RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. 3

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História da Medicina

Um pouco da vida e da obra da Madame Curie e os 85 anos da sua visita a Belo Horizonte

A brief account of Madame Curie's life and achievements, and the 85 years after her visit to Belo Horizonte, Brazil

Carlos Jorge Rodrigues Simal1; Viviane Santuari Parisotto2

1.Professor Associado do Departamento de Propedêutica Complementar da Faculdade de Medicina da UFMG, Médico Nuclear. Belo Horizonte, MG – Brasil
2. Professor Adjunto do Departamento de Propedêutica Complementar da Faculdade de Medicina da UFMG, Médica Nuclear e Pediatra. Belo Horizonte, MG – Brasil

Endereço para correspondência

Departamento de Propedêutica Complementar da Faculdade de Medicina da UFMG
Av. Alfredo Balena, 190 - 4º andar
CEP: 30130-100 Belo Horizonte, MG - Brasil
Email: simal@feliciorocho.org.br

Recebido em: 28/06/2011
Aprovado em: 20/08/2011

Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Madame Curie foi a primeira mulher a atuar como docente na Sorbonne, primeira a receber não apenas um, mas dois prêmios Nobel. Primeira cientista laureada pelo Nobel a ter filha também laureada. Descobriu dois novos elementos radioativos, o Polônio e o Rádio. Atuou na Primeira Guerra Mundial fazendo radiografia de soldados feridos. Em agosto de 1926, esteve em Belo Horizonte em visita ao Instituto do Radium, hoje Hospital Borges da Costa, e proferiu palestra na Faculdade de Medicina.

Palavras-chave: História da Medicina; Medicina Nuclear/história; Radiologia/história; Rádio (Elemento)/historia; Braquiterapia/historia; Pesquisadores/historia; Premio Nobel.

 

INTRODUÇÃO

No centenário da Faculdade de Medicina da UFMG foram celebrados também os 85 anos da visita de Marie Curie, a cientista mais renomada a proferir palestra na nossa Faculdade.

Primeira mulher a atuar como docente na Sorbonne, a receber não um, mas dois Prêmios Nobel, de Física e de Química, e primeira cientista premiada com o Nobel a ter um de seus filhos também laureado (Irène Curie, Prêmio Nobel de Química de 1935).

Não bastasse a sua superação como pesquisadora e docente, foi capaz de desenvolver, ao mesmo tempo, o que se chama hoje de extensão universitária. Educadora exemplar, deixou como legado a importância do trabalho multidisciplinar. Trabalhava em seu laboratório cercada por jovens químicos, físicos, médicos, além de, efetivamente, atuar em campo, criando e dirigindo as denominadas ambulâncias radiológicas em diferentes frentes de batalha, durante a Primeira Guerra Mundial. Capacitou pessoalmente cerca de 400 médicos radiologistas, 800 homens e 150 mulheres, como técnicos aptos a manusear o equipamento de Raios-X, trabalho considerado por ela de tamanha relevância, que o manteve até 1920.

Madame Curie descobriu dois novos elementos químicos, o Polônio e o Radio, e seu trabalho foi decisivo para o início da utilização da energia nuclear na Medicina.

O termo radium adquiriu significado de algo prestigioso, como seriam hoje os termos Platinum e Gold. Durante décadas, vários produtos foram lançados com a palavra Radium nos seus nomes ou menção à radioatividade nos seus rótulos, mesmo que não contivessem, de fato, materiais radioativos. Entre outros, foram lançados perfumes, cremes para a pele, manteiga, cigarros, água, chocolate e até supositório (Figura 1).1,2 Aguas minerais "radioativas" foram, e ainda são, muito prestigiadas. Esse prestígio está presente na origem de marca de produto de limpeza muito conhecido no nosso meio, o Sapólio Radium.

