ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Problemas gestacionais de alto risco comuns na atenção primária
High-risk pregnancy problems common in the primary care
Pâmela Torquato de Aquino1; Bernardino Geraldo Alves Souto2
1. Acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar. São Carlos, SP - Brasil
2. Médico. Doutor. Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG - Brasil
Bernardino Geraldo Alves Souto
E-mail: bernardino@viareal.com.br
Recebido em: 19/02/2014
Aprovado em: 12/01/2015
Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
Revisou-se a literatura sobre um conjunto de problemas que podem agregar risco à gravidez, entre os mais frequentemente encontrados no contexto da atenção básica de saúde. Focalizaram-se a situação socioeconômica da gestante, o tabagismo, o alcoolismo, o diabetes mellitus, a hipertensão arterial sistêmica, as cardiopatias, a epilepsia, a pré-eclâmpsia, a aloimunização e a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. Apresentaram-se e discutiram-se aspectos etiológicos e epidemiológicos desses complicadores gestacionais e respectivas repercussões sobre o desfecho das gravidezes. Observou-se que alguns problemas biológicos, psicológicos e sociais comuns na população geral devem ser sistematicamente rastreados em gestantes, mesmo se elas estiverem aparentemente saudáveis, porque impõem risco de complicações evitáveis à saúde ou à vida da mãe ou do feto. Há também aqueles que são específicos da gestação, que do mesmo modo precisam ser devidamente considerados. Cabe à equipe de saúde cuidar da grávida, da gravidez e do feto por meio da assistência ampliada e integral centrada na pessoa, organizada no ambiente da rede hierárquica de cuidado, aplicada a cada situação específica cujas identificação e abordagem adequadas podem reduzir a morbimortalidade materno-fetal em nosso meio.
Palavras-chave: Gravidez; Gravidez de Alto Risco; Cuidado Pré-Natal; Complicações na Gravidez.
INTRODUÇÃO
O Ministério da Saúde estratifica os fatores de risco gestacional em problemas preexistentes e em problemas que podem surgir no decorrer da gestação. Do ponto de vista operacional, os problemas preexistentes merecem atenção em toda mulher fértil, inclusive com foco na possibilidade de um dia ela engravidar e de tais problemas repercutirem nessa gravidez. Por outro lado, tanto os problemas preexistentes quanto os que surgem no decorrer da gestação são dignos de atenção especial nas gestantes.1
Considerando os agravos determinantes de risco gestacional mais comumente vistos em grávidas acompanhadas no âmbito da atenção básica de saúde, este artigo focalizou a vulnerabilidade social, o tabagismo, o alcoolismo, o diabetes mellitus, a hipertensão arterial sistêmica, algumas cardiopatias, a epilepsia, a pré-eclâmpsia, a aloimunização e a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana.
Expõe-se e discute-se, pois, um consolidado de informações disponíveis na literatura sobre a etiologia e a epidemiologia desses problemas no contexto da gestação, com interesse na educação continuada de clínicos gerais, enfermeiros e estudantes dessas duas áreas no âmbito dos cuidados primários de saúde.
