RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 25. 2 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20150044

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Artigos de Revisão

O paciente usuário de crack - diagnóstico e terapêutica na urgência

The crack user patient - diagnosis and therapy in urgent care

Lucas Roquim e Silva1; Lucas Silva Fernandino2; Paula Aparecida Gomes3; Antônio José Daniel Xavier4

1. Médico. Residente de Neurologia do Hospital Odilon Behrens. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Educador Físico. Especialista em Fisiologia do Exercício. Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Perito Médica Judicial. Psiquiatra Forense. Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerias - FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Perito Médico Judicial. Professor da Faculdade de Medicina da PUC/MG e da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Antônio José Daniel Xavier
E-mail: ajdxavier@gmail.com

Recebido em: 04/02/2013
Aprovado em: 13/08/2013

Instituição: Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais - FCMMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O crack é uma substância de efeitos extremamente danosos e se associa a riscos de morte súbita. O Brasil é dos poucos países no mundo onde o consumo de cocaína e crack está aumentando. Cerca de 1% da população brasileira faz algum consumo frequente de cocaína e aparentemente metade desse consumo é na forma de crack, o que corresponde a 600 mil usuários; e o atendimento de emergência dessas pessoas deve aumentar nos próximos anos. A intoxicação aguda por cocaína se caracteriza, fundamentalmente, por manifestações de hiperatividade noradrenérgica e dopaminérgica, que afeta vários órgãos e sistemas. O uso de drogas é fator agravante em qualquer paciente admitido em pronto-atendimento. A relação médico-paciente com usuários de drogas como crack é, usualmente, de difícil realização. O objetivo do tratamento da intoxicação aguda pelo crack baseia-se em suporte geral, abstinência e prevenção de recaídas; e deve ser instituído de forma adequada por profissional habilitado, para evitar aumento ainda maior da morbimortalidade decorrente do seu uso.

Palavras-chave: Cocaína; Cocaína Crack; Transtornos Relacionados ao Uso de Cocaína; Medicina de Emergência; Terapêutica.

 

INTRODUÇÃO

As Nações Unidas, em relatório recente, mostrou que o Brasil é dos poucos países no mundo onde o consumo de cocaína e crack está aumentando.1 A explicação envolve razões geográficas, uma vez que o Brasil faz fronteira com regiões produtoras como a Bolívia, o que facilita a sua distribuição.1 O crack possui efeitos extremamente danosos e encontra-se associado a desfechos muito desfavoráveis, como violência,2 criminalidade,2,3 homicídio,4 problemas de saúde5-8, aumento na mortalidade3, alterações neuropsicológicas9, superdosagem10 e danos psicossociais intensos nem sempre passíveis de documentação.

A Organização Mundial da Saúde estima que o uso de cocaína é feito por mais de 14 milhões de pessoas no mundo.11 Cerca de 1% da população brasileira faz algum consumo frequente de cocaína e aparentemente metade desse consumo é na forma de crack, o que corresponde a 600 mil usuários de crack, conforme estimativas do Ministério da Saúde.1

Estudo da UNIFESP que acompanha há mais de 15 anos os primeiros 131 usuários de crack identificados no começo dos anos 1990 na cidade de São Paulo mostrou que cerca de 30% deles morreram nos primeiros cinco anos de consumo da droga1; a maior parte por homicídio. Se esse estudo puder servir para avaliar o que acontece no Brasil como um todo, haverá a morte de pelo menos 180 mil usuários de crack nos próximos anos.1

A partir desses dados, observa-se que a demanda por tratamento de emergência em usuários de crack vem aumentando e continuará com essa tendência. Isso resulta em aumento da frequência de atendimentos a pacientes com intoxicação aguda e com complicações frequentes do uso desse tipo de droga. Este artigo propõe a revisão e atualização do diagnóstico e do tratamento clínico a esse tipo de paciente, além de abordar complicações passíveis de ocorrer durante a intoxicação aguda por crack.

 

MÉTODOS

Esta revisão bibliográfica foi dividida em duas etapas: a primeira consistiu na pesquisa nos sites MedLine, LILACS, SciELo e PubMED. Os descritores utilizados foram: crack AND/OR cocaína AND/OR tratamento AND/OR terapêutica AND/OR urgência AND/OR emergência AND/OR protocolo. A seleção foi feita por meio das palavras e informações de interesse encontradas nos títulos e nos resumos dos artigos.

