RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. 3

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Educação Médica

Bioética, Ciência e Fé

Bioethics, Science and Faith

Eduardo Ribeiro Mundim

Médico, Membro Titular da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, Centro de Atenção ao Diabético do Hospital Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG – Brasil

Endereço para correspondência

Av. Antônio Carlos, 1694 sala 17
CEP: 31.210-000 Belo Horizonte, MG - Brasil
Email: eduardomundim@terra.com.br

Recebido em: 26/01/2009
Aprovado em: 16/03/2011

Instituição: Centro de Atenção ao Diabético do Hospital Belo Horizonte Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

São discutidas as semelhanças e diferenças entre ciência e fé, em busca do entendimento de como elas participam do debate bioético contemporâneo, com o intuito de delimitar os limites de cada uma.

Palavras-chave: Bioética; Ética Médica; Religiao e Ciência; Religiao e Medicina; Conhecimento; Religiao; Teologia.

 

INTRODUÇÃO

Nos tempos atuais, o debate bioético tem sido intenso no Brasil, ainda que circunscrito a poucos temas. A discussão circunscreve-se aos difundidos pelos meios de comunicação, como aborto (ou parto antecipado) de fetos anencéfalos e uso de células-tronco em pesquisas científicas. Frequentemente as discussões são apresentadas em termos de ciência vs fé. Numa questao de poder, quando se trata de uma questao ética (ou bioética), quem tem a última palavra, a ciência ou a religiao?

A atividade científica pressupoe, habitualmente, imparcialidade. Ou seja, a não adoção de atitude, por razoes subjetivas, que afete o seu produto. A discussão sobre se é possível abordar este tema com absoluta isenção fica aberta. Neste trabalho fica explícita a filiação espontânea a uma fé, assim como o reconhecimento da necessidade da maior objetividade científica possível.

Assim como o recurso estatístico não está imune a quem o utiliza, os que se dedicam, academicamente, ao tema "ciência e fé" também se posicionam de forma divergente. O "Instituto Ciência e Fé" pesquisa o assunto há 10 anos. É um grupo ecumênico, tanto do ponto de vista universitário quanto religioso. Entre seus membros, Macedo1 evidenciou seguintes posições:

A ciência e a religiao não são totalmente inconciliáveis. Contudo, por ser a metodologia científica muito rígida, o conhecimento religioso não pode ser aplicado ao conhecimento científico. O diálogo entre os dois serve para que surja uma "fé racional", deixando de lado o literalismo bíblico. Ou seja, o conflito está latente dentro da metodologia, porém isto não exclui o diálogo como forma de buscar uma fé racional.

A ciência não aceita a interferência da religiao dentro da sua racionalidade. Isto porque a fé não pode responder às questoes da ciência. A fé tenta explicar os fatos naturais misticamente. Porém, "as duas estao à procura de verdades", só que de maneiras diferentes. Enquanto a ciência as procura pelo método objetivo, a fé as procura no campo da subjetividade. O conflito é latente, com metodologias totalmente independentes, porém com mesmos objetivos. O diálogo é necessário para tornar a fé menos misteriosa.

O diálogo pode acontecer, apesar de ser muito difícil. Isto porque a ciência tem objeto palpável enquanto o objeto religioso (Deus) não o é. Os dois conhecimentos não podem chegar totalmente à verdade. O diálogo pode ajudar a aprimorar o conhecimento um do outro. Aqui se vê um diálogo de mão dupla, o qual a pesquisa procurava. O campo de bioética é um dos locus desse diálogo.

A relação entre religiao e ciência é de complementaridade, tendo como objeto a vida. Contudo, a religiao não interfere no método científico, o qual ainda possibilita explicação com maior grau de profundidade do que a religiao. Elas se complementam, porque acreditam que a ciência deixa de lado algumas coisas em sua profissão médica, como reconfortar uma família de um paciente que morreu. Aqui se vê, ainda, um conflito na metodologia, ou seja, a ciência ainda está fechada para os outros saberes.