Vulnerabilidade social e baixa escolaridade
A vulnerabilidade social está fortemente associada a desfechos desfavoráveis na gestação, principalmente por favorecer a má-adesão ao pré-natal. A qualidade da assistência pré-natal é pior entre solteiras e adolescentes e entre mulheres com maior número de filhos, de baixa escolaridade, com baixa renda e pertencentes a minorias étnicas.2
Aspectos psicossociais da gestante são pouco abordados na investigação sobre os determinantes do acompanhamento pré-natal. Estudos internacionais têm ampliado a compreensão sobre os fatores relacionados ao acesso e à qualidade da adesão de gestantes ao cuidado de saúde, incluindo a hostilidade do ambiente familiar como potencial obstáculo a esse acesso e adesão. Alguns deles ressaltam que mulheres vítimas de violência familiar utilizam menos os serviços de saúde, buscam menos frequentemente aassistência pré-natal e iniciam os respectivos cuidados tardiamente.3
Outro aspecto que cursa com mau prognóstico durante a gestação é o fato de a vulnerabilidade social se aliar à carência nutricional. Entre as principais causas da anemia entre gestantes destacam-se o baixo nível socioeconômico, maior número de partos, baixo nível educacional, idade gestacional mais avançada, reservas inadequadas de ferro, ausência de suplementação de ferro e dietas deficientes em quantidade e qualidade de ferruginosos. A deficiência de ferro durante a gestação aumenta a morbimortalidade materna e fetal, bem como a ocorrência de partos prematuros e cirúrgicos, de abortamentos e de pré-eclâmpsia.4
A variável mais fortemente associada à anemia parece ser a escolaridade. Ao mesmo tempo, essa variável influencia significativamente a adesão aos cuidados de saúde e o padrão alimentar de gestantes. A baixa renda familiar e a precária condição de moradia também se relacionam à maior ocorrência de anemia, provavelmente por estar tudo isso no mesmo cenário de pobreza que favorece a desnutrição, a maior exposição a adversidades ambientais e a falta de oportunidades.4
Esses resultados sugerem que, sem mudanças estruturais nas condições socioeconômicas da população, os programas assistencialistas de combate à anemia podem apenas contornar agudamente um problema que é crônico, sem efetivamente resolvê-lo.4
Tabagismo
Segundo Freire et al.5, o uso de substâncias nocivas à saúde no período gravídico-puerperal, como drogas lícitas e ilícitas, deve ser investigado e desestimulado, pois crescimento fetal restrito, abortamento, parto prematuro, deficiências cognitivas na criança, entre outros, podem estar associados ao uso ou abuso dessas substâncias.
Outros autores realçaram que até 80% das tabagistas continuam com esse hábito durante sua gestação, sugerindo a falta de vontade de parar de fumar e de informação sobre os seus malefícios como motivos para que não seja suspenso durante a gestação.6
Além disso, Marin et al.7 constataram que gestantes fumantes aderem menos ao pré-natal, comparecendo menos às consultas em relação às não fumantes.
A questão do tabagismo na gestação é tão importante e os malefícios sobre a saúde fetal são tantos, que justifica dizer que o feto é um verdadeiro fumante passivo.8 Entre esses malefícios, citam-se a maior probabilidade de desenvolvimento de fetos pequenos para a idade gestacional por diminuição do fluxo placentário, menos produção de leite durante a lactação, alterações no desenvolvimento do sistema nervoso central e a síndrome da morte súbita. Entre os vários componentes do tabaco que interferem na saúde da gravidez, destacam-se as ações da nicotina e do monóxido de carbono.9