A segunda etapa foi a busca por informações relevantes em material produzido pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Federal de Medicina e também em artigos publicados no UpToDate.com®.

São apresentadas as informações relacionadas à terapêutica consideradas mais atualizadas.

 

RESULTADOS

Farmacocinética e farmacodinâmica

O crack deriva da cocaína, sendo assim nomeada devido ao som que emite quando consumida, e também chamada de cocaína em pedra.11,12 O uso de cocaína no Brasil é predominantemente pela via intranasal ("cheira-se"), enquanto o crack é fumado, mas também pode ser usado por via intravenosa e oral (infrequente).13

O crack difunde-se muito rapidamente dos pulmões ao cérebro. Seus efeitos são imediatos (cinco segundos), muito intensos (diz-se que são 10 vezes mais intensos que a cocaína intravenosa) e muito fugazes (cinco minutos). Devido a essas características (Tabela 1), o uso passa a ser compulsivo e muito frequente.13

 

 

A biodisponibilidade do crack varia entre 10 e 20%. O pico plasmático da cocaína fumada (crack) ocorre aos 10 segundos após o uso, entretanto, a variabilidade individual é grande.13 O volume de distribuição varia entre 1,5 e 2 L/kg. A cocaína é rapidamente metabolizada, geralmente por hidrólise enzimática, para produzir a benzoilecgoina, ecgoina-metil-éster e posteriormente ecgoina; sendo 1 a 5% excretados na urina sem alterações. A hidrólise à benzoilecgoina acontece com 45% da dose administrada, porcentagem similar à hidrólise à ecgoina-metil-éster. Nenhum desses dois metabólitos possui atividade biológica significativa em humanos.

A norcocaína nitróxido e outros radicais livres são metabólitos potencialmente ativos, mas produzidos em pequenas quantidades, em geral clinicamente, não farmacologicamente significativas.13 A benzoilecgoina pode ser detectada em urina três a quatro dias depois do último consumo e a concentração encontrada dependerá da quantidade de cocaína consumida e da sensibilidade do teste usado. A via de administração também influencia na quantidade de benzoilecgoina no plasma que se eliminará através da urina. Quando se fuma a cocaína, embora os efeitos produzidos sejam muito mais intensos e precoces, a quantidade absorvida é menor e, por isso, a concentração de benzoilecgoina plasmática é também menor.13

O consumo de álcool pelos dependentes de cocaína é muito frequente, sendo observada em até 99% dos usuários,13 razão do consumo simultâneo de ambas as drogas ainda não completamente entendido. A potencialização da euforia pela ingestão simultânea de álcool pode ser a base dessa associação, embora seja relatada diminuição dos efeitos indesejáveis, como enxaqueca induzida pela cocaína. Essa combinação supõe risco e aumento da morbimortalidade associada à cocaína. Dados epidemiológicos indicam que a prática dessa associação aumenta até 18 vezes o risco de morte súbita por cocaína.13 O etanol, em estudos in vitro, inibe a atividade da metilesterase, pela diminuição da hidrólise da benzoilecgoina. Em presença do etanol, a cocaína é transesterificada por esterases hepáticas à etilcocaína ou ao cocaetileno e aumenta a N-desmetilação à norcocaína. O metabólito cocaetileno possui atividade farmacológica e tóxica (cardiológica e hepática).13

A cocaína comporta-se como uma amina simpaticomimética de ação indireta. É capaz de mimetizar as ações das catecolaminas sem atuar diretamente sobre os receptores adrenérgicos ou dopaminérgicos e somente aumenta a disponibilidade do neurotransmissor nas fendas sinápticas. A cocaína inibe os processos de recaptação tipo 1 (recaptação de noradranalina e dopamina pela membrana pré-sináptica).13 A partir do mecanismo de ação do crack podem-se compreender os seus efeitos no organismo, prever sinais e sintomas para se fazer o diagnóstico da intoxicação aguda e antever possíveis complicações.

Critérios diagnósticos

Os critérios diagnósticos de intoxicação aguda por cocaína foram estabelecidos pelo Diagnostic and Statistical Classification of Mental Disorders (DSM-IV) (Tabela 2).

 

 

Os efeitos esperados para a cocaína fumada (crack) são mais fugazes do que seu uso intranasal ("cheirada"). Por isso, possivelmente em usuários de crack se observa, mais frequentemente, a sintomatologia de sua abstinência (Tabela 3).

