ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Falência hepática aguda em crianças e adolescentes
Acute liver failure in children and adolescents
Leticia Drumond Alberto1; Thaís Costa Nascentes Queiroz2; Eleonora Druve Tavares Fagundes3; Alexandre Rodrigues Ferreira4
1. Médica Pediatra. Residente de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Gastroenterologista Pediatra. Mestre em Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica. Membro do grupo de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médica Pediatra. Doutora em Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica. Professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Membro do grupo de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Médico Pediatra. Doutor em Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica.Professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Membro do grupo de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Gustavo Henrique Silva
E-mail: gustavohenrique_s@yahoo.com.br
Instituição: Hospital Júlia Kubitschek da FHEMIG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A halência hepática aguda (FHA) é uma condição rara, mas devastadora, que evolui para falência de múltiplos órgãos e óbito como seu curso natural. A assistência intensiva e o transplante hepático possibilitaram a modificação da história natural e aumento da sobrevida. A FHA, geralmente, se apresenta em uma criança ou adolescente previamente hígido que inicia com sintomas inespecíficos de duração variada e com a evolução do quadro surgem outros sintomas como icterícia, vômitos, hipoglicemia e convulsões, tornando a síndrome clínica evidente. O diagnóstico etiológico é importante, uma vez que algumas doenças de base possuem tratamentos específicos. Contudo, em até 50% dos casos, um diagnóstico específico não é estabelecido. Sua presença será estabelecida se há evidência bioquímica de falência hepática aguda, na ausência de doença hepática crônica e associada à coagulopatia de origem hepática não corrigível pela vitamina K (RNI > 1,5 em paciente com encefalopatia hepática ou RNI > 2 na ausência de encefalopatia hepática). O tempo entre o início do quadro clínico e o desenvolvimento da encefalopatia deve ser inferior a oito semanas. O reconhecimento e o encaminhamento para centro especializado devem ser o mais precoce possível. A indicação de transplante hepático deve ser avaliada periodicamente. O tratamento intensivo e multidisciplinar é essencial para sobrevida.
Palavras-chave: Falência Hepática Aguda; Criança; Adolescente; Terapia Intensiva.
INTRODUÇÃO
A falência hepática aguda (FHA) é uma síndrome clínica grave de rápida evolução, que frequentemente leva ao transplante hepático de urgência. É considerada uma condição devastadora, uma vez que crianças e adolescentes previamente hígidos desenvolvem disfunção hepática e tornam-se criticamente enfermos em poucos dias, evoluindo para falência de múltiplos órgãos e óbito. Há muitas causas possíveis para o desenvolvimento do quadro, sendo as doenças metabólicas as etiologias mais comuns em recém-nascidos e lactentes. Em crianças maiores, os vírus (principalmente da hepatite A), toxicidade medicamentosa e hepatite autoimune passam a ser as causas mais frequentemente encontradas. Em 50% dos casos não se identifica um motivo e a FHA é classificada como de etiologia indeterminada.1,2
Não há dados recentes disponíveis a respeito de sua incidência em crianças no Brasil. Na literatura encontram-se registros sobre a ocorrência de 46 casos entre 1992 e 1999 em todo o país e 23 casos entre 1984 e 2002 somente na região Norte. Nos Estados Unidos esse dado também não é descrito, mas sabe-se que a FHA é responsável por 10-15% dos transplantes hepáticos pediátricos anualmente. Sua frequência estimada para todas as faixas etárias é de 17 casos por 100.000 pessoas por ano.3,4
O objetivo deste estudo é a realização de revisão da literatura atualmente disponível sobre falência hepática aguda em crianças e adolescentes, abordando os aspectos clínicos, fisiopatológicos, diagnósticos e relacionados ao tratamento.