A nicotina age no sistema cardiovascular provocando liberação de catecolaminas na circulação materna, induzindo taquicardia, vasoconstrição periférica e redução do fluxo sanguíneo placentário. Pode provocar, também, alterações cognitivas e do desenvolvimento psicomotor da criança. O monóxido de carbono, ao combinar-se com a hemoglobina materna e fetal, determina hipóxia na mãe e no feto, podendo ser um dos fatores responsáveis pelo sofrimento fetal crônico nas gestantes fumantes. Além disso, o tabagismo pode provocar má-absorção da vitamina B12, cuja menor concentração orgânica associa-se a parto prematuro, reduzida hematopoiese, alterações do sistema nervoso e prejuízos no crescimento fetal. Acredita-se, ainda, que ocorra menos retenção de água no organismo materno, fazendo com que mãe e feto estejam mais sujeitos à desidratação. Outro fator ligado ao tabagismo materno é o alto risco de desenvolvimento de leucemia na infância, devido ao fato de a fumaça do tabaco conter pelo menos 60 agentes cancerígenos conhecidos.9
Sobre os agentes químicos contidos na fumaça do cigarro, os principais são os aldeídos, as aminas aromáticas, os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, as nitrosaminas e o benzeno. Este último é o único evidentemente relacionado ao desenvolvimento de leucemia. A exposição fetal aos componentes do tabaco compromete, ainda, o crescimento dos pulmões e leva à redução das pequenas vias aéreas, implicando alterações funcionais respiratórias na infância que persistem ao longo da vida. O desenvolvimento pulmonar modificado pode estar associado ao aumento do risco futuro de doença pulmonar obstrutiva crônica, asma brônquica, câncer de pulmão e doenças cardiovasculares.8,9
O tabagismo leva, também, ao comprometimento imunológico caracterizado por diminuição da capacidade fagocitária dos macrófagos e alterações dos níveis de IgA nas mucosas e redução da concentração amniótica de ácido ascórbico capaz de favorecer a rotura prematura das membranas.9
Por isso, é necessária a utilização de intervenções intensivas contra esse hábito entre gestantes, que vão além do aconselhamento. Isso se torna ainda mais significativo se se considerar que a cessação do tabagismo é benéfica em qualquer momento da gravidez, ainda que o benefício seja inversamente proporcional à idade gestacional em que o hábito é interrompido.1
Alcoolismo
Os efeitos nocivos do etanol sobre o feto dependem da dose diária ingerida e de fatores individuais maternos, sendo mais grave quanto mais no início estiver a gravidez. A ingestão de pequenas quantidades de álcool durante a gestação pode ser deletéria, não existindo consenso se existe quantidade mínima que não seja nociva. A incidência de malformações e abortamentos espontâneos é maior em bebedoras moderadas.10 O risco maior ou menor da exposição fetal ao etanol relaciona-se ao padrão de seu uso, isto é, se a sua ingestão se faz com: volume grande de uma vez só ou constante e cotidiano; intensidade leve, moderada ou intensa; o uso de outras drogas; a história pregressa de síndrome alcoólica fetal (recorrente em 75% das vezes); a existência de alcoolistas na família; a adesão da gestante ao pré-natal; e a condição social da mulher.10
A placenta e o fígado fetal têm capacidade limitada para metabolização do álcool, de modo que a sua depuração se dá primordialmente por retorno à circulação materna. No entanto, o álcool cruza a placenta e alcança feto e líquido amniótico. Cerca de uma hora após ser ingerido, o etanol no sangue fetal e no líquido amniótico encontra-se em concentrações equivalentes às do sangue materno. O acetaldeído também cruza a placenta, mas a sua concentração fetal e amniótica é variável.10
Os danos relacionados à exposição da mulher ao álcool no período periconcepcional podem ser de natureza citotóxica ou mutagênica, capazes de induzir alterações cromossômicas graves. Observa-se que no primeiro trimestre há risco de malformações e dismorfismo facial;10 no segundo trimestre, aumenta a incidência de abortamento espontâneo e; no terceiro trimestre, ocorrem lesões em outros tecidos, especialmente cerebelo, hipocampo e córtex pré-frontal. Pode ainda determinar restrição de crescimento intrauterino, alto risco de doenças infecciosas, descolamento prematuro de placenta, hipertonia uterina, trabalho de parto pré-termo e sofrimento fetal agudo intraparto.10