 

 

Toxicidade aguda

A intoxicação aguda por cocaína caracteriza-se por manifestações fundamentalmente de hiperatividade noradrenérgica e dopaminérgica, que afetam vários órgãos e sistemas.13

As manifestações mais comuns separadas por sistemas orgânicos são as seguintes:

aparelho cardiovascular - palpitações, bradicardia ou taquicardia (mais comum), arritmias (fibrilação atrial é a mais frequente; taquicardia ventricular e fibrilação ventricular são as causas mais comuns de morte súbita por cocaína), hipertensão arterial sistêmica e infarto agudo do miocárdio. O consumo simultâneo de cocaína e álcool produz o cocaetileno, que é metabólito ativo e de mais toxicidade cardíaca que a cocaína. Seu potencial arritmogênico e de indução de morte súbita é superior ao da cocaína.13

aparelho respiratório - taquipneia e respiração irregular. O crack é o responsável pela maior parte das complicações agudas relacionadas ao pulmão e vias aéreas, tais como: edema agudo de pulmão (geralmente de etiologia não cardiogênica, por aumento da permeabilidade alveolocapilar); exacerbação de asma brônquica; pneumotórax; pneumomediastino e pneumopericárdio.13 O "pulmão de crack", de possível etiologia isquêmica, é uma síndrome de alveolite hemorrágica que se apresenta com tosse, dispneia e dor torácica inespecífica. Pode associar-se também a hipóxia, tosse produtiva com hemoptoico e, às vezes, hemoptise franca, febre, infiltrados focais e broncoespasmo.13,14

aparelho digestivo - anorexia, náusea, vômitos, diarreia e as mais graves, úlceras gastroduodenais com hemorragia e perfuração, colite isquêmica.13

hepáticas - a cocaína possui hepatotoxicidade específica, sendo metabolizada fundamentalmente pelas colinesterases plasmáticas e hepáticas, mas pequena proporção da dose administrada segue a via oxidativa microssômica hepática que leva ao surgimento de metabólitos reativos com capacidade de serem radicais livres. O cocaetileno, metabólito misto de cocaína e álcool, tem também essa propriedade. As lesões hepáticas agudas tóxicas por cocaína são do tipo citolíticas, o que leva ao aumento de enzimas hepáticas plasmáticas.13

metabolismo - hipertermia maligna sugere desajuste no controle dopaminérgico da temperatura corporal. Podem surgir hipertermia, rigidez e agitação. A rabdomiólise pode surgir após administração intravenosa ou por uso de crack; mesmo que rara, é muito grave.13

olhos - midríase, vasoconstrição conjuntival, nistagmo vertical13

neurológicas - cefaleia (a complicação mais frequente); acidente vascular encefálico (em alguns centros é a causa mais frequente de acidente vascular encefálico em jovens); hemorragia cerebral (geralmente subaracnóidea); convulsões (do tipo tônico-clônicas generalizadas). O crack é o que mais se associa a essas complicações agudas.13

psicológicas - a ansiedade surge à medida que desaparecem a sintomatologia euforizante, confusão mental, irritabilidade, alucinações visuais e táteis, alterações da percepção, reações paranoides e convulsões tônico-clônicas. O uso do crack pode prejudicar as habilidades cognitivas envolvidas especialmente com a função executiva e a atenção. Esse comprometimento altera a capacidade de solução de problemas, a flexibilidade mental e a velocidade de processamento de informações.15 Pode causar danos às funções mentais, com prejuízos à memória, atenção e concentração. Em muitos casos, dependendo da predisposição genética, ocorre o desenvolvimento de sintomatologia psiquiátrica, psicótica e ansiosa, como depressão, delírios e ataques de pânico; e pode provocar transtorno bipolar, resultado do mecanismo de rápida e intensa euforia, logo após o seu uso, que logo é substituída pela depressão, quando o usuário está em abstinência.15

Tratamento da intoxicação aguda

Aspectos clínicos não farmacológicos

É extremamente difícil estabelecer relação médico-paciente com usuários de drogas como crack a ponto de obter informações confiáveis em relação ao padrão de uso e de analisar adequadamente o impacto da droga na sua vida, seja pela circunstância da consulta (de urgência) ou pelo estado mental do paciente (agitado, agressivo, hostil).

