RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 25. 1 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20150022

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Relato de Caso

Coexistência de ascite quilosa e trombose da veia porta: relato de caso e revisão da literatura

Coexistence of chylous ascites and thrombosis of the portal vein: case report and literature review

Lennon da Costa Santos1; Lucas Resende Lucinda1; Guilherme Canabrava Rodrigues Silva1; Anamaria Teixeira Gallo Rocha1; Rosangela Teixeira2; Luciana Diniz Silva3

1. Acadêmico(a) do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médica. Doutora em Infectologia e Medicina Tropical. Professora Associada IV do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médica. Doutora em Medicina - Gastroenterologia. Professora Adjunto III do Departamento de Clínica Médica da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Luciana Diniz Silva
E-mail: lucianadinizsilva@gmail.com

Recebido em: 15/10/2012
Aprovado em: 24/04/2014

Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Ascite quilosa (AQ) é condição rara, sendo caracterizada pelo acúmulo de linfa na cavidade abdominal. Os linfomas constituem-se, em adultos, em sua causa mais frequente; enquanto cirrose e/ou trombose da veia porta são especialmente raras. Este relato apresenta paciente com 36 anos de idade, masculino, com cirrose associada à hepatite C crônica e alcoolismo, emagrecimento de 15 kg e ascite leitosa, com predominância de triglicérides (1.500 mg/dL). Os métodos de imagem identificaram a concomitância de trombose de veia porta e cavernoma. A melhora clínica significativa foi obtida com a administração de nutrição parenteral total associada ao octreotide. A abstinência ao álcool não foi conseguida e houve reaparecimento da AQ e deterioração da condição clínica. O prognóstico da AQ em vigência de cirrose hepática é ruim. O tratamento deve ser individualizado de acordo com a condição clínica subjacente.

Palavras-chave: Ascite Quilosa; Veia Porta; Trombose Venosa; Cirrose Hepática; Alcoolismo; Hepatite C Crônica; Octreotida.

 

INTRODUÇÃO

Ascite quilosa (AQ) é condição rara, caracterizada pelo acúmulo de linfa na cavidade abdominal. Sua fisiopatologia é complexa e associa-se à desregulação do sistema linfático torácico ou abdominal,1,2 apesar de ser comumente atribuída à hipertensão portal relacionada à ruptura e/ou obstrução de ductos linfáticos.3-17 Concentrações elevadas de triglicérides no fluido peritoneal são responsáveis pelo seu aspecto leitoso.3

No Ocidente e no Oriente e em países em desenvolvimento associa-se a tumores malignos do abdome, tuberculose e filariose, respectivamente.4 Associa-se em 0,5 a 1,3%5-13 à cirrose e/ou trombose da veia porta.

Este relato descreve paciente com cirrose associada à hepatite C crônica e ao alcoolismo, com AQ relacionada à trombose da veia porta.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente de 36 anos de idade, masculino, admitido no Pronto-Atendimento do Hospital Risoleta Tolentino Neves com dor e distensão abdominais, edema de membros inferiores, emagrecimento de aproximadamente 15 kg e hemorragia digestiva. Em uso constante de álcool, cerca de 600 g por dia nos últimos oito anos e exposição ocupacional ao sangue e outras secreções humanas. Apresentava, à admissão, pressão arterial sistêmica de 90/60 mmHg, pulso radial de 92 bpm/min, mucosas hipocoradas, edema em membros inferiores, temperatura axilar de 38ºC, ascite, hipertrofia de parótidas, esplenomegalia, atrofia muscular e circulação colateral no abdome, murmúrio vesicular diminuído nas bases pulmonares; sem linfonodomegalias.