A ingestão do álcool pela gestante provoca alterações na transferência placentária de aminoácidos essenciais, hipóxia fetal crônica por vasoconstricção dos vasos placentários e umbilicais, proliferação celular indiferenciada em todo o sistema nervoso central do feto, disfunção hormonal em todas as glândulas de secreção interna e acúmulo de etil-ésteres de ácidos graxos nos vários tecidos fetais, secundário à imaturidade hepática. As consequências são o atraso no crescimento intrauterino e malformações fetais.11
A síndrome alcoólica fetal (SAF) ocorre em cerca de 6% das gestantes alcoolistas e se caracteriza por danos ao sistema nervoso central capaz de induzir anomalias neurológicas e craniofaciais, por deficiência no crescimento pré e pós-natal, por disfunções comportamentais e malformações.10 Mesmo crianças sem critérios diagnósticos de SAF, mas expostas intrauterinamente ao álcool, apresentam dificuldades comportamentais e emocionais que interferem no seu convívio social, escolar e doméstico. Essas crianças apresentam capacidade de adaptação e habilidades abaixo da média em relação a indivíduos da mesma idade nascidos de mães não alcoolistas e demonstram problemas de socialização e comunicação. Podem também desenvolver desajustes comportamentais significativos, como impulsividade e promiscuidade.10
A exposição ao álcool favorece agravos também à saúde da mãe, como doenças cardiovasculares, câncer, depressão e distúrbios neurológicos, os quais podem tornar a gestação um evento de risco. Além disso, está associada ao ganho de peso gestacional insuficiente, reduzido número de consultas no pré-natal, mais probabilidade de utilização de outras drogas e mais vulnerabilidade a doenças sexualmente transmissíveis.12
Diabetes mellitus
Gravidez e diabetes mellitus são complicadores mútuos um do outro. Portanto, a concepção na mulher com diabetes mellitus ou com fatores de risco para o seu desenvolvimento deve ser cuidadosamente planejada.1 O diabetes mellitus, quando associado à gravidez, pode ser classificado como gestacional, se diagnosticado durante a gestação, e pré-gestacional, se a mulher já o tinha diagnosticado previamente.1,13 Considera-se o diagnóstico de diabetes mellitus prévio se a glicemia de jejum ao início do pré-natal for igual ou superior a 126 mg/dL, bem como a hemoglobina glicada maior ou igual a 6,5%.1,13,14 Não obstante, a Associação Internacional de Diabetes recomenda que, no caso de não haver diagnóstico evidente de diabetes mellitus (glicemia de jejum maior que 125 mg%), taxas a partir de 92 mg% em grávidas devam ser diagnosticadas como diabete gestacional. No caso de valores inferiores a 92 mg%, realizar teste oral de tolerância à glicose entre 24 e 28 semanas de gravidez. Em caso de glicemia pós-sobrecarga com 75 g de glicose maior ou igual a 180 mg% na primeira hora, ou 153 mg% na segunda hora, diagnosticar como diabete gestacional.14
Cerca de 10% das gestantes já são diabéticas antes da concepção. Nas gestações complicadas pelo diabetes mellitus, a hiperglicemia materno-fetal induz à fetopatia diabética, caracterizada por aumento na produção de insulina, hipertrofia e hiperplasia das células β-pancreáticas com consequente organomegalia e macrossomia fetal.13 O excesso de glicose, aminoácidos e lipídios maternos é transferido integralmente ao feto, estimulando o aumento de peso fetal. Apesar das evidências de que a hiperglicemia materna é fator determinante do crescimento fetal, outros elementos como triglicérides, aminoácidos, ácidos graxos livres, cetonas, insulina, alguns hormônios, fatores de crescimento insulina-símile e leptina também foram reconhecidos como agentes causais de crescimento fetal exagerado, de modo que mesmo em condição euglicêmica, a grávida com diabetes mellitus tem mais probabilidade de gerar fetos macrossômicos.15