REVISÃO DA LITERATURA
Foi realizada busca por artigos em português e inglês publicados nos últimos 20 anos sobre falência hepática aguda em crianças e adolescentes. Essa busca foi feita em livros-textos de referência em Hepatologia Pediátrica, na internet em sites que sumarizam as evidências disponíveis na literatura (Uptodate, Dynamed) e em todas as bases de dados disponíveis no Portal Capes (entre elas MEDLINE, PUBMED, Elsevier, Web of Science). Foram incluídos artigos originais, de revisão e séries de casos encontrados com base nas palavras-chave: liver failure, acute, child. Além disso, outros artigos relacionados nas referências dos artigos pesquisados também foram incluídos.
DISCUSSÃO
Definição
Em adultos diagnostica-se a FHA quando se observa o desenvolvimento de encefalopatia hepática até oito semanas após o surgimento dos primeiros sinais de disfunção hepática. Esse critério apresenta pontos falhos, como a dificuldade de caracterização da encefalopatia, uma vez que nos pacientes em FHA as mudanças no estado mental podem ser secundárias a outras afecções como infecções, distúrbios metabólicos e ansiedade. Além disso, o momento de surgimento dos primeiros sinais de disfunção hepática, usualmente identificado como a icterícia, é examinador-dependente e pode não ser bem definido. Em Pediatria, acrescenta-se a essas considerações dificuldade no reconhecimento dos sinais da encefalopatia em lactentes e crianças menores.3
Dessa forma, o grupo de hepatologia do King's College em Londres define a FHA em Pediatria como uma doença rara e multissistêmica, na qual há comprometimento importante da função hepática associado à necrose hepatocelular, com ou sem encefalopatia, em um paciente sem doença hepática subjacente reconhecível. Essa definição mais abrangente traz o conceito de que a FHA é um quadro clínico que envolve múltiplos órgãos e sistemas e, em crianças, pode ocorrer mesmo na ausência de encefalopatia e revelar hepatopatia crônica assintomática.1,2
Em crianças observa-se a coagulopatia incorrigível como um achado consistente e confiável da FHA mesmo na ausência de alterações do estado mental. Com base nisso, o critério para o diagnóstico atualmente mais utilizado em crianças foi desenvolvido pelo Pediatric Acute Liver Failure Study Group e inclui evidências bioquímicas de falência hepática aguda (como aumento de transaminases e bilirrubinas) associada à coagulopatia de origem hepática (RNI> 1,5 ou TP >15 segundos em relação ao controle) sem resposta à administração parenteral de vitamina K, em paciente com encefalopatia hepática e sem história ou sinais que sugiram hepatopatia crônica prévia. O tempo entre o início do quadro clínico e o desenvolvimento da encefalopatia deve ser de menos de oito semanas. Em pacientes com RNI > 2 ou TP > 20 segundos em relação ao controle, sem resposta à administração parenteral de vitamina K, faz-se o diagnóstico independente de sinais de encefalopatia hepática.3
Apresentação clínica
A FHA geralmente manifesta-se em uma criança ou adolescente previamente hígido, iniciando com sintomas inespecíficos de duração variada, como desconforto abdominal, fraqueza e anorexia com ou sem febre. Esse pródromo pode apresentar períodos de remissão intercalados com nova piora e persistir por dias ou semanas antes da busca por assistência médica. Com a evolução do quadro surgem outros sintomas como icterícia, vômitos, hipoglicemia e convulsões, tornando a síndrome clínica evidente.3
A encefalopatia, quadro neuropsiquiátrico associado à disfunção hepática, está presente em 53% dos casos à admissão e surge em outros 15% nos primeiros sete dias de internação hospitalar. É dividida em cinco estágios clínicos de gravidade (Tabela 1) que possuem importância prognóstica.2-4
Etiologias
Etiologias específicas podem ser classificadas como infecciosas, imunológicas, metabólicas, malignas, vasculares ou relacionadas a drogas/toxinas. O diagnóstico etiológico é importante, uma vez que algumas doenças de base possuem tratamentos específicos (Tabela 2).2-4