O tratamento deve ser interdisciplinar, dirigido às diversas áreas afetadas: física, psicológica, social, legais e qualidade de vida.16 O objetivo do tratamento da intoxicação aguda é dar suporte geral, iniciar a abstinência e prevenir as recaídas.16 Deve ser iniciado o ingresso do paciente na rede de tratamento da dependência. Há vários pontos importantes na abordagem inicial do paciente com intoxicação por crack (Tabela 4)12 que ajudam no sucesso terapêutico da intoxicação e da dependência.

 

 

Aspectos clínico-farmacológicos

Condutas geral e específica, critérios de alta hospitalar.

Conduta geral

O atendimento do paciente intoxicado segue etapas que nem sempre são sequenciais. Apesar de bem delimitadas, sua execução apresenta, até o momento, vários aspectos controversos.17

avaliação clínica inicial - o objetivo é verificar se o paciente apresenta algum distúrbio que represente risco iminente de morte. Para tanto, é indispensável exame físico rápido e rigoroso para avaliar as seguintes situações:17

condições respiratórias - distúrbios com risco de morte e que exigem atenção imediata, o que inclui a obstrução das vias aéreas, apneia, bradi ou taquipneia intensas, edema pulmonar e insuficiência respiratória aguda;

condições circulatórias - alterações significativas de pressão arterial sistêmica ou da frequência cardíaca, disritmias ventriculares, insuficiência cardíaca congestiva, estado de choque e parada cardíaca;

condições neurológicas - convulsões, pressão intracraniana aumentada, coma, pupilas fixas e dilatadas e agitação psicomotora intensa.

Quando as condições permitirem, a avaliação poderá ser ampliada incluindo-se outros dados, tais como pele e anexos, temperatura, estado de hidratação, etc.

estabilização - consiste na realização de medidas visando a corrigir os distúrbios que representam risco iminente de morte e a manter o paciente em condições adequadas até o estabelecimento do diagnóstico definitivo e consequente tratamento específico.

A partir desse ponto, espera-se que já se tenha o diagnóstico ou forte suspeita de intoxicação por cocaína, com base em dados de anamnese, exame físico ou relatos de acompanhantes ou socorristas.

Conduta específica

vias aéreas e respiração14 - oxigênio suplementar deve ser administrado caso necessário (avaliação médica subjetiva do esforço respiratório ou se saturação capilar de oxigênio for inferior a 95%).

Não deve ser administrada succinilcolina, se for necessária a sequência rápida de intubação. A colinesterase plasmática metaboliza succinilcolina e cocaína. Por isso, a coadministração pode prolongar a meia-vida de ambas as drogas, aumentando a meia-vida da cocaína, o tempo dos efeitos da intoxicação e mais duração do bloqueio neuromuscular. A succinilcolina pode agravar a hipercalemia e causar arritmias que ameaçam a vida diante de rabdomiólise e hipertermia. Deve ser usado um bloqueador neuromuscular não despolarizante, como o rocurônio, caso o bloqueio seja indicado. Os agentes indutores anestésicos que são aceitos para uso em pacientes intoxicados com cocaína são: benzodiazepínicos, etomidato e propofol.

complicações cardiovasculares14 - a estimulação cardíaca pela cocaína é mediada por via central, ou seja, via sistema nervoso simpático, portanto, a sedação com benzodiazepínico com dosagem apropriada e via de administração adequada é, geralmente, suficiente para aliviar a sintomatologia cardiovascular. O diazepam deve ser administrado na dose inicial de 10 mg endovenoso, seguindo-se 5 a 10 mg endovenoso a cada três a cinco minutos. Pode ser administrada a fentolamina, um antagonista alfa-adrenérgico, a fim de contrapor os efeitos causados pela liberação de noradrenalina, quando houver hipertensão arterial sistêmica sintomática e refratária induzida por cocaína. Deve ser administrada em bolus endovenoso. A dose usual é de 5 a 10 mg a cada cinco a 15 minutos, conforme resposta do paciente.

Os betabloqueadores não devem ser usados no tratamento de complicações cardiovasculares induzidas por cocaína, pois podem provocar desvio e concentração da estimulação adrenérgica para os receptores alfa e causar vasoconstrição coronária e isquemia em leitos vasculares distais de diversos órgãos. Em raros casos em que os betabloqueadores necessitam ser usados, sua administração deve ser precedida pela infusão de fentolamina, para prevenir a estimulação alfa excessiva.

