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CAPES/Qualis: B2
Deficiência de alfa1antitripsina: relato de caso
Alpha1 antitrypsin deficiency: case report
Yara Abrão Vasconcelos1; Cristina Mara Nunes de Paula Coelho2; Lucélia Paula Cabral Schmidt3
1. Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
2. Médica. Especialista em Pediatria e Gastroenterologia Pediátrica. Serviço de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital Universitário da UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
3. Médica. Especialista em Pediatria e Gastroenterologia Pediátrica. Professora Auxiliar da Faculdade de Medicina e Coordenadora do Programa de Residência Médica de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital Universitário da UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
Yara Abrão Vasconcelos
E-mail: yaraavasconcelos@gmail.com
Recebido em: 16/07/2014
Aprovado em: 27/07/2014
Instituição: Serviço de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital Universitário da UFJF Juiz de Fora, MG - Brasil
Resumo
Este relato alerta para a deficiência de alfa1antitripsina em neonato, que se apresentou como síndrome colestática. Seu subdiagnóstico constitui-se em importante limitação para o seu reconhecimento e tratamento adequado. A boa evolução ocorre em cerca de 50% dos pacientes. Associa-se, na maioria das vezes, a acometimento extra e intra-hepático e ausência de manifestações clínicas que indiquem o seu diagnóstico. A deficiência de alfa1antitripsina está entre as doenças que precisam ser excluídas frente à colestase neonatal.
Palavras-chave: Deficiência de alfa 1-Antitripsina; alfa 1-Antitripsina; Colestase; Recém-Nascido.
INTRODUÇÃO
A síndrome colestática do lactente é dos maiores desafios diagnósticos da hepatologia pediátrica, existindo sob essa denominação várias afecções clínicas e cirúrgicas. A deficiência de alfa1antitripsina (A1AT) é a doença genética mais frequente da infância. É distúrbio autossômico recessivo que ocorre em um a cada 2.000-3.000 nascidos vivos.1,2 O primeiro caso foi descrito no ano de 1963 por Laurell e Eriksson.3-5
Apenas 10 a 15% das pessoas acometidas desenvolvem doença hepática, o que representa a principal causa genética de hepatopatia com necessidade de transplante hepático.2,6 A lesão hepática está associada, na maioria dos casos, ao genótipo PiZZ; ocasionalmente ao PISZ e raramente ao PiMZ.6
Este relato apresenta a deficiência de alfa1antitripsina observada em neonato internado no Hospital Universitário (HU/CAS-UFJF), sendo descritas as suas manifestações clínicas com o objetivo de alertar para as alterações associadas e sua abordagem.
RELATO DE CASO
METAS, feminino, nascida em 1º/11/2011, de parto cesáreo, indicado por sofrimento fetal agudo, com 41 semanas de vida intrauterina. O peso de nascimento foi de 2.925 g e o pré-natal transcorreu sem intercorrências. Triagem neonatal normal.
A mãe percebeu acolia fecal e colúria desde os primeiros dias de vida; e aos 15 dias após seu nascimento surgiu icterícia. Com um mês de idade, na primeira consulta de puericultura, foi identificada colestase (dosagens de bilirrubinas na Tabela 1) e iniciada propedêutica para seu esclarecimento. As sorologias para toxoplasmose, rubéola, citomegalo-vírus, herpes I e II, hepatites A, B e C foram negativas (Tabela 2). A ultrassonografia de abdome não evidenciou vesícula, sugerindo atresia de vias biliares extra-hepáticas. A dosagem das proteínas também foi realizada (Tabela 3).
Em 8/12/2011, foi internada para investigação da síndrome colestática no Hospital Regional Doutor João Penido (HRJP/FHEMIG), em Juiz de Fora. Por dificuldades técnicas e urgência no esclarecimento diagnóstico, optou-se pela avaliação intraoperatória, quando foram realizadas colangiografia e biópsia hepática. A colangiografia foi normal, descartando a possibilidade de atresia de vias biliares. A biópsia hepática evidenciou: alterações degenerativas e regenerativas de rara transformação em células gigantes, colestase moderada predominantemente intracitoplasmática e em hepatócitos periportais e ausência de obstrução biliar,caracterizando hepatite neonatal.