A investigação adequada a partir da história clínica e exame físico é fundamental, sendo importante questionar a respeito do momento de início dos sintomas, contato com portadores de hepatites virais, história transfusional, história de depressão, tentativas de autoextermínio e outros comportamentos de risco. Listar todos os medicamentos presentes no domicílio, incluindo medicina alternativa, ervas, plantas e cogumelos e checar a possibilidade de ingestão acidental ou intencional. Interrogar sobre uso de álcool ou drogas ilícitas (ex. ecstasy, cocaína, solventes), história familiar de doença de Wilson, hepatites virais, doenças autoimunes, morte sem causa definida na família. Em recém-nascidos deve-se investigar história materna de infecções na gestação incluindo herpes simples, história perinatal de sepse e consanguinidade dos pais. Avaliar atraso no desenvolvimento e história de convulsões ou sangramentos.3,4
No exame físico é importante avaliar o crescimento, desenvolvimento e estado nutricional. Checar evidências de coagulopatia, icterícia, hepatomegalia, edema e classificar a encefalopatia. Hálito hepático é raro. Achados como ascite, esplenomegalia, prurido, baqueteamento digital, eritema palmar, xantomas, circulação colateral e déficit no crescimento sugerem descompensação de doença crônica prévia ou quadro subclínico com apresentação aguda.3,4
A investigação laboratorial muitas vezes torna-se um desafio diante da rápida evolução do quadro, da gravidade do paciente e da necessidade de grandes volumes de sangue para a propedêutica. Dessa forma, recomenda-se uma abordagem baseada nas causas mais comuns em cada faixa etária, priorizando a identificação das causas tratáveis e das causas que contraindicam o transplante hepático.3
Outras etiologias descritas são as infecções por vírus Epstein Barr, citomegalovírus, hepatite B, hepatites não A e não B, intoxicações por outras substâncias sabidamente hepatotóxicas ou reações idiossincráticas, mitocondriopatias, defeitos da síntese de ácidos biliares, doenças do ciclo da ureia, intolerância hereditária à frutose, síndrome hemofagocítica, deficiência de alfa-1 antitripsina, síndrome de Budd-Chiari, cardiopatia congênita, asfixia grave, entre outras.3
Propedêutica na FHA
Na avaliação inicial os seguintes exames devem ser solicitados: bilirrubinas, hemograma com plaquetas, aminotransferases, fosfatase alcalina, GGT, albumina, ureia, creatinina, amônia, TTPA, RNI, tempo de protrombina, colesterol total, fator V ou VII (a cada 24 horas), grupo sanguíneo, fator Rh. A avaliação de hemocultura, urocultura, Rx tórax e US com doppler hepático, deverão ser avaliados de acordo com a necessidade.
Na monitoração e seguimento do paciente deve-se avaliar: glicemia a cada seis ou duas horas se distúrbios glicêmicos presentes, íons (sódio, potássio, cloro, cálcio, fósforo, magnésio), bicarbonato, lactato, gasometria arterial (a cada 12 horas).
Na avaliação neurológica, se disponível, deve ser realizado EEG à admissão para parâmetro de controles subsequentes e, dependendo da avaliação clínica e necessidade para esclarecimento diagnóstico, tomografia computadorizada ou ressonância magnética podem ser necessárias.
Em todos os pacientes é importante buscar a etiologia. Assim, quando da avaliação etiológica, os seguintes exames devem ser solicitados: ceruloplasmina, cobre sérico, fator antinuclear (FAN), antimúsculo-liso (AML), antiLKM1, eletroforese de imunoglobulinas, amilase, lipase, anti-HAV IgM e IgG, anti-HBc IgM e total, HbsAg, anti-HCV, anti-HEV, EBV, citomegalovírus, herpes simples, HIV, análise toxicológica, alfa-1-antripsina sérica, ferritina, ferro e transferrina. Conservar pelo menos dois frascos com 5 mL de soro do paciente, colhido à admissão, para exames posteriores que se fizerem necessários (freezer a -20ºC). Na avaliação urinária solicitar análise toxicológica, cromatografia de aminoácidos, succinilacetona, dosagem cobre em urina de 24 horas, ácidos orgânicos e pesquisa de açúcares redutores.
