ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Utero de Couvelaire: relato de caso
Couvelaire uterus: a case report
Sara de Pinho Cunha Paiva1; Naeme José de Sá Filho2; Aluana Rezende Parola3
1. Médica. Pós-Doutora em Saúde da Mulher. Ginecologista e Obstetra da Maternidade Odete Valadares, Professora de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Universitário de Belo Horizonte UniBH e no Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde - ICBS. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico. Residente em Ginecologia e Obstetrícia na Maternidade Odete Valadares da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médica. Especialista em Medicina Fetal. Ginecologista e Obstetra da Maternidade Odete Valadares da FHEMIG. Professora de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH, Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde ICBS. Belo Horizonte, MG - Brasil
Sara de Pinho Cunha Paiva
E-mail: sarapcpaiva@gmail.com
Recebido em: 26/11/2013
Aprovado em: 02/06/2014
Instituição: Maternidade Odete Valadares - FHEMIG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
O descolamento prematuro da placenta (DPP) é importante causa de hemorragia na gestação, sendo responsável por grande aumento na morbimortalidade materna e fetal. O diagnóstico é principalmente clínico, mas os achados laboratoriais e de imagem podem ser utilizados para apoiar o diagnóstico clínico. O DPP representa desafio em Obstetrícia ao promover graves consequências à mãe-filho, assim como por ter sua etiologia definida de forma incompleta. O objetivo deste estudo foi discutir os aspectos mais relevantes do DPP, enfatizando a importância do exame clínico completo associado ao método de ultrassonografia obstétrica no auxílio ao diagnóstico.
Palavras-chave: Descolamento Prematuro da Placenta/diagnóstico; Descolamento Prematuro da Placenta/classificação; Descolamento Prematuro da Placenta/prevenção & controle; Hemorragia Uterina; Hipertensão.
INTRODUÇÃO
O descolamento prematuro de placenta (DPP) é caracterizado por hemorragia na interface decidual-placentária, que promove o descolamento parcial ou total da placenta antes do parto. O diagnóstico é geralmente reservado para além de 20 semanas de gestação.1 A maioria dos descolamentos placentários está relacionada a processo patológico crônico vascular, mas alguns são agudos, associados ao trauma ou vasoconstrição e elevação dos níveis pressóricos sistêmicos. A causa imediata da separação da placenta é a ruptura de vasos sanguíneos maternos na decídua basal, sendo que o diagnóstico é clínico e baseado no aparecimento abrupto de dor abdominal (aumento do tônus uterino) associada à hemorragia vaginal leve a moderada, acompanhada de contrações uterinas e alterações da frequência cardíaca fetal (BCF).1-5 Observam-se, com a evolução do processo, intensa infiltração sanguínea miometrial e desorganização da citoarquitetura muscular do miométrio, o que determina a transformação de hipertonia para atonia/hipotonia.5
O DPP é importante causa de morbidade materna e perinatal. A taxa de mortalidade perinatal é de cerca de 10%, o aumento do risco de morte está relacionado ao parto prematuro em cerca de 30% dos casos.1-3
RELATO DE CASO
MAS, 34 anos de idade, primigesta com gestação de 32:5 semanas e pré-natal de risco habitual é encaminhada à maternidade devido à elevação dos níveis pressóricos sistêmicos. Apresentava-se assintomática, com reflexos tendinosos preservados e proteinúria de fita positiva. A ultrassonografia obstétrica evidenciou bradicardia fetal (BCF=86 bpm), PBF=0/8 e doppler de artéria umbilical com diástole zero. Ao ser encaminhada ao centro obstétrico, relatou perda da visão associada a forte dor abdominal e aumento do tônus uterino. Foi realizada interrupção da gestação com cesariana de urgência e extração de feto único, com batimento cardíaco ausente, sendo prontamente assistido em sala de parto, com Apgar 0/0 e retorno da frequência cardíaca após 15 minutos do nascimento. O peso ao nascer era de 1.570 g. Após a dequitação placentária, foi evidenciada grande quantidade de coágulos e área de descolamento, correspondendo a cerca de 50% da superfície placentária. O útero apresentava-se hipotônico e, ao ser exteriorizado, constataram-se hematomas e sufusões hemorrágicas em toda a sua superfície (útero de Couvelaire), sendo a hipotonia controlada com ocitocina venosa e misoprostol via retal (Figura 1).