 


Figura 1 - Produtos diversos lançados na esteira do prestígio adquirido pelo termo radium nas primeiras décadas do século XX.1,2

 

Entre as honrarias científicas ao casal Curie, destaca-se a denominação de um elemento químico, o 96Cúrio, símbolo Cm, e a denominação de unidade de medição da atividade radioativa. Um Curie (1 Ci) foi definido como a atividade radioativa presente em um grama de 226Rádio. A unidade atual, para se enquadrar no Sistema Internacional, é o Bq (Becquerel), em homenagem ao descobridor da radioatividade, Antoine Henri Becquerel, mas a unidade Curie continua sendo largamente utilizada.

Marie Curie ajudou a aproximar a ciência da sociedade, pela sua excepcional capacidade de traduzir para o público em geral conceitos científicos complexos. Sua relevância no cenário científico internacional pode ser avaliada pelo elevado número de publicações a seu respeito, propiciando farta documentação, e de fácil acesso para quem se interesse pela vida e obra dessa notável mulher.3-8 Madame Curie escreveu a biografia de Pierre Curie e a sua biografia, propiciando interessante e agradável leitura.9-10 Há, ainda, a biografia escrita por sua filha, Eve.11

Maria Salomea Sklodowska nasceu em 07 de novembro 1867, em Varsóvia, na Polônia, quinta filha de um casal de professores, o pai de Física e a mae de escola de formação de meninas. Recebeu educação primorosa, apesar das grandes dificuldades financeiras enfrentadas pelos seus pais. Carinhosamente chamada pela sua família de Anciupecio e, também, de Manya (Mariazinha), este último apelido mantido mesmo após ter adotado o sobrenome do marido, Pierre Curie, inclusive assinando alguns documentos (Figura 2).6

 


Figura 2 - Assinatura de Marie Curie empregando o apelido de infância, Manya.6

 

A Polônia encontrava-se ocupada pela Rússia Czarista e submetida à grande repressão política, tendo sido seu pai, inclusive, demitido do cargo de diretor de escola, por suas convicções políticas e seu amor à Polônia.

Apesar de sua mae ter falecido em decorrência de tuberculose quando Maria tinha apenas 11 anos de idade, recebeu educação notável em diferentes línguas, Ciências e Matemática, assim como, no ensino de Literatura, História e da Língua Polonesa, proibida como língua oficial, para o ensino, pelo governo russo.

Desde jovem destacou-se como estudante brilhante e aos 16 anos graduou-se em primeiro lugar com louvor em todas as disciplinas no que se reconhece hoje como Ensino Médio. Ao final do Ensino Médio, sem perspectivas de ingressar no ensino universitário na Polônia, por não admitir mulheres, e necessitando auxiliar financeiramente sua irma mais velha a graduar-se em Medicina, na Sorbonne, trabalhou por quase sete anos como tutora em casa de família abastada.

Retornando à Varsóvia, sedimentou em sua alma os valores familiares e nacionais e entrou em contato, pela primeira vez, com um laboratório de pesquisa, que resultou em mudança da área escolhida para sua formação de ciências humanas para exatas. A oportunidade de trabalhar em um laboratório de pesquisa experimental é resultado do retorno de um primo que havia finalizado formação em Química Analítica na Rússia com Mendeleev, este último responsável pela organização dos elementos químicos na tabela periódica. Esse primo lecionava na clandestina Flying University, oficialmente denominada Museu do Ministério da Indústria e Comércio.

Finalmente, em 1891, aos 23 anos de idade, foi aceita na Universidade da Sorbonne, uma das poucas universidades europeias a aceitar mulheres. A Figura 3 mostra Marie estudante em 1892. Dispondo apenas de três francos ao dia, sem poder manter o aquecimento de seu quarto no Quartier Latin, optou por morar sozinha e não com sua irma, a fim de melhor concentrar-se nos estudos. Tal fato foi absolutamente inédito para a época em que as mulheres sequer andavam sozinhas na rua. Graduou-se em Ciências Físicas em primeiro lugar e, logo após, em Ciências Matemáticas em segundo lugar. No ano de sua formatura, estudavam na Sorbonne apenas 210 mulheres e cerca de 9.000 homens. Apenas duas mulheres graduaram-se em Ciências Físicas e apenas cinco em Ciências Matemáticas.