As emergências hipertensivas podem ser vistas nos casos de intoxicação por cocaína e a sua abordagem é a mesma de qualquer crise hipertensiva, isto é, deve-se reduzir a pressão diastólica sistêmica para 100 a 105 mmHg, em duas a seis horas após o inicio do tratamento, sendo que a redução inicial da pressão arterial sistêmica média não deve superar 25% da pressão arterial sistêmica anterior ao tratamento.

A hipertensão arterial sistêmica induzida por cocaína não deve ser prontamente tratada, uma vez que se resolve após a metabolização da cocaína - o que acontece nas primeiras horas de internação. O tratamento com benzodiazepínicos e fentolamina, como descrito, na maioria dos casos é suficiente.

A toxicidade por cocaína, em geral, causa hipertensão arterial sistêmica, entretanto, a intoxicação por grande dose de cocaína pode resultar em hipotensão arterial sistêmica, devido ao bloqueio dos canais de sódio transmembrana. A hipotensão deve ser tratada com infusão de NaCl 0,9% endovenosa. Agentes vasoconstritores diretos, como norepinefrina e fenilefrina, podem ser usados titulando a dosagem conforme o efeito se a hipotensão arterial sistêmica persistir após a infusão rápida de 2 a 3 L de NaCl 0,9%. Deve ser realizado, nesses casos, eletrocardiograma e, diante de alargamento do complexo QRS (sinal de bloqueio dos canais de sódio), deve ser administrado bicarbonato de sódio hipertônico, 1 a 2 mEq/kg em bolus por acesso venoso calibroso. A resposta ao tratamento deve ser feita com novo eletrocardiograma após a infusão de bicarbonato de sódio. Espera-se que haja estreitamento ou normalização do QRS.

agitação psicomotora14 - pacientes agitados são sedados conforme a necessidade com benzodiazepínicos, após confirmação de que não estão hipoglicêmicos ou hipóxicos. Sugere-se a administração de diazepam na dose inicial de 10 mg endovenoso, seguindo-se 5 a 10 mg endovenoso a cada três a cinco minutos até a agitação ser controlada. Deve-se monitorar o paciente para depressão respiratória e hipotensão. Pode ser usado o lorazepam intramuscular (não disponível no Brasil) se o acesso venoso estiver indisponível, mas o pico de efeito é retardado (10 a 20 minutos).

Pacientes com hipertermia grave devem ser resfriados rapidamente, em 30 minutos ou menos, com imersão em água gelada, o método mais rápido. O resfriamento por evaporação de spray de água pode ser suficiente diante de hipertermia moderada.

síndrome específica da dor torácica14 - dor torácica associada ao consumo de cocaína representa 40% de todas as consultas envolvendo cocaína em serviços de emergência nos Estados Unidos da América. Aproximadamente 6% dos pacientes que se apresentam com dor torácica associada ao uso de cocaína apresentam elevação dos marcadores de necrose miocárdica.

Apesar das síndromes coronarianas agudas serem preocupação importante, não devem ser excluídos outros diagnósticos diferenciais que podem apresentar dor torácica associada à cocaína na emergência, como: pneumotórax e o pulmão de crack.

A dor torácica associada ao uso de cocaína18 é descrita, usualmente, como: retroesternal (76%), com dispneia (62%), em aperto ou pressão (55%), com diaforese (48%).

A avaliação de pacientes com dor torácica associada à cocaína inclui eletrocardiograma, radiografia de tórax e marcadores de necrose miocárdica. O eletrocardigrama possui acurácia limitada19,20 na avaliação da dor torácica associada ao uso de cocaína. A ausência de evidência eletrocardiográfica de isquemia nem sempre se correlaciona com a clínica ou com marcadores de necrose miocárdica. A sensibilidade e especificidade do eletrocardiograma são de aproximadamente 36% e 90%, respectivamente.19,20

A conduta inicial diante de dor torácica associada ao uso de cocaína inclui a administração de oxigênio e redução da atividade simpática com o uso de benzodiazepínicos endovenosos. Devem ser administrados benzodiazepínicos a pacientes ansiosos, agitados, hipertensos ou taquicárdicos, sob a forma de diazepam 5 mg endovenoso a cada três a cinco minutos ou lorazepam 1 mg a cada cinco a 10 minutos até se alcançar a sedação desejada. A nitroglicerina deve ser administrada a pacientes com dor torácica associada ao uso de cocaína e com hipertensão arterial sistêmica, da seguinte forma: 0,4 mg sublingual a cada cinco minutos, conforme necessidade em máximo de três doses. Caso seja necessária administração de nitroglicerina adicional, pode ser iniciada a infusão endovenosa, com dose titulada conforme o desejado.