Evoluiu satisfatoriamente no puerpério imediato e recebeu alta hospitalar no quinto dia pós-operatório. O recém-nascido necessitou de ventilação mecânica por 10 dias e CPAP também por 10 dias, além de ter desenvolvido sepse por provável foco no sistema nervoso central, recebendo alta hospitalar no quinquagésimo sexto dia de vida. Está sob vigilância clínica no ambulatório de neurologia pediátrica da Maternidade Odete Valadares.
DISCUSSÃO
O DPP complica 0,4 a 1% das gestações.4-6 A incidência parece estar aumentando, possivelmente devido ao aumento na prevalência de fatores de risco para a doença e/ou a mudanças na averiguação de casos.6,7 A causa imediata da separação prematura da placenta é a ruptura de vasos maternos na decídua basal, onde interagem com as vilosidades de ancoragem da placenta. O sangramento raramente se origina das embarcações fetoplacentários. O sangue acumulado divide a decídua, separando a placenta do útero. O sangramento pode ser reduzido e autolimitado ou pode continuar a dissecar a partir da interface placentário-decidual, levando à completa ou quase completa separação da placenta. A parte descolada da placenta é incapaz de promover a troca de gases e nutrientes; e o feto e a placenta são incapazes de compensar essa perda de função, o que compromete gravemente o feto.1-5
A etiologia da hemorragia na decídua basal permanece especulativa na maioria dos casos, apesar de extensa clínica e investigação epidemiológica. Em pequena porcentagem de casos o descolamento está relacionado a eventos mecânicos repentinos, tais como trauma abdominal fechado ou descompressão rápida uterina.8,9 A maioria dos DPPs parece estar relacionada a alguma doença crônica placentária. Nestes casos, as anomalias no desenvolvimento precoce das artérias espiraladas pode levar a necrose decidual, inflamação da placenta que culmina com infarto e, em última análise, perturbação vascular e hemorragia.8,9 A hemorragia arterial de alta pressão na área central da placenta leva a rápido desenvolvimento de manifestações clínicas de descolamento (por exemplo, hemorragia vaginal importante, coagulação intravascular disseminada materna, ritmo cardíaco fetal anormal) potencialmente fatais. Quando ocorre hemorragia venosa de baixa pressão, geralmente na periferia da placenta (descolamento marginal), é mais comum resultar em manifestações clínicas que ocorrem ao longo do tempo (por exemplo, hemorragia vaginal intermitente, oligoâmnios, restrição de crescimento fetal).10
Constituem causas menos comuns de DPP as anormalidades uterinas, uso de cocaína e tabagismo. As anomalias uterinas (por exemplo, o útero bicorno) e mioma são áreas mecânica e biologicamente instáveis para os sítios de implantação da placenta. O efeito fisiopatológico da cocaína na gênese do descolamento é desconhecido, mas pode estar relacionado à vasoconstrição induzida pela droga, conduzindo a isquemia, vasodilatação reflexa e ruptura da integridade vascular. Cerca de 10% das mulheres usuárias de cocaína no terceiro trimestre podem apresentar DPP.11,12 O mecanismo subjacente à relação entre tabagismo e DPP não está bem estabelecido, constituindo uma hipótese, a de que os efeitos vasoconstritores do tabagismo possam causar hipoperfusão placentária, o que pode resultar em isquemia decidual, necrose e hemorragia e consequente separação prematura da placenta.13,14
O sangramento vaginal é dos principais sinais de DPP e pode variar de leve e clinicamente insignificante a grave e com risco de morte. Porém, a perda de sangue pode ser subestimada caso o sangramento fique retido atrás da placenta. Não existe correlação direta entre a quantidade de sangramento vaginal e o grau de separação da placenta, fazendo com que o sangramento não sirva como marcador útil de risco fetal ou materno iminente. Por outro lado, a hipotensão materna e as anormalidades da FCF sugerem a separação da placenta clinicamente significativa, podendo resultar em morte fetal e morbidade materna grave. É comum ocorrer coagulação intravascular disseminada aguda e morte fetal quando há separação superior a 50% da área placentária.15,16