A avaliação histológica do fígado não costuma ser realizada, por ser de pouca utilidade para o diagnóstico e porque a coagulopatia contraindicaria a biópsia.
Tratamento
Uma vez reconhecida a FHA, devem ser adotadas várias linhas paralelas de cuidado com o objetivo de realizar o diagnóstico etiológico, monitorizar a função dos diversos órgãos e sistemas envolvidos, prevenir, identificar e tratar as complicações e oferecer o suporte clínico necessário. Idealmente, o paciente deve ser encaminhado a um centro de terapia intensiva pediátrico em um serviço preparado para a realização do transplante hepático, onde poderá ser monitorizado, principalmente em relação às alterações de estado mental, sinais de infecção secundária, distúrbios eletrolíticos e balanço hídrico. As principais causas de mortalidade são as complicações infecciosas e o edema cerebral.1,2-10
O manejo inicial é semelhante, independentemente da idade, e de acordo com os princípios de suporte avançado de vida em Pediatria. Destaca-se como ponto-chave a orientação de evitar a prescrição de medicamentos que não tenham benefício comprovado. Para os pacientes com etiologia tratável definida (Tabela 2), deve ser adotado o tratamento específico o quanto antes para maximizar as chances de recuperação espontânea. Nos casos de etiologia indefinida ou não tratável, a prevenção e abordagem das complicações é essencial para a estabilização do paciente até a realização do transplante.1,2
Distúrbios hídricos e metabólicos
Os distúrbios metabólicos são frequentes, principalmente a hipoglicemia, que deve ser evitada e/ou tratada com glicose em infusão contínua, podendo ser necessárias taxas de infusão de até 15 mg/kg/min. A hiponatremia na maioria das vezes é dilucional e, em geral, não está indicada a reposição de sódio. A hipocalemia e a hipofosfatemia devem ser corrigidas, bem como os distúrbios ácido-base. Mais comumente observa-se alcalose inicial e o surgimento de acidose pode sugerir quadro infeccioso associado. Alguns pacientes, especialmente os que evoluem com insuficiência renal, podem apresentar hiperfosfatemia, considerada um sinal de mau prognóstico.1,2,4,10
O manejo hídrico deve ser cuidadoso e, como regra geral, o aporte de fluidos inicial pelas vias oral e endovenosa, incluindo a diluição de medicamentos e hemoderivados, não deve ultrapassar o volume de manutenção indicado para o peso do paciente. Pacientes em FHA são sensíveis a volume e podem desenvolver congestão pulmonar e edema periférico caso recebam aporte excessivo. Em caso de choque, a ressuscitação volêmica e o suporte pressórico devem ser realizados normalmente até a estabilização hemodinâmica, com a noradrenalina como vasopressor inicial de escolha. Em caso de ascite ou hiponatremia dilucional está indicada a restrição hídrica cuidadosa, com aporte em torno de 85-95% do recomendado.10
Nutricional
O suporte nutricional é importante para evitar o estado catabólico. A via enteral é preferencial, com necessidade de sonda gástrica ou jejunal de acordo com as alterações do estado mental e risco de aspiração. O aporte proteico deve ser limitado a 0,5-1 g/kg/dia. A nutrição parenteral somente deve ser prescrita caso a alimentação enteral esteja contraindicada.2,10
Infeccioso
Devido à disfunção imunológica, os pacientes em FHA encontram-se mais suscetíveis a quadros infecciosos. Os sintomas podem ser sutis, como taquicardia, sangramentos gastrintestinais, oligúria ou mudanças no estado mental. Febre pode ou não estar presente. Não há dados claros a respeito do benefício da profilaxia antimicrobiana. A melhor evidência disponível indica a monitorização a partir da coleta regular de culturas e a prescrição de antibióticos somente na suspeita de infecções, quando deve ser iniciada cobertura de amplo espectro, considerando a possibilidade de sepse fúngica nos casos refratários.1,10