Os exames laboratoriais encontraram no sangue: hemoglobina, 9,2 g/dL; leucócitos, 3.200/^L (68,7% neutrófilos, 10,0% linfócitos), plaquetas, 301.000/|iL; Na+, 137 mmol/L; K+, 3,2 mmol/L; Mg2+, 1,7 mmol/L; ureia 41 mg/dL; creatinina, 1,07 mg/dL; glicemia, 91 mg/dL; amilase, 54 U/L; lipase 31 U/L; fosfatase alcalina, 108 U/L; gamaglutamil transferase, 178 U/L; alanina aminotransferase, 57 U/L; aspartato aminotransferase, 100 U/L; bilirrubina total, 1,0 mg/dL; desidrogenase láctica (LDH), 153 U/L; albumina, 2,4 g/L; globulina, 3,1 g/L; ferritina, 27,3 ng/dL; proteína C reativa, 10 mg/L; tempo de protrombina, 13,5 s; e a eletroforese de proteínas revelou gamopatia policlonal. A dosagem de β2-microglobulina foi de 1,75 mg/L. Não foram verificadas elevações da alfafetoproteína, CA-19-9 e CEA. As sorologias para o vírus da imunodeficência humana 1/2 e da hepatite B e VDRL estavam negativas. Foram positivos o anti-HAV IgG e Anti-HCV [5,0 (normal < 1,0)] e a reação de cadeia da polimerase (PCR) qualitativa confirmou a presença de RNA do vírus C da hepatite no plasma.

A paracentese drenou oito litros de líquido de aparência leitosa (Figura 1), que revelou em sua análise bioquímica: leucócitos, 25/mm3 (mononucleares, 100,0%); glicose, 115 mg/dL; amilase, 10,0 U/L; LDH, 79 U/L; triglicérides, 1.500 mg/dL; adenosina desaminase menor que 40 U/L; proteína total, 1,4 g/dL; albumina, 0,6 g/dL, gradiente albumina soroascite de 1,8; e pesquisa de bacilo álcool ácido resistente (BAAR) mediante coloração de Ziehl-Neelsen e cultura negativas, assim como a pesquisa para outras bactérias e fungos.

 


Figura 1 - Aspecto do fluido ascítico: Fluido ascítico
rico em triglicérides (1.500mg/dL) com aspecto semelhante
a leite.

 

Não foram identificadas alterações à radiografia de tórax ou ao ecocardiograma. A ressonância nuclear magnética (RNM) do abdome e o exame de ultrassonografia não revelaram malignidade ou adenomegalias, sendo observados sinais de cirrose hepática com hipertensão portal e trombose da veia porta e esplênica (Figura 2), cavernoma da veia porta, esplenomegalia e ascite acentuada. A endoscopia digestiva alta evidenciou varizes gastroesofágicas de fino calibre sem sinais de sangramento.

 


Figura 2 - Ressonância nuclear magnética do abdômen demonstrando cirrose hepática com sinais de hipertensão portal e trombose de veia porta.

 

Não foram observadas neoplasia e linfadenomegalia na tomografia computadorizada do tórax, entretanto, foi detectada imagem em caverna no segmento anterior do lobo esquerdo superior. A análise histológica de biópsia pulmonar orientada por fibrobroncoscopia não revelou sinais de malignidade ou tuberculose. A coloração de Ziehl-Neelsen e cultura nessa análise foram negativas. O teste tuberculínico e múltiplas análises de escarro estavam negativos. Baseado nesses achados, foi estabelecido o diagnóstico de ascite quilosa, provavelmente devido à hipertensão portal e trombose de veia porta.

O paciente foi tratado com diuréticos, dieta hipossódica e hipolipídica, com suplementação com triglicérides de cadeia média, entretanto, evoluiu com refratariedade e recorrência da AQ. Foram iniciados, após quatro semanas de seguimento, octreotide por via subcutânea (três vezes ao dia) e nutrição parenteral total. Evidenciou-se redução da distensão abdominal após seis semanas de terapia, com notável redução da sintomatologia nas três semanas seguintes. Recebeu alta do hospital com a proposta de abstinência do uso de álcool e mudança comportamental para condições mais adequadas e saudáveis de vida.