 

RELIGIAO E FÉ

Baseado em Rubem Alves, no seu livro "O que é religiao"2, aqui religiao será chamada aquela atitude muito humana, que é a "marca de todas as religioes, por mais longínquas que estejam umas das outras: o esforço para pensar a realidade toda a partir da exigência de que a vida faça sentido". Essa postura parece ser universal e característica da humanidade. Não há homem ou mulher que não seja religioso, porque todos têm de dar um sentido à vida que vivem! Os psicanalistas estudam desde Freud, Jung e outros aquela Ausência (com A maiúsculo) que habita em todos nós e, segundo o mesmo Rubem Alves, religiao são mundos que construímos, às vezes mágicos e encantados, e seu estudo, "longe de ser uma janela que se abre apenas para panoramas externos, é como um espelho em que nos vemos". Poeticamente ele exemplificou religiao como aquele sentimento produzido por uma música clássica, que jamais seria despertado pela fria análise acadêmica da partitura ou de sua execução, mas apenas pela orquestra.

Fé, por outro lado, será aqui estabelecido como qualquer sistema organizado de crença que busque dar sentido à existência, com nome e identidade, e que imponha àqueles que o abracem limites à magia e ao encantamento citados por Rubem Alves2, assim como ao modo de hierarquizar valores e aos esquemas de tomadas de decisão.

Neste trabalho não é necessário abraçar uma fé (qualquer uma das vertentes do cristianismo, islamismo, judaísmo, por exemplo) para ser religioso (a disposição de organizar a visão de mundo, transcendendo a individualidade, para que a existência tenha sentido). Todo ser humano é religioso, mesmo que não acredite nisso. Mas aquele que se identifica como cristao, por exemplo, impoe a si mesmo uma história, uma tradição, uma escritura e um modo de lê-la e aplicá-la à realidade contemporânea. Este se obriga a assumir uma escala de valores, um código de posturas pessoal e comunitário. O religioso apenas vive seu próprio mundo mágico, sem compartilhá-lo, muitas vezes dando novos rótulos a velhas fantasias e aos profetas novos nomes. Não deve lealdades explícitas; não tem fraternidade que pode colocá-lo em situações delicadas, tanto no passado quanto no presente; é livre para criar seu mundo mágico à sua imagem e semelhança.

Quando aplicado à ética, o religioso é livre para decidir (inclusive para mudar de posicionamento), não necessita de harmonizar contraditórios, não deve explicações a nenhuma fraternidade, a não ser a si mesmo.

Primariamente, fé é uma atividade que busca dar significado à existência. Seu trajeto é a partir de uma articulação coerente de saberes revelados que, apesar de serem racionais, não são passíveis de experimentação empírica. Esse significado traz uma identidade que pode ser profunda, a ponto do fiel sacrificar-se caso necessário (tanto em sentido "positivo", quando a morte é aceita como alternativa à apostasia, quanto em "negativo", quando ela leva à morte de outros, como nos atuais atentados suicidas). Ligar-se a uma divindade significa não pertencer a si mesmo, mas a alguém que é maior que ele mesmo, transcendendo-o. A existência passa a ter um propósito além da mera subsistência, passa a ser suportada, orientada e protegida por uma comunidade de iguais, com a qual se desenvolvem vínculos de lealdade. Toda fé implica princípios específicos de ética e moral, que não necessariamente estao consoantes à sociedade nos não convertidos.

Fé, no conceito adotado, baseia-se em algum texto considerado sagrado. Este é estudado a partir de normas de interpretação predeterminadas, acessíveis a todos que se interessarem. A princípio, esse conhecimento predispoe ao debate, já que todos têm a faculdade de interpretar suas escrituras buscando sua aplicação no mundo atual, contextualizando-a. A discussão ocorre tanto em ambientes acadêmicos especializados quanto no seio da comunidade. Teologia também trabalha com a analogia, a dedução e a imaginação.

A fé investiga um mundo que existe por revelação, somente acessível àquele que crê. E a infinitude de divisões e subdivisões parece sugerir que a unanimidade (portanto, a certeza) está longe de ser alcançada.

 

A CIENCIA

A ciência, como a conhecemos atualmente, é prioritariamente uma atividade investigativa voltada para a sobrevivência, o conforto e a realização. Música, literatura, arte e arquitetura pertencem ao mundo da realização humana e são atividades investigativas e acadêmicas. Quando investiga o mundo natural, a ciência pergunta como ele é, como funciona, como suas diversas partes se relacionam. A tecnologia é a aplicação prática desse conhecimento, preferencialmente de modo eficiente e seguro.