No período organogênico da gravidez, o controle glicêmico inadequado pode contribuir para a ocorrência de vários problemas, sendo especialmente conhecido o crescimento fetal exagerado e consequentes distócias de parto, mas também cardiomiopatia hipertrófica, atraso na maturação pulmonar fetal, policitemia contribuindo para hiperbilirrubinemia neonatal, bem como outros distúrbios metabólicos neonatais como hipoglicemia e hipopotassemia.13
Sabe-se pouco, entretanto, a respeito de em qual período da gravidez a hiperglicemia materna tem mais influencia sobre os problemas observados no período perinatal. O que se sabe é que o ganho de peso acima de 16 kg, o índice de massa corporal pré-gravídico maior ou igual a 25 kg/m2 e a média de glicemias de jejum a partir de 120 mg/dL no terceiro trimestre podem dobrar as chances de macrossomia fetal. Assim, as complicações obstétricas não dependem do tipo de diabetes mellitus, mas do rigoroso controle glicêmico e metabólico da gestante.16
Hipertensão arterial sistêmica
A hipertensão arterial sistêmica pode se associar a:
gravidez (hipertensão gestacional), com os níveis tensionais se normalizando em até 12 semanas após o parto e sem proteinúria;
pré-eclâmpsia, na qual os níveis pressóricos se elevam a partir da 20a semana de gravidez e se acompanham de proteinúria, especialmente se a tensão arterial diastólica for maior ou igual a 110 mmHg;
pré-eclâmpsia sobreposta à hipertensão arterial sistêmica crônica, na qual há hipertensão antes da 20ª semana e surgimento de proteinúria e agravamento da hipertensão a partir dessa idade gestacional; e,
hipertensão arterial sistêmica crônica, a qual é observada desde antes da gravidez ou da 20ª semana de gestação, podendo cursar com ou sem proteinúria, na dependência da existência ou não de lesão renal prévia (nefropatia hipertensiva) sem normalização espontânea dos níveis tensóricos, mesmo decorridas mais de 12 semanas de pós-parto.1
Observa-se, na pré-eclâmpsia sobreposta, que as complicações maternas mais incidentes são: descolamento placentário (8,4%), síndrome HELLP (8,4%), insuficiência renal aguda (3,9%), edema pulmonar (1,3%) e encefalopatia hipertensiva pós-parto (1,3%).17
A hipertensão arterial sistêmica na gravidez, a depender de sua gravidade, pode desencadear danos materno-fetais, especialmente na companhia de condições socioeconômicas desfavoráveis, morbidade obstétrica pregressa ou outras intercorrências clínicas;1 e no feto favorece o baixo crescimento intrauterino e o desenvolvimento de aterosclerose mais cedo em sua idade adulta.18
Nas mulheres com hipertensão arterial sistêmica crônica, em geral a pressão arterial sistêmica diminui no segundo trimestre e aumenta durante o terceiro trimestre até níveis um pouco acima daqueles do início da gravidez. A maioria das gestantes com hipertensão arterial sistêmica crônica subjacente demonstra melhor controle da sua pressão arterial sistêmica e, adequadamente cuidadas, evoluem com gestação sem intercorrências. Entretanto, quando comparadas com gestantes normotensas, as hipertensas crônicas têm mais probabilidade de transtornos gestacionais. Algumas agravam a hipertensão arterial sistêmica e complicações que são danosas não apenas à gravidez, mas ao próprio organismo materno, como cardiopatia hipertensiva e isquêmica, insuficiência renal, hemorragias e exsudatos retinianos. O aumento na mortalidade materna e perinatal associa-se à sobreposição da pré-eclâmpsia (cuja frequência é maior diante de outras alterações concomitantes como insuficiência renal), à história pregressa de pré-eclâmpsia, à obesidade, ao diabetes mellitus, à idade materna superior a 30 anos e ao tempo de duração da hipertensão arterial sistêmica crônica.17