 


Figura 3 - Desenho de Maria quando era estudante na Sorbonne, em 1892.6

 

Terminada a graduação, embora decidida a retornar à Polônia, iniciou o estudo das propriedades magnéticas dos minerais, sob a supervisão do Professor Gabriel Lippmann, a fim de incrementar sua produção científica e, posteriormente, dar início ao seu doutoramento.

Embora tivesse convivido com os mais renomados cientistas da época e tivesse planos para o seu doutoramento, sentia-se fortemente comprometida com a Polônia e decidida a retornar à sua pátria. Foi nessa época que conheceu Pierre Curie, renomado cientista francês, responsável pela descrição do fenômeno da piezoeletricidade dos cristais (importante na detecção das radiações) e chefe do Laboratório da Escola Municipal de Física e de Química Industrial. A afinidade entre eles foi muito forte e em pouco tempo trocavam cartas científicas e pessoais. Sentiam-se pessoas absolutamente complementares: Marie extremamente obstinada e determinada e Pierre absolutamente preciso em seus ensaios. Assim, Marie não só transferiu suas pesquisas para o laboratório de Pierre, como passou a morar em seu apartamento e no ano seguinte formalizaram a uniao.

O casamento civil ocorreu em 26 de julho de 1895, na cidade de Sceaux, seguido de pequena recepção a familiares e poucos amigos íntimos da universidade, no jardim da casa dos pais de Pierre Curie. Foi planejado em todos os seus detalhes por Marie para ser um grande dia, porém diferente de todos os outros casamentos. Sem vestido branco, sem anel de ouro, sem cerimônia religiosa. Após o casamento, seguiram os noivos de bicicleta - compradas no dia anterior ao casamento - para a lua-de-mel pelo interior da França (Figuras 4 e 5).

 


Figura 4 - A viagem de lua-de-mel do casal Marie e Pierre Curie, uma tour pela França em bicicletas.8

 

 


Figura 5 - Marie e Pierre Curie em 1895, ano em que se casaram.6

 

Nos anos que se seguiram, Marie Curie dedicou-se ao estudo dos raios emitidos pelos sais de urânio e tório, objetivo de sua tese de doutorado sob orientação de Henri Becquerel. Após cerca de um ano, em 18 de julho de 1898, publicou o artigo "Raios emitidos pelo Uranium e Thorium" no qual relata a detecção das radiações emitidas a partir da pechblenda (variedade de uraninita), pela sua propriedade de ionizar o ar utilizando o piezoelectrômetro projetado por Pierre. Observou que a intensidade das radiações era muito mais elevada do que a esperada. Para explicar o achado era necessário haver outro componente radioativo na pechblenda. Isso culminou com a descoberta de dois novos elementos químicos, o Polônio (nome dado em homenagem à sua Pátria) e o Rádio. A propriedade de emitir energia na forma de radiação foi entao por ela denominada de radioatividade. Com esse artigo, Marie recebeu um prêmio de 3.800 francos da Academia de Ciências da França, pela primeira vez recebido por uma mulher. No entanto, o documento oficial foi endereçado a Pierre Curie, solicitando a ele que transmitisse os cumprimentos à sua esposa.

Em 1903, após quatro anos de árduo trabalho, o casal Curie conseguiu extrair e purificar um grama de 226Rádio de cerca de oito toneladas de pechblenda, permitindo o cálculo da massa atômica do novo elemento. Com esse trabalho, Marie defendeu sua tese de doutorado obtendo o título de Doutor em Física, très honorable. A defesa de sua tese foi motivo de surpresa geral na Academia de Ciências Francesa. Na época, apenas a alema Elsa Neumann havia obtido título de Doutor na área da Eletroquímica. Marie havia sido subestimada pela comunidade científica por ser considerada uma frágil e jovem esposa, recentemente mae da primeira filha (Irène).