Não existe consenso quanto ao melhor esquema terapêutico usando-se benzodiazepínicos e nitratos para o controle da dor torácica associada ao uso de cocaína, sendo provável21 que a associação de dois agentes consiga a resolução mais rápida da dor.

Os betabloqueadores são contraindicados em pacientes que usaram cocaína nas últimas 24 horas. A fentolamina, um antagonista alfa-adrenérgico, pode ser usado para reduzir a vasoconstrição coronariana induzida pela cocaína. A fentolamina é dada na forma de bolus endovenoso de 1,0 a 2,5 mg a cada cinco a 15 minutos, conforme a necessidade. Em estudo prospectivo observacional22, em pacientes sem história de abuso de drogas, foi administrada cocaína 2 mg/kg intranasal durante a realização de cateterismo coronariano. A cocaína aumentou o débito cardíaco, a pressão arterial sistêmica e a resistência vascular coronariana e reduziu em 13% a luz das coronárias. A administração de fentolamina retornou o diâmetro vascular ao normal.

síndrome específica do pulmão de crack14 - Deve ser realizada a radiografia de tórax em todo usuário de crack. A eosinofilia pode ser observada em usuários de crack, o que pode estar associada a algum mecanismo imunológico. As alterações pulmonares devem ser acompanhadas com vigilância especial quanto à oxigenação, ventilação e cuidados sintomáticos. O comprometimento das vias aéreas requer a intubação orotraqueal (succinilcolina não deve ser usada na sequência rápida).

considerações pediátricas14 - crianças podem requerer tratamento por apresentarem sinais e sintomas de intoxicação por cocaína ou complicações de exposição à cocaína simplesmente por conviverem com adultos dependentes da droga. Exposição não intencional à cocaína pode ocorrer por inalação de vapores da base livre de cocaína (crack) ou ingestão.

A exposição passiva à cocaína manifesta-se com sintomatologia respiratória em crianças, com ou sem febre.14 Pode haver ainda aumento da incidência de convulsões focais ou generalizadas em crianças com menos de oito anos de idade. Os achados clínicos em crianças mais velhas são semelhantes aos de adultos.

Critérios de Alta Hospitalar14

O paciente com sintomatologia de intoxicação aguda por cocaína pode receber alta hospitalar após seis a oito horas de seu retorno à normalidade, com encaminhamento adequado para o tratamento da dependência.

O paciente com dor torácica deve ser observado por oito a 12 horas, enquanto são obtidas pelo menos duas dosagens de marcadores de necrose miocárdica e eletrocardiogramas seriados. A alta é possível na ausência de dor e normalidade do eletrocardiograma.

A internação hospitalar deve ser feita diante de paciente com agitação psicomotora, hipertermia ou outras complicações neurológicas decorrentes da toxicidade de cocaína, para monitoração e controle de sequelas. Pode receber alta se após seis a oito horas de observação a sintomatologia estiver completamente resolvida, acordado, alerta, caminhando sem dificuldade e a reavaliação clínica não apresentar qualquer achado que justifique a internação.

 

CONCLUSÃO

O paciente com complicações graves decorrentes do uso de cocaína deve ser admitido ou encaminhado a hospital de complexidade apropriada.

O uso de drogas, especificamente de cocaína ou seus derivados (como o crack), é fator agravante em qualquer paciente admitido em pronto-atendimento, seja pela toxicidade inerente à droga, seja pelas interações medicamentosas e peculiaridades terapêuticas que o usuário e sua condição clínica demandam.

O tratamento da intoxicação aguda e de suas complicações deve ser instituído de forma adequada por profissional habilitado, a fim de evitar aumento ainda maior da morbimortalidade decorrente do uso de drogas.

Recursos Adicionais - a fim de obter informações com urgência de médico toxicologista, é possível ligar para a Central de Toxicologia do Hospital João XXIII em Belo Horizonte - Telefone: 0800 722 6100 ou acessar a Lista Internacional de Centros de Envenenamento na Organização Mundial de Saúde14 no site: www.who.int/gho/phe/chemical_safety/poisons_centres/en/index.html.

 

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