Hematológico
A coagulopatia é importante, porém não há risco significativamente aumentado de sangramentos devido à disfunção balanceada na síntese dos fatores pró-coagulantes e anticoagulantes. Dessa forma, não estão indicadas medidas como transfusão de plasma ou fator V recombinante visando à correção do coagulograma. As mesmas somente estão recomendadas nos casos de sangramento ativo ou antes de procedimentos invasivos. A transfusão de concentrado de hemácias deve ser feita nos casos de depleção de volume secundária a hemorragias.1,2,10
A falência medular é uma complicação potencialmente fatal que acomete cerca de 10% dos pacientes com FHA induzida por infecções virais não A e não B. Nas citopenias recomenda-se a avaliação especializada pelo hematologista, uma vez que a recuperação espontânea pode não ocorrer e o transplante de medula óssea pode ser necessário.1
Gastrintestinal
A ascite pode estar presente em alguns pacientes, precipitada por fatores como volume excessivo de fluidos administrados, hipoalbuminemia e infecções subjacentes. A primeira linha de tratamento é a restrição hídrica. Diuréticos devem ser reservados para casos em que haja comprometimento respiratório ou sobrecarga volêmica generalizada, quando deve ser iniciado o uso associado de espironolactona e furosemida por via oral, na proporção de 2,5 mg/kg/dia de espironolactona para cada 1 mg/kg/dia de furosemida.10
A hemorragia digestiva não é frequente nos casos de FHA. As causas mais comuns são úlceras, varizes de esôfago ou gastropatia da hipertensão porta. À admissão do paciente, fazer prevenção com ranitidina, 1,5 mg/kg/dose de seis em seis horas, ou omeprazol, 0,8 a 2 mg/kg/dia em duas doses. 3,4
Pancreatites clínica e bioquímica estão associadas à obstrução de múltiplos órgãos em crianças criticamente enfermas. Caso esteja presente, o manejo glicêmico e hídrico torna-se mais desafiador.10
Hemodinâmico
Hipotensão secundária inicialmente à vasodilatação, podendo, com a progressão da doença, ser secundária à diminuição do débito cardíaco ou deterioração da função cerebral devido ao edema cerebral. A monitoração eletrocardiográfica, pressão arterial, pressão venosa central e lactato devem ser realizados. O uso de vasopressor como a noradrenalina pode ser necessário, com o objetivo de manter perfusões cerebral e renal adequadas.3,4
Renal
É importante que a equipe assistente permaneça atenta aos sinais de piora da função renal, uma vez que os pacientes em FHA estão sob altor risco de desenvolver deterioração da mesma. O quadro instável, com risco de hipotensão, choque séptico e hemorragias, associado ao uso de diuréticos e antibióticos nefrotóxicos e necessidade de restrição hídrica, pode precipitar azotemia pré-renal, necrose tubular aguda e síndrome hepatorrenal. Esta última, embora mais rara, deve ser controlada com o uso de terlipressina ou noradrenalina associada à albumina até que o transplante seja concretizado. Quando indicada, a terapia de substituição renal não deve ser adiada.1,2,10
Neurológico
A encefalopatia hepática é diagnosticada em avaliações seriadas do comportamento, cognição, exame neurológico e, ocasionalmente, com o eletroencefalograma. O tratamento inicial inclui redução dos estímulos excessivos, elevação da cabeceira a 30 graus, restrição da ingestão proteica ao máximo de 1 g/kg/dia, tratamento de condições associadas como sepse e, se possível, a suspensão de medicações sedativas que possam interferir no estado mental do paciente.