No dia 17/01/12, 40 dias após o procedimento cirúrgico o valor da alfa1antitripsina sérica era de 60 mg/dL (VR: 140-320), sendo identificado o fenótipo PiZZ.
A paciente continua sob acompanhamento no ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica. Esta descrição foi precedida da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
DISCUSSÃO
A deficiência de alfa1antitripsina (A1AT) é dos distúrbios congênitos mais comuns em caucasianos e brancos, sendo a variante Z praticamente ausente em orientais e indivíduos da etnia negra.5
A A1AT é codificada pela serpina1, gene localizado no braço longo do cromossoma 14, em que numerosos polimorfismos foram identificados.7 Sua principal função é a atividade de antiprotease, enquanto a da A1AT é a inibição da elastase neutrofílica, da proteinase 3 e da catepsina G (proteases liberadas pelos neutrófilos durante o processo infeccioso).2,5
O M é o alelo normal para formação da alfa1antitripsina e existem mais de 80 variantes de mutações para este gene.8,9 O alelo Z resulta da mutação de glutamato para a lisina, enquanto o alelo S produz a mutação de glutamato para valina. Em indivíduos com genótipos SS, MZ e SZ, os níveis séricos de A1AT são reduzidos para 40 a 60% dos níveis normais. Entre as pessoas não tabagistas, essa concentração de A1AT é quase sempre suficiente para proteger os pulmões dos efeitos da elastase.8 Por outro lado, entre os indivíduos com genótipo ZZ, os níveis de A1AT são geralmente inferiores a 15% do valor da normalidade, e esses pacientes podem desenvolver doença pulmonar em idade jovem. Além disso, indivíduos com o genótipo ZZ podem desenvolver doenças hepáticas associadas à secreção diminuída de A1AT e seu consequente acúmulo no fígado, observadas nos primeiros 20 anos de vida.10 Portanto, pacientes com deficiência de alfa1antitripsina podem cursar com doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), pneumotórax, bronquiectasia, asma, enfisema panacinar e hepatopatias diversas como hepatite, cirrose e carcinoma hepatocelular.8
Observa-se, em aproximadamente 10% das crianças com fenótipo proteína Z, icterícia obstrutiva prolongada, e cerca de 2% dessas crianças evoluem com insuficiência hepática e necessitam de transplante de fígado. Com o aumento da idade, existe alto risco de hepatopatias.11 A doença hepática associada à deficiência de A1AT também pode ser descoberta no final da infância ou no início da adolescência, quando se observa distensão abdominal devido à hepatoesplenomegalia ou ascite, esplenomegalia ou tem hemorragia digestiva alta causada por varizes de esôfago.10
Várias hipóteses são aventadas para justificar a patogênese do dano hepático causado pela deficiência de A1AT, destacando-se as teorias:
de imunidade: em que a lesão do fígado resulta de resposta imunológica anormal aos antígenos hepáticos;
da acumulação (mais aceita): o dano hepático é justificado pelo acúmulo de moléculas mutantes de alfa1antitripsina nas células do fígado.1
A mutação ocorre na substituição de lisina por ácido glutâmico na posição 342, o que resulta em dobradura anormal da molécula. A proteína mutante, denominada ATZ, apresenta tendência aumentada à polimerização, retenção de A1AT nos hepatócitos, formando agregados insolúveis no retículo endoplasmático rugoso.1,12 A deficiência também está associada a glóbulos Schiff diástase-resistente em alguns dos hepatócitos. Não está definido por que muitos hepatócitos não apresentam esses glóbulos, os chamados hepatócitos globulares-desprovido.12
Cerca de 80% dos pacientes são identificados a partir da investigação de sintomas respiratórios, enquanto em 3% dos casos o diagnóstico deve-se à doença hepática.3