Quanto mais cedo se inicia a hipertensão arterial sistêmica na gravidez, maior a probabilidade de que a gestação subsequente também assim evolua e mais chance de que essa hipertensão se torne crônica com aumento de morbimortalidade materno-fetal.19
Cardiopatias
A gravidez é dos momentos de maior sobrecarga cardíaca, constituindo-se, entre as diversas modificações hemodinâmicas que ocorrem: o aumento do volume sanguíneo, a queda da pressão arterial e da resistência vascular sistêmicas e o aumento da frequência e débito cardíacos. Além disso, durante o trabalho de parto e puerpério, ocorre aumento adicional do débito cardíaco e da pressão arterial sistêmica, principalmente relacionado às contrações uterinas.20
Torna-se óbvio que alterações cardíacas prévias à gestação podem influenciar essas mudanças. No Brasil, a cardiopatia reumática responde por 50% das doenças do coração vistas em gestantes, caracterizada, em ordem de frequência, por estenose mitral, insuficiência mitral ou estenose aórtica.1
De modo geral, as lesões valvares obstrutivas apresentam pior prognóstico materno-fetal quando comparadas às lesões associadas à regurgitação. As lesões estenóticas apresentam evolução clínica dependente do comprometimento anatômico da lesão valvar; já o prognóstico das lesões caracterizadas por regurgitação depende do comprometimento secundário da função ventricular. Como a resistência vascular periférica e a pressão arterial sistêmica se reduzem durante a gestação, permitindo maior volume sistólico ventricular esquerdo e maior débito cardíaco, as insuficiências valvares são mais toleradas do que as estenoses, a menos que a regurgitação seja grave o suficiente para comprometer o trabalho ventricular sistólico. 21
Os eventos cardiovasculares complicadores da gestação mais comuns são a insuficiência cardíaca, os distúrbios hemorrágicos, o tromboembolismo e as arritmias.1,21
A insuficiência cardíaca pode se manifestar a partir do terceiro mês de gestação e é mais comum entre o quinto e o oitavo meses, época em que o volume circulatório, o débito cardíaco e cinética circulatória são maiores devido às necessidades metabólicas do concepto. Não obstante, pode ser desencadeada ou piorada na gestação a partir da descompensação de outros problemas cardiológicos que a gestante já tenha previamente, como valvopatias, hipertensão pulmonar e arritmias cardíacas, de modo que a gravidez pode potencializar o desenvolvimento ou o agravo da insuficiência cardíaca, ainda que o desfecho letal dessa complicação não seja comum na gestação.21,22
Os eventos tromboembólicos podem complicar o prognóstico em gestantes cardiopatas, especialmente se houver obstrução vascular pulmonar, e comumente relacionam-se à miocardiopatia dilatada, à fibrilação atrial crônica e à cardiopatia isquêmica.22
Quanto às disritmias cardíacas, a fibrilação atrial predispõe à ocorrência de embolias e insuficiência cardíaca, sendo indício de cardiopatia avançada. A fibrilação atrial paroxística com aumento de frequência cardíaca e diminuição da pressão arterial sistólica ventricular eleva a pressão pulmonar e contribui para promover edema pulmonar intersticial agudo.22
As cardiopatias cianóticas, independentemente de serem congênitas ou não, têm pior prognóstico em gestantes, especialmente quando cursam com hematócrito acima de 60% e agravamento da hipertensão pulmonar. 22
Outra cardiopatia importante é a doença de Chagas, uma vez que a infestação por Tripanossoma cruzi ainda varia de 2 a 11% nos centros urbanos e de 23 a 58% nas áreas rurais endêmicas. Nessas gestantes, a transmissão vertical do parasita pode alcançar até 18,5%. O prognóstico na gravidez é função direta da forma clínica da doença e, especialmente, do grau de acometimento do sistema de condução do coração, da função miocárdica ou da formação de trombos intracardíacos.1
A respeito dos problemas cardiológicos maternos, o Ministério da Saúde1 classifica as cardiopatias segundo o risco que estas impõem à gestação, como:
