RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. 3

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Relato de Caso

Anestesia caudal combinada à anestesia geral para cirurgia abdominal em paciente com Síndrome de Edwards: relato de caso

Combined caudal anesthesia and general anesthesia for abdominal surgery in patient with Edwards Syndrome: A case report

Magda Lourenço Fernandes1; Kleber Costa de Castro Pires2; Renato Santiago Gomez3

1. Médica Anestesiologista da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte e do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico Anestesiologista da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Professor Associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Renato Santiago Gomez
Depto de Cirurgia da Faculdade de Medicina - UFMG
Av. Alfredo Balena, 190, Sala 203, Santa Efigênia
CEP 30130-100 Belo Horizonte - MG, Brasil
Email: renatogomez2000@yahoo.com.br

Recebido em: 10/05/2010
Aprovado em: 16/02/2011

Instituição: Santa Casa de Misericóridia de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: a síndrome de Edwards, ou trissomia do 18, é uma anomalia cromossômica rara e frequentemente fatal. Os pacientes que sobrevivem têm múltiplas malformações, que resultam em risco anestésico aumentado, mesmo em cirurgias de menor porte.
OBJETIVO: discutir o uso da anestesia caudal, em associação com anestesia geral, como técnica anestésica e analgésica para cirurgia abdominal em criança portadora de síndrome de Edwards.
RELATO DO CASO: criança de 75 dias de idade, 2,9 kg, com diagnóstico de síndrome de Edwards e cardiopatia congênita, foi submetida à correção de refluxo gastroesofágico sob anestesia geral combinada ao bloqueio peridural caudal com bupivacaína 0,125%, morfina e clonidina. A anestesia geral foi mantida com sevoflurano, sem a necessidade do uso endovenoso de opioides. O paciente manteve estabilidade durante todo o procedimento cirúrgico. No final da cirurgia, o anestésico inalatório foi suspenso e a paciente foi extubada na sala de ciurgia após 17 minutos. O pós-operatório foi realizado em centro de terapia intensiva, sem intercorrências e sem a necessidade do uso suplementar de analgésicos.
CONCLUSÃO: a anestesia geral inalatória combinada com o bloqueio caudal mostrou-se técnica anestésica segura e satisfatória em crianças com síndrome de Edwards.

Palavras-chave: Aberrações Cromossômicas; Cromossomos Humanos Par 18; Trissomia; Cardiopatias Congênitas; Anestesia Caudal; Anestesia Geral; Morfina; Bupivacaína; Clonidina; Síndrome de Edwards.

 

INTRODUÇÃO

A síndrome de Edwards (SE) ou trissomia do 18 é o segundo distúrbio cromossômico mais comum, com incidência de cerca de 1:3.000 nascidos vivos.1,2 O prognóstico é ruim, com 90% de óbito antes de 12 meses de idade.2,3 Os pacientes que sobrevivem são dismórficos, com malformações múltiplas do sistema nervoso, respiratório, geniturinário, gastrointestinal e cardiovascular.2,3 Devido ao envolvimento de vários sistemas, esses pacientes frequentemente necessitam ser submetidos a procedimentos cirúrgicos diversos, sob cuidados anestésicos.4 No entanto, poucas publicações discutem o manuseio anestésico de pacientes com trissomia do 18.5-9 O objetivo do presente relato é discutir a utilização do bloqueio caudal, em associação com anestesia inalatória, para correção de refluxo gastroesofágico (RGE) em criança portadora de SE.

 

RELATO DO CASO

Paciente feminino, ex-prematuro, 75 dias de vida, peso de 2,9 kg, evoluindo com RGE e pneumonias de repetição, sendo indicada correção cirúrgica. Apresentava alterações dismórficas e diagnóstico de SE confirmado pelo cariótipo sem ter sido submetida a algum procedimento cirúrgico prévio. História de retardo mental, atraso de crescimento, vários episódios de infecção respiratória, dispneia e cianose após o choro. A ausculta cardíaca observava-se sopro holos-sistólico grau III/V. Estava em uso de espironolactona, captopril, digoxina e furosemida. O ecocardiograma mostrou pequeno defeito do septo atrial tipo óstio secundum, grande defeito do septo ventricular, dilatação do tronco da artéria pulmonar e aumento do fluxo sanguíneo pulmonar ao doppler. A radiografia do tórax revelava silhueta cardíaca aumentada, com campos pulmonares normais. A avaliação laboratorial pré-operatória evidenciou hemoglobina de 9,8 g/dL, hematócrito de 30% e plaquetas de 256.000/mm3. Os valores dos eletrólitos, ureia, creatinina, coagulograma e testes de função hepática estavam dentro dos limites da normalidade.