Marie escreveu na biografia de Pierre Curie9: "Nós tínhamos uma alegria particular ao observar que nossos produtos com concentrado de Rádio eram todos espontaneamente luminosos. Pierre Curie, que havia desejado ver belas colorações, reconhecia que aquela particularidade inesperada lhe dava satisfação superior àquela que havia ambicionado... Nós estávamos, àquela época, inteiramente absorvidos pelo novo campo que se abria diante de nós, graças a uma descoberta tao inesperada. Apesar das dificuldades de nossas condições de trabalho, nós nos sentíamos muito felizes... As vezes voltávamos depois do jantar para dar uma espiada no nosso local de trabalho. Nossos produtos preciosos para os quais não tínhamos abrigo ficavam dispostos sobre mesas e prateleiras; por todos os lados podíamos ver suas silhuetas fracamente luminosas e essas luzes fugidias que pareciam pairar na escuridao eram para nós sempre um motivo novo de emoção e de encantamento." O descobrimento da radioatividade e de novos elementos radioativos rendeu ao casal Curie e a Henri Becquerel o Prêmio Nobel de Física em 1903 (Figura 6). Foi a primeira vez que uma mulher foi agraciada com o referido prêmio, que teve a sua primeira edição em 1901. Segue-se um período de significativa melhora das finanças e de grande produtividade científica do casal. Sua tese foi reproduzida inúmeras vezes em francês e em inglês pela própria Marie Curie. Em poucos anos, Marie publicou 19 artigos relacionados à sua tese, sendo 10 em coautoria com Pierre Curie.

 


Figura 6 - Certificado do Prêmio Nobel de Física de 1903, recebido pelo casal Curie e por Antoine Henri Becquerel. Curiosamente, na segunda página do certificado, o nome de Becquerel está erroneamente grafado sem a letra 'c'.6

 

A situação financeira se estabilizou. Pierre assumiu a cátedra de Física na Sorbonne e Marie tornou-se Professora da Escola Normal Superior de Sèvres, introduzindo noções de Física e aulas práticas em laboratório no currículo das normalistas. Ainda assim, o casal mantinha vida bastante simples, sem grandes luxos, exceto as viagens de férias e os gastos com flores e o jardim. Surpreendentemente, em plena "Belle Époque", Marie fez opção por viver em uma casa modesta, sem muitos móveis, de modo que ela mesma pudesse realizar os trabalhos domésticos.

Em 1906, o período de prosperidade foi interrompido pela morte prematura de Pierre, vítima de atropelamento, o que a abalou profundamente, resultando em quadro de profunda depressão. Após meses de reclusão, Marie retornou às atividades de docência na Escola de Sèvres e assumiu a cátedra de Física, até entao de Pierre, tornando-se a primeira mulher a lecionar na referida universidade e, progressivamente, retomou suas atividades de pesquisa, dedicando-se às particularidades químicas do Polônio e do Rádio.

Em 1911, um escândalo de proporções alarmantes atingiu Marie. Foi tornado público o seu romance com Paul Langevin, jovem físico, ex-aluno de Pierre, casado e pai de quatro crianças pequenas. Diante da repercussão do caso, ela deixou Paris, encontrando acolhimento na comunidade científica e nos amigos e colegas estrangeiros.

Ainda durante as repercussões na imprensa francesa do romance com Langevin, Marie recebeu, em 1911, o seu segundo Prêmio Nobel, desta vez de Química, pelas pesquisas sobre as propriedades químicas do Polônio e do Rádio. A Figura 7 mostra Marie Curie juntamente com grandes nomes das ciências à época.

 


Figura 7 - Madame Curie, a única mulher na Conferência Solvay em 1911 na cidade de Bruxelas. O químico e empresário Ernest Solvay é o terceiro da esquerda para a direita, assentado. Madame Curie conversa com Henry Poincaré. De pé, atrás dela, Ernest Rutherford. De pé, da direita para a esquerda, Paul Langevin e Albert Einstein.8

 

Durante a Primeira Guerra Mundial, atuou no atendimento aos soldados feridos, inclusive nas frentes de batalha, realizando radiografias com equipamentos montados em veículos, ambulâncias radiológicas denominadas na época de Petit Curies (Figura 8) e, embora não fosse médica, treinou inúmeros técnicos e enfermeiros, habilitando-os a trabalhar com os equipamentos de Raios-X. Publicou diferentes tratados na área de Radiologia, conquistando definitivamente os franceses e o mundo com a aplicação dos Raios-X para diagnóstico.