O diagnóstico é estabelecido por determinação do genótipo da A1AT no soro em foco isoelétrico ou por eletroforese em ágar e pH ácido. O genótipo deve ser determinado em casos de hepatite neonatal ou doença hepática crônica inexplicável em crianças mais velhas, adolescentes e adultos. Isso é particularmente importante no período neonatal, porque pode ser muito difícil a distinção dessa deficiência em relação àqueles portadores de atresia biliar.10 A eletroforese de proteínas, entretanto, tem limitações, e por se tratar de proteína de fase aguda, pode estar normal ou próximo do normal.6
Na suspeita clínica da deficiência de A1AT, a dosagem do seu nível sérico está indicada. A deficiência da atividade de alfa1antitripsina (A1AT) é definida pelo nível sanguíneo menor que 11 µmol/L (50-80 mg/dL), associado a genótipo grave de AAT para os alelos deficientes mais comuns, ou seja, s e z (genes relacionados a A1AT).13,14 A genotipagem é realizada em amostra de sangue usando a tecnologia de reação em cadeia da polimerase (PCR) ou análise da curva de fusão. Em nível sérico acima de 20 µmol/L (valor de referência 80 mg/dL), é improvável que exista deficiência clinicamente significativa.13,14
Na histologia detectam-se grânulos eosinofílicos PAS positivo/diastase resistentes em hepatócitos periportais, lesão hepatocelular com ou sem transformação gigantocelular, ductos biliares normais com leve inflamação, vários graus de fibrose, proliferação ductular e hipoplasia de ductos intra-hepáticos.6
Não há tratamento específico para a doença hepática associada à deficiência de alfa1antitripsina. O acompanhamento clínico envolve, em grande parte das vezes, o tratamento da sua sintomatologia e a prevenção de complicações. Embora os ácidos ursodesoxicólico e colchicina sejam mencionados na literatura, não há comprovação da eficácia bioquímica para qualquer dessas drogas.10 É indicada abordagem individual do aspecto nutricional, vitamínico e estimulante de fluxo biliar. Nos casos de cirrose progressiva é necessário manter o paciente nas melhores condições clínicas possíveis, já que ele será candidato ao transplante hepático.2
A carbamazepina, anticonvulsivante e estabilizador do humor, é capaz de reduzir a carga hepática de mutante A1AT e a fibrose hepática em ratos, melhorando a eliminação autofágica dessa proteína mutante. Estes resultados demonstram que a manipulação farmacológica de mecanismos de proteostases endógenos pode constituir-se em estratégia para quimioprofilaxia desses distúrbios.1 Atualmente, o transplante representa a única forma de cura para o paciente, corrigindo o defeito metabólico naqueles que são submetidos a esse procedimento. O receptor adquire o fenótipo do doador e seus níveis de A1AT são normalizados.2
O princípio mais importante no tratamento da deficiência de alfa1antitripsina é evitar o tabagismo, que acelera significativamente a destruição causada pela doença pulmonar, associada à deficiência de A1AT, proporcionando redução da qualidade de vida e significativo encurtamento da longevidade dos indivíduos acometidos.2
CONCLUSÃO
O prognóstico da deficiência de A1AT é variável, cerca de 50% dos pacientes apresentam boa evolução, dos quais a metade tem aminotrasnferases normais e a outra metade, enzimas alteradas, porém sem evolução para insuficiência hepática crônica. Em torno de 25% dos casos evoluem para colestase persistente e descompensação hepática progressiva. No genótipo PiZZ parece haver associação entre a gravidade e a duração da disfunção hepática.6 O subdiagnóstico tem sido importante limitação tanto para o estudo da doença quanto para o seu tratamento adequado.3
A abordagem do recém-nascido e do lactente com a síndrome colestática constitui-se em desafio clínico importante. Associa-se a acometimento extra e intra-hepáticos, na maioria das vezes sem indícios clínicos que indiquem o seu diagnóstico definitivo. A deficiência de alfa1antitripsina está entre as doenças que precisam ser excluídas frente à colestase neonatal.15
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