A atividade científica foi iniciada com base nos cinco sentidos naturais e é atividade inerente à humanidade. O acúmulo dos saberes, assim como seu compartilhamento, permitiu a ampliação progressiva do alcance dos sentidos (a partir de instrumentos de tecnologia gradativamente complexa), assim como foi modificando gradativamente as bases filosóficas do seu embasamento. No que interessa diretamente ao presente trabalho, a separação da filosofia da teologia3 permitiu o abandono das respostas dogmáticas, auxiliou a legitimação do uso da matemática na reinterpretação dos dados naturais coletados e legitimou o empirismo. A ciência passou a se fundamentar no teste de hipóteses4, que, diferentemente do que comumente se pensa, demonstra que a hipótese testada não é falsa (o que é diferente de demonstrá-la verdadeira).

Expressões de uso corrente necessitam ser comentadas. "A ciência diz que... " indica a interferência da religiosidade inerente em uma atividade que adota, como princípio básico, a dúvida como método permanente de trabalho. A atividade investigativa não existe enquanto ser ou unidade autônoma; portanto, não tem opiniao própria. Nada sabe, nada fala, nada indica. É apenas um imenso banco de dados acumulativos e contraditórios em que se buscam recursos para a compreensão do mundo natural. A visão do cientista é que fala, a certeza é a certeza dele. Existem tantas certezas quantas articulações de saberes são permitidas por diferentes cientistas.

"A ciência comprova que... " talvez se constitua no equívoco mais comum em relação à atividade científica. A ciência constrói modelos explicativos da realidade (e modelo não é a realidade, mas um modelo reducionista) que sobrevivem a sucessivos questionamentos. Sua veracidade jamais é comprovada; sua não falsidade é que se demonstra.4

Pouco conhecido é o fato de a atividade científica acontecer sobre bases não experimentais. Algumas premissas são aceitas sem serem submetidas ao princípio metodológico da dúvida. Entre eles, a uniformidade e constância (ao menos por um período de tempo) da natureza e a existência de uma ordem intrínseca. Whyte4 faz o seguinte comentário a esse aspecto: "o místico crê num Deus desconhecido. O pensador e o cientista creem numa ordem desconhecida. É difícil dizer qual deles sobrepuja o outro em sua devoção não racional".

Aceita-se, talvez por razoes práticas, que é possível chegar à realidade global a partir de sua fragmentação. Os critérios básicos para a classificação dos dados em relevantes e não relevantes em dada pesquisa raramente são exaustivamente detalhados. O pesquisador aceita que sua inserção no mundo real que ele mesmo pesquisa não interfira em sua neutralidade metodológica.

 

CIENCIA E FÉ - SUAS SEMELHANÇAS

Apesar dos percalços, ciência e fé compartilham características comuns. São atividades racionais, com campo de atuação bem definido - mas gostam de aventurar-se fora dele, nem sempre com propriedade. E em seus fundamentos buscam, a seu modo, a felicidade do ser humano. E, sempre presente, mesmo que despercebido, o assombro perante os mundos exterior e interior.

Estruturas de poder existem em ambas. E como todo poder exercido por humanos, há falhas, muitas vezes clamorosas, e exemplos deploráveis de má conduta no seu exercício. No campo da ciência, o poder se dá principalmente pela academia, pelas associações científicas, pela capacidade de publicar artigos de impacto mundial e pela habilidade de articulação política. No campo da fé, o poder se manifesta principalmente pela ortodoxia - dizer o que está concorde com a sa doutrina e o que está em dissonância. Cada estrutura de fé tem características próprias, mas provavelmente a capacidade de ser visível, de aumentar o rebanho e, novamente, articulação política são os principais canais do exercício do poder.

Consequência comum do poder, ambas formam seu grupo de excluídos e párias. E ambas costumam ser pouco misericordiosos.

Sendo atividades humanas, ambas lidam com maioria de não compromissados, participantes apenas do senso comum religioso/científico, sem participação ativa na construção da fé ou da ciência. Habitualmente acrítica, essa parcela é facilmente vítima das "crendices" ou "superstições".

A praga existe em todo bom jardim e charlatoes e aproveitadores habitam ambos. Aqui são definidos como aqueles que conscientemente usam do conhecimento pervertendo o objetivo básico da fé ou da ciência, sacrificando a ética específica, buscando unicamente obter vantagens pessoais em detrimento do próximo ou do bem comum.