 


Figura 8 - . Madame Curie ao volante de uma ambulância radiológica, conhecida como "Petit Curies", que prestou grandes serviços aos soldados na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Fonte: acervo da Association Curie et Joliot-Curie.6

 

Posteriormente, dedicou-se, entao, à divulgação da Curieterapia (uso de isótopos radioativos para o tratamento de câncer) e à criação do Instituto do Radium em Paris, cujas atividades tiveram início em 1919. Também influenciou a criação de institutos semelhantes em outros países, como Inglaterra, Estados Unidos e Brasil.

Objetivando angariar fundos para fomentar o ensino e a pesquisa, aceitou ser entrevistada por Ms Marie Meloney, editora de respeitável revista feminina americana, em 1920. Estabeleceu-se forte vinculo de amizade entre as duas e, a partir daí, Madame Curie ganhou poderosa aliada, capaz de efetivamente facilitar o seu trabalho de divulgação da Ciência. A Figura 9 mostra Madame Curie em seu laboratório, em abril de 1921. Naquele mesmo ano visitou diversos laboratórios e universidades nos Estados Unidos, angariou fundos para o Instituto do Radium de Paris e fomentou diferentes projetos de pesquisa.

 


Figura 9 - Marie em seu laboratório no Instituto do Radium de Paris, abril de 1921.6

 

A partir de entao, apesar dos problemas de saúde e da postura discreta, avessa a eventos, fotografias e entrevistas, cativou a todos pela sua simplicidade e capacidade de se fazer entender ao abordar a importância das radiações ionizantes.

A partir de dezembro de 1933, quando apresentou quadro de provável colecistite, diagnosticado radiologicamente, a saúde de Marie começou a se deteriorar mais rapidamente. Não demostrava temor pela morte, embora tivesse consciência de que ela estava próxima. Preocupava-se, no entanto, com o futuro do Instituto do Rádio, em função do pouco tempo que restava a ela.

Refletia a respeito da causa de sua doença, questionando-se qual de seus trabalhos teria tido papel de mais influência. A essa altura já haviam sido propostos os conceitos de radioproteção e ela mesma cobrava de seus discípulos que manipulassem as fontes com pinças e usassem blindagens na prática diária do Instituto do Radium de Paris.

A Figura 10 mostra Marie em seu último ano de vida. Em 04 de julho de 1934, aos 66 anos de idade, Madame Curie faleceu em Paris, vítima de anemia perniciosa aplásica acompanhada de quadro febril de rápida evolução. Acredita-se, atualmente, que o quadro hematológico tenha sido uma manifestação secundária à leucemia induzida por radiação.12 Foi considerado, durante anos, que a sua enfermidade era decorrente de seus trabalhos com materiais radioativos. No entanto, em 1995, após a exumação de seu corpo para transferência para o Mausoléu Nacional da França (Panteao), a presumível contaminação com 226Rádio em seus restos mortais não foi evidenciada. O "Office de Protection contre les Rayonnements Ionisants" concluiu que a doença hematológica que a levara à morte fora provavelmente decorrente de sua exposição aos Raios-X durante a Primeira Guerra Mundial, e não de seus trabalhos com materiais radioativos.13

 


Figura 10 - Marie na sacada dos fundos do Instituto do Radium de Paris, Pavilhão Curie, em 1934, o ano de seu falecimento.6

 

Marie Curie deixou como legado às futuras gerações a sua obstinada determinação, incondicional devoção ao trabalho, tenacidade, inteligência e postura otimista, resultado de sua crença no positivismo científico. Representou, ainda, a luta das mulheres na virada do século 19 para o 20 pela conquista de seu lugar no mundo das Ciências. Desafiou costumes e deixou grande legado para as futuras gerações.