Não conseguiu abster-se do álcool e após um ano de acompanhamento ressurgiu a AQ e deterioração gradual das suas condições de saúde. As internações passaram a ser recorrentes devido à ascite, com paracenteses repetidas, com obtenção de fluido leitoso.

 

DISCUSSÃO

Neste artigo é descrita a evolução da AQ decorrente de cirrose e trombose de veia porta caracterizada por distensão abdominal dolorosa e progressiva no decorrer de três semanas, acompanhada de emagrecimento, edema, febre, hemorragia digestiva e anemia,; além de estigmas de doença hepática crônica ao exame físico. Foram identificados fatores de risco que predispõem à cirrose, como acidente ocupacional com sangue contaminado e consumo elevado de álcool.

Deve ser ressaltado o papel decisivo da paracentese no diagnóstico e acompanhamento do paciente. O aspecto leitoso do fluido ascítico, rico em triglicérides (1.500 mg/dL), contribuiu para o estabelecimento diagnóstico de AQ;1 além de outros exames laboratoriais e microbiológicos realizados no líquido drenado da cavidade peritoneal, que permitiram excluir outras doenças, especialmente peritonite tuberculosa.

A tuberculose continua sendo no Brasil causa importante de adoecimento e de morte.18 A prevalência de tuberculose é mais elevada em áreas mais pobres, particularmente associada em pacientes com consumo de álcool.19 Nesse caso, a tuberculose precisa ser excluída. A AQ tem sido relatada em inúmeras situações clínicas,1 especialmente em adultos, devido a: neoplasias, especialmente linfomas.20 A cirrose e/ou trombose de veia porta constituem causas muito raras.5-13 A transformação do aspecto amarelo e transparente do fluido ascítico em quiloso associa-se a pior prognóstico.6

O diagnóstico de AQ secundária à cirrose e à trombose da veia porta foi feito, nesse caso, apesar de rara, alicerçado na falta de evidências de malignidade e tuberculose. A ajuda de exames complementares, como da ressonância nuclear magnética do abdome, revelou cavernoma da veia porta, caracterizada por complexa rede local de veias colaterais.

É fundamental a presença de mecanismos compensatórios para manter a perfusão hepática a despeito de cirrose e trombose de veia porta.15 Dessa forma, foi constituída complexa rede de veias colaterais para ultrapassar o segmento trombosado.10 Como resultado, desenvolveu-se hipertensão portal, que provocou excesso de fluxo linfático e sua sobrecarga estimulou a ruptura de vasos linfáticos, estase e exsudação da linfa para o espaço peritoneal.4

A abordagem da AQ requer dieta hiperproteica e hipolipídica, o que reduz a produção e fluxo de linfa; e em cirróticos, dieta hipossódica e uso de diuréticos. Na ascite refratária, busca-se redução rápida do fluxo da linfa e nutrição parenteral total.4,9-10

A somatostatina e seus análogos têm sido efetivamente usados para tratamento de pacientes com AQ secundária à rara síndrome da unha amarela (Yellow nail syndrome) e ao escape linfático causado pelas cirurgias abdominais e torácicas.21-24 É menos frequente o relato de uso de octreotide para AQ em pacientes com cirrose.9-10,25 Nesse contexto, relaciona-se a possível melhora do quadro clínico ao efeito de redução rápida da pressão portal.

Isso posto, a conduta baseou-se na combinação de várias técnicas terapêuticas. Não existem diretrizes conclusivas para o acompanhamento de AQ. Vários estudos enfatizam a necessidade do ajuste individualizado do tratamento de acordo com a condição clínica subjacente.4 Na AQ causada por cirrose hepática, inúmeras evidências indicam que a redução da pressão portal é de fundamental importância. A administração de octreotide parece ser eficaz quando há coexistência de AQ e trombose de veia porta em pacientes cirróticos.9-10,25

 

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