cardiopatias com alto risco à gravidez (morbiletalidade materno-fetal entre 50% e 70%): hipertensão arterial pulmonar grave, síndrome de Eisenmenger, síndrome de Marfan com envolvimento aórtico, aneurisma da aorta, cardiopatia congênita cianogênica não operada, cardiomiopatia dilatada ou hipertrófica importante, coarctação de aorta grave;
cardiopatias com risco intermediário à gravidez (mortalidade materna até 15% e morbidade até 50%): cardiopatia congênita acianogênica (não operada) com repercussão hemodinâmica (estenose mitral classes III e IV, e estenose aórtica), infarto do miocárdio cicatrizado, síndrome de Marfan com aorta normal, doença de Takayasu, terapêutica anticoagulante indispensável (como em casos de prótese valvar mecânica), fibrilação atrial com insuficiência cardíaca e disfunção valvar;
cardiopatias de baixo risco (risco tolerável): prolapso mitral, cardiopatias congênitas ou insuficiências valvares sem repercussão hemodinâmica, arritmia cardíaca em coração saudável e valva biológica normofuncionante.1
Epilepsia
A epilepsia afeta 0,5% das gestantes, constituindo-se na doença neurológica mais frequente na gravidez.1
As repercussões da gravidez sobre a epilepsia são contraditórias, variando desde associar-se à piora clínica dos sintomas até a diminuição da frequência de crises. Os relatos de aumento das crises são associados a: hiperventilação, estresse, hipocalcemia, hiponatremia e insuficiente concentração sanguínea da medicação anticonvulsivante devido à hemodiluição fisiológica da gravidez;23 enquanto que os que se relacionam à melhora das convulsões referem-se à possibilidade de mais adesão ao tratamento e mais regularidade no uso da medicação pelas gestantes.1,23 Outros relatos afirmam que 60 a 83% das grávidas não apresentam alterações significativas da frequência de crises epilépticas.23,24
O Ministério da Saúde admite que a epilepsia não tem efeito prejudicial na gravidez.1 Porém, alguns autores argumentam que, ainda que 90% dos filhos de mães epilépticas nasçam saudáveis, há mais probabilidade de ocorrência de malformações maiores em fetos de gestantes com epilepsia, atribuíveis ao tratamento anticonvulsivante, não sendo a epilepsia teratogênica per se.23 O tratamento pode, ainda, induzir depressão do sistema nervoso central (dificuldade para acordar e hipotonia) ou problemas relacionados à retirada da droga (irritabilidade, hipertonia e tremores) em recém-nascidos, uma vez que atravessam a placenta com níveis sanguíneos neonatais semelhantes aos maternos.23,24
O problema que a epilepsia e seu tratamento representam na gravidez constitui o conflito da sua abordagem, isto é, se por um lado a gravidez pode aumentar a ocorrência de crises convulsivas potencialmente deletérias para o feto, demandando controle farmacológico mais intensivo, o tratamento não é inócuo. O que se preconiza é o ajuste terapêutico com o mínimo potencial de afecção fetal (monoterapia principalmente) e máximo efeito preventivo da ocorrência de convulsões associado a condutas que permitam a proteção fetal como o uso de vitamina K para reduzir a vulnerabilidade às hemorragias intracranianas potencialmente induzíveis por anticonvulsivantes, uso de ácido fólico na tentativa de se contrapor às malformações neurológicas devido às drogas antiepilépticas e suporte adequado à gestante durante as crises para minimizar hipoxemias fetais agudas.24-27
Em síntese, as crises convulsivas na gestação podem fazer mal tanto ao feto quanto à gestante e seu tratamento também. Portanto, ao mesmo tempo em que tais crises devem ser evitadas e controladas com rigor, é preciso a abordagem farmacológica minimamente deletéria. Ou seja, o tratamento deve ter boa eficiência no sentido de controlar bem as crises convulsivas à custa da mínima toxicidade medicamentosa possível.24-27 A esse respeito, a atuação transprofissional entre pré-natalista e neurologista é de grande ajuda.