 

A REPERCUSSÃO DA VISITA DE MADAME CURIE A BELO HORIZONTE

Quando da sua vinda ao Brasil, Marie Curie viajou de navio pelo Atlântico Sul e, de acordo com a sua filha Eve, foi momento de grande prazer. Em carta à sua filha ela disse: "[...] temos visto peixes voadores. Temos visto que a nossa sombra pode ser reduzida a quase nada, pois temos o sol sobre as nossas cabeças. Vimos as constelações conhecidas desaparecerem no mar: a estrela Polar, a Ursa Maior. No Sul emergiu o Cruzeiro do Sul, uma constelação muito bela. Eu sei muito pouco acerca das estrelas que a gente vê por aqui [...]". Marie Curie esteve no Brasil de 15 de julho a 28 de agosto de 192614 e não perdeu a chance de se banhar algumas vezes na baía da Guanabara.11

De modo a contextualizar a passagem da Mme. Curie a Belo Horizonte, vale apresentar trechos, na grafia original, de matérias publicadas à época no Minas Gerais.

Na edição dos dias 16 e 17 de agosto de 1926, apresenta, nas páginas 6 e 7, matéria intitulada "O poema do Radio" abordando os tópicos: "um casal de sabios; a pobreza e o exito; a generosidade heroica; a morte de Pierre Curie e a Sra. Curie e a sua filha". No último parágrafo da matéria diz: "[... ] a Sra. Curie está ainda em pleno vigor da vida. Tem 59 annos e trabalha como nos dias da mocidade [...]"

Na página oito da mesma edição do Minas Gerais apresenta a matéria intitulada:

"Madame Curie - chegou á Capital a notável Scientista".

"Bello Horizonte hospeda, desde hontem, a notavel radiologista franceza madame Curie, credora da maior admiração do mundo scientifico, pelo abnegado esforço e louvavel dedicação com que se tem empenhado, no labor constante das descobertas de applicações radiologicas, na sciencia medica, para minorar os sofrimentos da humanidade."

Foram recepcioná-la um representante do Presidente do Estado, três Secretários de Estado, o Prefeito de Belo Horizonte, o Chefe de Polícia, o Diretor da Imprensa Oficial, Professores Hugo Werneck e Borges da Costa, respectivamente, Diretor e Vice-Diretor da Faculdade de Medicina, professores da FM e "crescido numero de alumnos das nossas escolas superiores."

"Madame Curie, que viajou em carro especial ligado ao rapido, vem acompanhada de sua filha senhorinha Irene Curie [... ] A ilustre senhora desembarcou debaixo de demorada salva de palmas [...]"

Na edição de 18 de agosto de 1926 registra na sua página 9 matéria intitulada:

"Madame Curie - o dia de hontem".

"[... ] esteve hontem, acompanhada de sua comitiva, em diversos estabelecimentos hospitalares. Foi primeiro ao Instituto do Radium, onde foi recebida pelo director, sr. dr. Borges da Costa, corpo clinico e demais funccionarios. Examinou detidamente todos os departamentos daquelle instituto, referindo-se elogiosamente á sua perfeita organização e irreprehensivel apparelhamento. "

"As 16 e meia horas, fará uma conferencia na Faculdade de Medicina sobre radioatividade, applicações desta e organização do Instituto do Radium de Paris. O regresso da notavel radiologista está marcado para hoje, pelo nocturno de luxo."

Quando da sua visita, no dia 17 de agosto de 1926, Madame Curie presenteou o Instituto do Radium com três tubos de 226Rádio que foram acrescentados aos tubos e agulhas já existentes no Instituto e que eram utilizados na curieterapia.15 Agulhas e tubos de 226Rádio foram utilizados, em todo o mundo, durante cerca de 80 anos para a curieterapia de lesões benignas e malignas. Não são mais utilizadas, principalmente em decorrência dos cuidados atuais com radioproteção, mas foram essenciais na criação das bases para as técnicas modernas de braquiterapia. As agulhas podiam ser introduzidas em tumores ou mesmo apostas a lesões dérmicas e desempenharam relevante papel na Medicina, levando à cura incontáveis pacientes em todo o mundo.16

De acordo com o Professor Joao Amílcar Salgado, criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais da FM-UFMG (Cememor), a palestra aqui proferida por Madame Curie, no dia 18 de agosto de 1926, ocorreu no Salao Nobre da Faculdade.