Admitida no Centro Cirúrgico em jejum e sem nenhuma medicação pré-anestésica. Foi monitorizada com eletrocardiografia, oximetria de pulso, capnografia, pressão arterial não invasiva, análise de gases anestésicos e índice biespectral (monitor BIS, da Aspect Medical System, Newton, MA, E.U.A.). A anestesia geral foi induzida com sevoflurano em concentrações decrescentes (6 a 4%), em oxigênio a 100%. Devido à impossibilidade de obtenção de acesso periférico, foi puncionada a veia femoral direita. Atracúrio (0,4 mg/kg) foi utilizado para facilitar a intubação traqueal, que foi realizada sem intercorrências. Em seguida, posicionou-se a paciente em decúbito lateral esquerdo e a punção caudal foi realizada sob condições estéreis, utilizando-se cateter venoso 22G. Após atravessar o ligamento sacrococcígeo, retirou-se o estilete interno e a cânula plástica foi introduzida aproximadamente 2 mm. Após aspiração negativa para sangue ou liquor, 4 mL da solução anestésica (4 mg de bupivacaína a 0,125% com adrenalina 1:800.000, 3 µg de clonidina e 60 µg de morfina) foram administrados no espaço peridural caudal. A anestesia geral foi mantida com oxigênio a 50% e sevoflurano em concentrações expiradas de 1,5 a 2% e a ventilação mecânica em modo controlado. Foram administrados 180 mL de Ringer lactato com glicose a 2%, por via intravenosa, durante a anestesia. A cirurgia durou 75 minutos e transcorreu sem intercorrências e sem alterações importantes dos parâmetros hemodinâmicos e respiratórios. Ao término do procedimento cirúrgico o agente inalatório foi descontinuado e, após 17 minutos, a criança foi extubada na sala cirúrgica. A paciente foi entao encaminhada à unidade de terapia intensiva, onde o pós-operatório transcorreu sem intercorrências e sem a necessidade do uso de analgésicos. Recebeu alta hospitalar no quinto dia de pós-operatório.

 

DISCUSSÃO

A SE constitui-se em anomalia cromossômica rara e frequentemente fatal. Devido à alta associação com malformações cardíacas (95%), o prognóstico é ruim, com cerca de 90% de óbitos antes dos 12 meses de idade.1-4 Recém-nascidos e lactentes com cardiopatias congênitas apresentam risco significativamente aumentado quando submetidos a cirurgias de maior ou menor porte.10 Portanto, a escolha dos agentes e da técnica anestésica são essenciais no cuidado anestésico a pacientes com cardiopatias.11

Os anestésicos voláteis são frequentemente utilizados durante a anestesia em pacientes cardiopatas. Foi demonstrado que tanto o sevoflurano e isoflurano, em concentração alveolar mínima (CAM), mantiveram o débito cardíaco com poucas alterações na contratilidade miocárdica em crianças com cardiopatias congênitas.12,13 Além disso, quando utilizados nessas doses, esses agentes não alteram a relação de fluxo sanguíneo pulmonar e sistêmico em crianças com shunts intracardíacos.14 Assim, no presente relato, o uso do sevoflurano como único anestésico geral, em concentrações próximas de 1 CAM, permitiu adequada estabilidade hemodinâmica da paciente.

Existem relatos sobre o uso de máscara laríngea em caso de dificuldade de intubação do paciente com SE.6 Entretanto, no caso relatado, a criança apresentava RGE, com risco aumentado de aspiração pulmonar, motivo pelo qual se optou pela intubação traqueal.

A anestesia caudal epidural é dos bloqueios regionais mais comumente realizados em anestesia pediátrica. É técnica de fácil execução, confiável e segura em crianças menores. Geralmente é utilizada em associação com anestesia geral, para promover analgesia intra e pós-operatória em pacientes submetidos a procedimentos abdominais e dos membros inferiores.15 A bupivacaína é amplamente utilizada para analgesia caudal em crianças devido à longa duração de ação e menor incidência de bloqueio motor em comparação com a lidocaína. Com este objetivo, a concentração ideal é de 0,125 a 0,175%, a qual proporciona analgesia pós-operatória de até oito horas, equivalente à bupivacaína 0,25%.16 Foi demonstrado que a morfina 0,033 mg/kg promoveu duração média de analgesia de 10 ± 3,3 horas para procedimentos cirúrgicos abaixo da diafragma.17 Com o objetivo de diminuir os seus efeitos colaterais, no presente caso utilizou-se baixa dose de morfina (0,02 mg/kg), que propiciou boa analgesia no pós-operatório. De fato, o efeito sinérgico da analgesia com opioides e anestésicos locais no espaço epidural é amplamente reconhecido e a combinação desses fármacos aumenta a qualidade e a duração da analgesia pós-operatória.15

A clonidina (1,0 µg/kg) também foi associada à anestesia epidural caudal. Os estudos têm consistentemente demonstrado aumento da duração de ação da bupivacaína e da analgesia pós-operatória, com menos necessidade de analgésicos durante as primeiras 24 horas, quando se adiciona clonidina caudal.15,18 Além disso, a absorção sistêmica de clonidina pode reduzir o uso de agentes voláteis e opioides, sem interferir na estabilidade hemodinâmica, como observado no presente relato.19 No entanto, existe certa preocupação quanto ao uso de clonidina em recém-nascidos. De fato, um relato de caso adverte para o risco de apneia pós-operatória em um recém-nascido prematuro que recebeu clonidina caudal (1,25 µg/kg) para correção de hérnia inguinal.20 Em contrapartida, em dois relatos o uso de anestesia caudal com bupivacaína a 0,375% e clonidina (1 µg/kg) possibilitou a colocação de cateter venoso central sem a necessidade de intubação traqueal, em recém-nascidos prematuros com peso inferior a 600 gramas.21 Embora não se tenha observado essa complicação, o acompanhamento e a monitorização no pós-operatório são imperativos nesses pacientes.

 

CONCLUSÃO

A associação de anestesia geral com sevoflurano e anestesia caudal com bupivacaína, clonidina e morfina permitiu a realização segura e adequada de procedimento abdominal superior em criança com SE. A presente técnica pode ser alternativa no manuseio anestésico de crianças com essa rara síndrome. Entretanto, ressalta-se a necessidade da realização de estudos aleatórios e controlados avaliando a analgesia pós-operatória em pacientes pediátricos submetidos à anestesia caudal com a associação de morfina, clonidina e anestésico local.

 

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