Para os casos de encefalopatia progressiva, sugere-se terapia medicamentosa com lactulose na dose inicial de 0,4 a 0,5 g/kg a cada seis horas por via enteral com ajustes de dose objetivando a obtenção de duas a três evacuações de fezes macias por dia. Esse tratamento é empírico e, na literatura, há somente evidências fracas que demonstram seu benefício. A descontaminação intestinal com rifaximina ou neomicina pode ser utilizada como segunda linha de tratamento, mas ototoxicidade e nefrotoxicidade são efeitos colaterais importantes do uso da neomicina. A intubação orotraqueal está indicada a partir da classificação em grau III, quando o risco de evolução para edema cerebral é aumentado e as medidas de prevenção e/ou tratamento da hipertensão intracraniana (HIC) devem ser iniciadas. No caso de crises convulsivas indica-se o uso de fenitoína como primeira escolha, devendo-se evitar drogas de meia-vida longa e que interferem de maneira mais significativa na avaliação do estado mental.10,11
Para o acompanhamento da HIC, a monitorização direta da pressão intracraniana é o método mais sensível e específico, sendo superior às opções não invasivas como a tomografia computadorizada de crânio e a ultrassonografia transcraniana. Os riscos relatados incluem sangramento discreto em 10 a 20% dos casos. Em Pediatria, seu uso permanece controverso devido à falta de evidências que o associem a aumento na sobrevida, sendo pouco utilizado na maioria dos centros.
O manejo do edema cerebral envolve suporte intensivo e meticuloso, com uso racional de fluidos, ventilação adequada e controle térmico rigoroso para permitir melhor controle do fluxo capilar cerebral. Sugere-se manter os seguintes parâmetros: temperatura corporal central 35-36ºC, SatO2>95%, AH 85-95% da manutenção, PAD>40 mmHg, elevação da cabeceira a 20-30º e sedação adequada. Manter normoglicemia e normocapnia. As medidas específicas para redução do edema cerebral incluem solução salina hipertônica a 3% para manter o sódio sérico entre 145 e 150 mEq/L e manitol 20% na dose de 0,5 a 1 g/kg endovenoso com o objetivo de criar um gradiente osmótico favorável para extrair água livre das células cerebrais e induzir diurese osmótica.10,11
Outras medidas
A N-acetil-cisteína (NAC) restabelece os estoques mitocondriais e citossólicos de glutationa e é considerada o tratamento de escolha para a intoxicação por acetaminofeno. Alguns estudos realizados em adultos sugeriram o benefício de seu uso em pacientes com FHA de qualquer etiologia e a NAC endovenosa passou a ser incorporada ao tratamento geral da FHA em alguns centros na Europa e América do Norte.12,13
Em Pediatria, estudo retrospectivo publicado em 2007 com 170 crianças corroborou a hipótese de que seu uso pudesse ser benéfico em crianças, com efeitos colaterais mínimos. No entanto, em 2013, foi publicado estudo randomizado, placebo controlado e duplo-cego com 184 pacientes pediátricos, que avaliou o uso endovenoso contínuo de NAC por sete dias, observando uma menor sobrevida com o fígado nativo nas crianças que receberam a medicação, principalmente entre os menores de dois anos com encefalopatia graus 0 ou I.12,13
Sendo assim, não há evidências suficientes na literatura atual para recomendar o uso de NAC para crianças em FHA não relacionada ao paracetamol e novos estudos de boa qualidade metodológica são necessários para avaliar seus possíveis benefícios.12,13 No HC-UFMG, não se utilizou NAC para FHA em Pediatria não relacionada ao paracetamol.