 

O CONFLITO FÉ E CIENCIA

A complexidade das razoes do conflito fé e ciência não permite, neste espaço, uma análise pormenorizada. Alguns foram pinçados e constituem, provavelmente, os mais conhecidos, e relacionados como:

A associação com o poder político é um golpe grave na imparcialidade científica - exemplo recente, as provas científicas da superioridade da etnia ariana fornecidas pelo III Reich. É um golpe mortal para a transcendência da fé - exemplo maior, a cristianização do império romano com seu reflexo posterior, a igreja-estado da Idade Média. A aliança com a política caracteriza-se por um fato absolutamente antidemocrático e antipático: o uso do poder de polícia, da força bruta, para impor ideias ou "fatos".

A ambição pelo monopólio da verdade. Parte do princípio de que a verdade pode ser alcançada em sua plenitude a partir de apenas uma atividade humana. Supoe que é possível exercê-lo e, consequentemente, conduzir à destruição aquele que não o detém. Não é o pano de fundo da controvérsia "criação vs evolução"?

O preconceito de parte a parte. O cientista é ateu, agnóstico, "contra Deus". O crente, supersticioso, obscurantista, retrógrado, conservador.

O desejo pela autonomia. Termo filosófico que significa ser o autor das próprias regras, no lugar da heteronomia, que é submeter-se às regras dos outros. Ou seja, quem determina o que é certo e o que é errado?

Neste ponto ligam-se ciência, fé e ética.

 

CIENCIA, FÉ E BIOÉTICA

Ética é a disciplina filosófica que valoriza, que hierarquiza valores.3 Bioética tem várias definições.5 Uma delas, com pequena modificação, define-a como "a ciência do comportamento moral dos seres humanos diante de toda a intervenção da biotecnociência e das ciências da saúde sobre a vida [e o meio ambiente], em toda a sua complexidade."

Bioética utiliza todo o conhecimento humano acumulado, seja técnico-matemático, seja biológico-filosófico. É multidisciplinar. Nenhum subconhecimento a contém; ela perpassa por todos na sua transdisciplinaridade. Chama ao diálogo, mediado pela razao, todos os interessados em suas questoes, reunindo todos os preconceitos, desmascarando-os e, frequentemente, reforçando-os.

Provavelmente na cultura ocidental a maior parte dos crentes (lembrando que o termo aqui define aquele que livremente abraça uma fé) não destoa da média em bom número de tópicos bioéticos. Os critérios éticos da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça dificilmente seriam questionados. O uso indiscriminado de placebo contra drogas em avaliação envolvendo populações doentes (como a investigação de medicamentos para AIDS em populações africanas) deve ser consensualmente (o que não quer dizer unanimidade) condenado, baseado no princípio de que a vida humana tem mais valor que a economia da indústria farmacêutica. Pontos semelhantes a esses dificilmente despertam o antagonismo fé-ciência.

É correto o uso de células-tronco? Engravidar para que o segundo filho forneça células e tecidos (sem sérios danos para ele) para o irmão? Fazer exames genéticos que podem predizer as chances de sofrer alguma doença grave? Neste campo, o conflito é público e notório.

 

CONCLUSÃO

Podem-se estabelecer as seguintes linhas gerais em relação à interface bioética, ciência e fé:

o crente, ao analisar uma questao bioética, o fará a partir da ética de princípios própria da sua confissão de fé, com a qual firmou sua lealdade;

o não crente, mas religioso, o fará levando em conta suas preferências filosóficas;

toda questao bioética é, por definição, filosófica; portanto, inabordável empiricamente;

o objetivo primário da ciência, a sobrevivência e o conforto humanos propoem "a capacidade de fazer";

a fé não questiona a capacidade, mas a utilidade comunitária, a igualdade de acesso, os custos em termos de valor e as repercussões sobre a moral vigente (sejam questionamentos ou novos desdobramentos);

a ciência somente colabora fornecendo modelos explicativos de algum aspecto pontual da realidade, jamais sendo a juíza final

 

REFERENCIAS

1. Macedo LHZF Ciência e religiao: diálogo possível? Um estudo de caso do Instituto Ciência e Fé. [Internet]. Curitiba (PR); agosto 2008. [Citado em 2009 janeiro 06]. Disponível em: http://www.cienciaefe.org.br/jornal/ed107/mt04.html.

2. Alves R. O que é religiao. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense; 1981.

3. Aranha MLA, Martins MHP. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna; 1986.

4. Alves R. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Edições Loyola; 2000.

5. Sanches MA. Bioética: ciência e transcendência. São Paulo: Edições Loyola; 2004.