Cerca de 10 a 20% dos descolamentos placentários apresentam-se como trabalho de parto prematuro, com nenhuma ou pouca hemorragia vaginal. Nestes casos, geralmente denominado "descolamento oculto", todo o sangue extravasado ou a sua maior parte fica retido entre as membranas fetais e a decídua, em vez de escapar pelo colo do útero e vagina. Portanto, em mulheres grávidas com dor abdominal e contrações uterinas, mesmo a pequena quantidade de sangramento vaginal ser devidamente avaliada para detecção de DPP, com aferição do bem-estar materno e fetal. Em alguns casos menos graves, um pequeno descolamento pode manter-se escondido e assintomático, sendo reconhecido apenas incidentalmente à ultrassonografia.17 A identificação de hematoma retroplacentário por intermédio da ultrassonografia é achado clássico de DPP. A aparência dos hematomas retroplacentário é variável, parecendo sólido, hipo, hiper ou isoecoico, em comparação à placenta. A ausência de hematoma retroplacentário não exclui o descolamento grave,18 embora piores resultados possam ocorrer diante de evidência ecográfica de hematoma retroplacentário,
O DPP pode ter como consequência grave útero com a parede miometrial infiltrada por sangue e aparência clássica de útero equimótico de cor escura. Em decorrência dessa infiltração de sangue no miométrio, o órgão perde a sua força contrátil, tornando-se atônico e possivelmente aumentando o sangramento, caracterizando o útero de Couvelaire.19 A etiologia exata do útero de Couvelaire ainda é desconhecida, entretanto, tem sido amplamente associado a doenças como DPP, placenta prévia, coagulopatia, pré-eclâmpsia, ruptura do útero e embolia de líquido amniótico. Acreditava-se que a sua fisiopatologia se devia a uma toxina produzida pela placenta durante o descolamento, resultando na penetração da parede uterina através do sangue. Entretanto, é considerado atualmente decorrente da invasão miometrial de sangue a partir da hemorragia retroplacentária, o que separa os feixes musculares e estende a hemorragia para a superfície da serosa, dando o aspecto de manchas equimóticas na superfície uterina.19 A histerectomia foi, durante décadas, o padrão de tratamento para o útero de Couvelaire. A histerectomia não é hoje geralmente necessária, porque a condição resolve-se espontaneamente, juntamente com a adição de uterotônicos, como ocitocina, prostaglandina (misoprostol) e derivados do Ergot.19
As consequências do DPP estão essencialmente relacionadas à gravidade da separação da placenta. Para a gestante, pode haver perda excessiva de sangue e choque hipovolêmico, necessitando de transfusão de sangue e hemoderivados, além de insuficiência renal, síndrome da angústia respiratória do adulto, insuficiência de múltiplos órgãos, histerectomia periparto e até morte materna.5 Os riscos para o feto estão relacionados tanto à gravidade do descolamento quanto à idade gestacional em que o parto ocorre. Quando o descolamento da placenta é leve, pode não haver efeito adverso significativo para o feto. Conforme aumenta o grau de separação da placenta, os riscos aumentam, e situações como hipoxemia, asfixia, restrição de crescimento intrauterino, baixo peso ao nascer e prematuridade são responsáveis por alto grau de morbidade e mortalidade perinatal. Em pacientes com sintomas clássicos, alterações da FCF ou morte fetal intrauterina sugerem fortemente o diagnóstico clínico de separação extensa da placenta.1-8
CONCLUSÃO
O DPP constitui-se em entidade de grande importância na clínica obstétrica, sendo caracterizado por hemorragia na interface decidual-placentária, com separação parcial ou total da placenta, antes do parto. O diagnóstico é principalmente clínico, mas os achados laboratoriais e de imagem podem ser utilizados para confirmar a diagnóstico clínico. O DPP agudo apresenta-se, usualmente, com sangramento vaginal de início abrupto leve a moderado, associado a dor abdominal ou na região lombar acompanhada por contrações uterinas com tônus aumentado. As alterações da FCF ou morte fetal intrauterina contribuem para o diagnóstico clínico de separação extensa da placenta, como ocorrido no caso clínico relatado anteriormente. O DPP tem sua complexidade apoiada na sua gravidade e imprevisibilidade, alertando para o fato de que a sua prevenção e o controle adequado dos fatores de risco ainda representam o melhor que se pode fazer para sua abordagem. Este trabalho objetivou demonstrar a importância do exame clínico associado ao método de ultrassonografia obstétrica no auxílio do diagnóstico do DPP, que deve ser rápido para que a terapêutica seja instituída também rapidamente a fim de que seja obtido melhor prognóstico materno e fetal.