As Figuras 11 e 12 mostram dois importantes registros da visita histórica da Mme. Curie, acompanhada da sua filha Irène. O Centro de Memória da Faculdade de Medicina guarda a preciosa foto das visitantes ilustres.

 


Figura 11 - Livro de assinaturas do Instituto do Radium com o registro da presença da Mme. Curie e de sua filha Irène no dia 17 de agosto de 1926.
Fonte: acervo do Centro de Memória da FM-UFMG.

 

 


Figura 12 - Foto da visita da Mme. Curie a Belo Horizonte em agosto de 1926. Ao centro, Madame Curie; à sua direita, sua filha Irène. Atrás de Irène, o patologista Carlos Pinheiro Chagas; e à direita dela, na sequência, os médicos Eduardo Borges da Costa, Flávio Marques Lisboa, Paulo Mascarenhas Tamm e Joao Barbará. A esquerda de Marie Curie, na sequência, a médica e futura primeira deputada federal brasileira, Carlota Pereira de Queiroz, a zoóloga e pioneira do feminismo no Brasil, Bertha Maria Júlia Lutz, os médicos José Baeta Viana e Luiz Adelmo Lodi.
Fonte: acervo do Centro de Memória da FM-UFMG

 

O Prof. Joao Amilcar relatou ao autor circunstância curiosa da visita de Marie e Irène Curie a Belo Horizonte. Disse ele: "Ouvi, mas não tenho qualquer registro escrito, de vários dos antigos ter havido certa preocupação por parte das esposas dos professores da Faculdade de Medicina pela presença daquelas duas mulheres estrangeiras, uma delas viúva, junto a seus maridos. Além disso, estavam acompanhadas da primeira deputada brasileira, a médica paulista Carlota Pereira de Queiroz, defensora de novos direitos para a mulher. Fizeram entao pressão para que a permanência das três visitantes fosse a menor possível. Isso explicaria por que, sendo a viagem ainda por via ferroviária, a visita de mulheres tao notáveis tenha durado tao pouco." É bom lembrar que Madame Curie aqui esteve no auge dos seus 59 anos! Talvez o fato relatado tenha sido consequência do caso Langevin que, como mencionado, teve profunda repercussão na imprensa francesa ou, talvez, mero comportamento conservador da sociedade belo-horizontina do início do século passado.

 

CONCLUSÃO

A visita de personalidade tao ilustre e marcante como Mme. Curie, seguramente uma das maiores cientistas de todos os tempos, é motivo de honra para todos nós e é mais um belo exemplo da grandeza da nossa Faculdade de Medicina.

 

REFERENCIAS

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3. Hersevey GC. Marie Curie and her contemporaries: The Becquerel-Curie Memorial Letters. J Nucl Med. 1961;25:117-31.

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6. Mould RF. The Discovery of radium in 1898 by Maria Sklodowaska-Curie (1867-1934) and Pierre Curie (1859-1906) with commentary on their life and times. Br J Radiol. 1998;71:1229-54.

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10. Curie M. Marie Curie, Pierre Curie. Autobiographical notes. [Citado em 2011 maio 30]. Disponível em: http://etext.virginia.edu/etcbin/toccer-new2?id=CurPier.sgm&images=images/modeng&data=/texts/english/modeng/parsed&tag=public&part=9&division=div2

11. Curie E. Madame Curie: a biography. Garden City, NY: Country Life Press; 1937.

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13. Butler B. X-rays, not radium, may have killed Curie. Nature. 1995;377:96.

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15. Martins BB. A vida é esta... Belo Horizonte: BB Martins; 2000. p. 106

16. Mazeron JJ, Gerbaulet A. Le centenaire de la découverte du radium. Cancer Radiothér. 1999;3(1):19-29.