendizado. Dessa forma, o contexto, objetos (brinquedos) e a presença dos pais ou responsáveis tornam-se indispensáveis para proporcionar à criança experiências sensório-motoras variadas e a oportunidade de brincar,15-17 favorecendo sua evolução gradativa no contato com ambiente, objetos e pessoas.
Antes da alta hospitalar, o paciente apresentava comportamento mais calmo, com adequação de resposta aos estímulos ambientais e habilidades próximas das crianças da sua idade, como imitar ações, sorrir em resposta a terceiros, iniciar vocalização espontânea, buscar atenção para si e explorar objetos. Além disso, o gradativo ganho de peso favoreceu o aumento da força muscular e a aquisição da habilidade de passar da postura sentada para de pé com independência total, permanecendo nessa posição com o apoio dos membros superiores.
O paciente teve alta hospitalar e do serviço de Terapia Ocupacional após 30 dias. Os marcos do desenvolvimento infantil foram utilizados como medidas de desfecho para sua recuperação ao longo do tratamento até o momento da alta hospitalar.
CONCLUSÃO
Este relato discute o processo de intervenção da terapia ocupacional na abordagem da equipe multidisciplinar na enfermaria pediátrica em paciente desnutrido em situação de risco de atraso no desenvolvimento, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde,2 o que ainda não se observou em apresentações similares nacionais e internacionais.
A terapia ocupacional objetiva, nessa circunstância específica, a observação do desenvolvimento da criança, proporcionando intervenções que estimulem o desenvolvimento neuropsicomotor, orientações à família, vivências lúdicas, minimização e prevenção das alterações no desenvolvimento causadas pela internação.15,18
Dessa forma, a compreensão dos riscos que a desnutrição traz ao desenvolvimento neuropsicomotor, assim como a necessidade de abordagem holística que compreenda o desenvolvimento infantil dentro da enfermaria pediátrica, foi crucial para o processo de tratamento terapêutico ocupacional.
REFERÊNCIAS
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