REFERÊNCIAS
1. Ananth CV, Wilcox AJ. Placental abruption and perinatal mortality in the United States. Am J Epidemiol. 2001;153:332-7.
2. Ananth CV, VanderWeele TJ. Placental abruption and perinatal mortality with preterm delivery as a mediator: disentangling direct and indirect effects. Am J Epidemiol. 2011;174:99-108.
3. Aliyu MH, Salihu HM, Lynch O, Alio AP, Marty PJ. Placental abruption, offspring sex, and birth outcomes in a large cohort of mothers. J Matern Fetal Neonatal Med. 2012;25:248-52.
4. Ananth CV, Smulian JC, Demissie K, Vintzileos AM, Knuppel RA. Placental abruption among singleton and twin births in the United States: risk factor profiles. Am J Epidemiol. 2001;153:771-8.
5. Tikkanen M. Placental abruption: epidemiology, risk factors and consequences. Acta Obstet Gynecol Scand. 2011;90:140-9.
6. Pariente G, Wiznitzer A, Sergienko R, Mazor M, Holcberg G, Sheiner E. Placental abruption: critical analysis of risk factors and perinatal outcomes. J Matern Fetal Neonatal Med. 2011;24:698-702.
7. Ananth CV, Oyelese Y, Yeo L, Pradhan A, Vintzileos AM. Placental abruption in the United States, 1979 through 2001: temporal trends and potential determinants. Am J Obstet Gynecol. 2005;192:191-8.
8. Ananth CV, Getahun D, Peltier MR, Smulian JC. Placental abruption in term and preterm gestations: evidence for heterogeneity in clinical pathways. Obstet Gynecol. 2006;107:785-92.
9. Ananth CV, Oyelese Y, Prasad V, Getahun D, Smulian JC. Evidence of placental abruption as a chronic process: associations with vaginal bleeding early in pregnancy and placental lesions. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2006;128:15-21.
10. Redline RW. Placental pathology: a systematic approach with clinical correlations. Placenta 2008;29(Suppl A):S86-91.
11. Bauer CR, Shankaran S, Bada HS, Lester B, Wright LL, Krause-Steinrauf H, et al. The Maternal Lifestyle Study: drug exposure during pregnancy and short-term maternal outcomes. Am J Obstet Gynecol. 2002;186:487-95.
12. Hoskins IA, Friedman DM, Frieden FJ, Ordorica SA, Young BK. Relationship between antepartum cocaine abuse, abnormal umbilical artery Doppler velocimetry, and placental abruption. Obstet Gynecol. 1991;78:279-82.
13. Suzuki K, Minei LJ, Johnson EE. Effect of nicotine upon uterine blood flow in the pregnant rhesus monkey. Am J Obstet Gynecol. 1980;136:1009-13.
14. Kaminsky LM, Ananth CV, Prasad V, Nath CA, Vintzileos AM. The influence of maternal cigarette smoking on placental pathology in pregnancies complicated by abruption. Am J Obstet Gynecol. 2007;197:275: e1-5.
15. de Lloyd L, Bovington R, Kaye A, Collis RE, Rayment R, Sanders J, Rees A, Collins PW. Standard haemostatic tests following major obstetric haemorrhage. Int J Obstet Anesth. 2011;20:135-41.
16. Charbit B, Mandelbrot L, Samain E, Baron G, Haddaoui B, Keita H, et al. The decrease of fibrinogen is an early predictor of the severity of postpartum hemorrhage. J Thromb Haemost. 2007;5:266-73.
17. Oyelese Y, Ananth CV. Placental abruption. Obstet Gynecol. 2006;108:1005-16.
18. Nyberg DA, Mack LA, Benedetti TJ, Cyr DR, Schuman WP. Placental abruption and placental hemorrhage: correlation of sonographic findings with fetal outcome. Radiology. 1987;164:357-61.
19. Hubbard JL, Hosmer SB. Couvelaire uterus. J Am Osteopath Assoc. 1997;97(9):536-7.
Copyright 2025 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License