Avaliação prognóstica e indicação de transplante hepático
A determinação de um ponto de corte entre as chances de recuperação espontânea da função hepática e a falência irreversível é tarefa difícil e vários marcadores prognósticos já foram propostos. No entanto, os guias de predição atualmente disponíveis falham por não conseguirem refletir a relação dinâmica e complexa existente entre os múltiplos fatores envolvidos. Os métodos-padrão utilizados em adultos, como os critérios do King's College e os critérios de Clichy, não possuem boa acurácia para aplicação em crianças, principalmente devido ao baixo valor preditivo negativo.1,2,5,14
Um guia de predição prognóstica baseado em unidades de lesão hepática (LIU) foi derivado e validado para a estratificação da gravidade da FHA pediátrica de acordo com o risco de mortalidade. Esse escore utiliza três parâmetros bioquímicos (bilirrubina total, RNI/tempo de protrombina e amônia) e apresentou o maior valor preditivo positivo quando foram considerados para o cálculo os valores mais altos atingidos durante a internação. A acurácia para predição de morte ou necessidade de transplante em quatro semanas foi de 86,3%; baixo risco de morte ou transplante hepático (LIU < 209) e alto risco de morte ou transplante hepático (LIU > 370).14,15
Até o momento, nenhum dos modelos disponíveis é adequado para guiar objetivamente as decisões a respeito da necessidade de transplante dos pacientes pediátricos em FHA. Dessa forma, a melhor opção parece ser avaliação contínua e global feita por equipe experiente que leve em conta a etiologia do quadro e a condição clínica dinâmica do paciente.10
Dados do Pediatric Acute Liver Failure Study Group realizado com crianças e adolescentes na América do Norte e Europa mostraram que os desfechos variam em função da etiologia, idade e grau da encefalopatia. A recuperação espontânea foi maior entre os pacientes intoxicados por acetaminofeno (94%) e menos frequente nos pacientes com doenças metabólicas (44%). Também houve baixas taxas de sobrevida com o fígado nativo naqueles menores de três anos e nos que apresentaram encefalopatia graus III ou IV.16
Transplante hepático
O transplante hepático é, atualmente, a única opção disponível para o tratamento da FHA irreversível, uma vez que os tratamentos administrados aos casos sem etiologia tratável são considerados suportivos e não tiveram efeito nas taxas de melhora espontânea. Uma seleção cuidadosa dos candidatos é essencial para minimizar os riscos de se indicar o procedimento desnecessariamente.5
Os resultados pós-transplante na FHA pediátrica são piores quando comparados aos de crianças hepatopatas crônicas ou aos adultos com FHA, mas têm sido melhora, provavelmente, devido à maior ocorrência de transplantes intervivos. Essa opção torna-se extremamente válida por reduzir o tempo de espera pelo órgão diante de uma doença de evolução rápida e devastadora, mas está relacionada a dilemas éticos associados aos riscos, ainda que reduzidos, impostos ao doador.10,17
Em 11-20% dos casos pode haver contraindicações ao procedimento, em geral relacionadas à doença de base (não passível de cura com o transplante) ou à gravidade do quadro clínico (risco aumentado de desfechos negativos). Contraindicações absolutas são midríase fixa, sepse não controlada, doença mitocondrial ou metabólica sistêmica, insuficiência respiratória grave. Contraindicações relativas são necessidade de suporte inotrópico progressivo, infecção em tratamento, pressão de perfusão cerebral abaixo de 40 mmHg por mais de duas horas e complicações neurológicas graves ou progressivas.2,5
Entre os pacientes pediátricos transplantados por FHA os resultados descritos revelam sobrevida de até 74% em um ano e 69% em quatro anos.10
CONCLUSÃO
A FHA é uma condição complexa, com muitas etiologias possíveis, podendo ser um desfecho comum de diversas situações. Deve ser identificada rapidamente visando à abordagem precoce das causas tratáveis, o manejo das complicações e a indicação do transplante no tempo adequado. Ainda hoje, apesar dos avanços envolvendo o cuidado intensivo e as técnicas de transplante hepático, os resultados, em geral, permanecem ruins, com alta mortalidade.3,4,14
A baixa qualidade das evidências científicas disponíveis para Pediatria traz sérias responsabilidades aos médicos assistentes, fazendo-se necessário o acompanhamento multidisciplinar desses pacientes para a construção de uma abordagem individualizada. Recomenda-se a participação do hepatologista pediatra, do intensivista e da equipe de transplante hepático nas escolhas que envolvem a condução dos casos. A etiologia tratável, a possibilidade de recuperação com o fígado nativo, o risco de deterioração sem transplante e as comorbidades associadas são algumas das questões que permeiam as decisões clínicas.3
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