Pré-eclâmpsia
A pré-eclâmpsia complica 2 a 8% das gestações na América Latina e Caribe e responde por 26% da mortalidade materna. Além disso, favorece a ocorrência de parto pré-termo e de restrição do crescimento fetal. Sua incidência tem aumentado juntamente com condições predisponentes como obesidade, diabetes mellitus e hipertensão arterial sistêmica crônica. É a condição em que a hipertensão arterial sistêmica determina seus piores prognósticos gestacionais.28,29
Sua causa ainda não foi esclarecida, mas especula-se sobre defeitos no processo de placentação e sobre a combinação de fatores genéticos, imunológicos e ambientais a determinar anormalidades vasculares trofoblásticas.28,29
Na hipertensão arterial sistêmica, embora possa ser apenas um sintoma adaptativo e transitório do organismo diante do complexo metabólico que define a pré-eclâmpsia e não seja indicador isolado para seu diagnóstico, os níveis da pressão arterial sistêmica são usados como parte dos critérios de determinação clínica da sua intensidade.1,28
Assim, classifica-se a pré-eclâmpsia em leve quando há aumento da tensão arterial sistêmica sistólica em 30 mmHg ou da diastólica em 15 mmHg na vigência de níveis pressóricos acima de 140 x 90 mmHg após a 20ª semana de gestação, com diastólica inferior a 110 mmHg; proteinúria de 24 horas acima de 300 mg, mas inferior a 2 g/L; e ausência de sinais clínicos ou laboratoriais de comprometimento sistêmico materno ou fetal grave.1
Na pré-eclâmpsia grave a tensão arterial sistêmica diastólica costuma ser mais alta que 110 mmHg; a proteinúria de 24 horas ultrapassa 2 g/L; pode haver dor no abdome superior, alterações visuais, exacerbação dos reflexos tendinosos profundos, cefaleia, alterações comportamentais, dispneia e sinais de congestão pulmonar; volume urinário inferior a 400 mL em 24 horas ou 100 mL em quatro horas; plaquetometria inferior a 100.000/mm3; elevação de enzimas hepáticas e deidrogenase lática; esquizocitose; e restrição do crescimento fetal. A hiperuricemia acima de 6 mg% também é vista em casos de pré-eclâmpsia.1
Aloimunização
A doença hemolítica perinatal, secundária à sensibilização materna por antígenos eritrocitários, representa não só a causa principal, mas, sobretudo, a mais evitável de anemia fetal e neonatal. Contudo, ainda permanece como fator importante de morbidade perinatal, responsável por inúmeras perdas fetais e neonatais.30
O fator Rh presente em hemácias de algumas pessoas pode conter ou não uma subunidade chamada fator Du. A sensibilização decorre do contato de mulher sem a subunidade Du com essa mesma subunidade presente na superfície de hemácia que entra em sua circulação em quantidade superior a 0,1 mL. Isso pode ocorrer quando mulher Du negativo engravida de parceiro Du positivo e gera um embrião Du positivo, cujas hemácias alcançam a circulação materna sensibilizando imunologicamente a mulher contra o fator Du, que, nesse caso, exerce papel antigênico. Desse modo, a mulher poderá produzir anticorpos antiDu, os quais poderão agredir as hemácias de um feto Du positivo. As principais causas desse contato sanguíneo materno-fetal são os abortamentos e os partos, podendo ocorrer também em situações de transfusão sanguínea.30 Considerando que no primeiro contato com o fator Du a gestante torna-se sensibilizada e que, a partir do segundo contato, os anticorpos gerados por essa sensibilização tornam-se capazes de hemolisar hemácias portadoras do antígeno Du, a doença hemolítica fetal ou neonatal induzida por aloimunização Rh é mais comum a partir da segunda gestação de fetos Du positivo em gestantes Du negativo.30
Assim, quando uma mulher sensibilizada (portadora de IgG antiDu) gera um feto Du positivo, a imunoglobulina presente na circulação materna atravessa a placenta e liga-se às hemácias com antígeno Du do feto. Por se tratar de imunoglobulina hemolítica, inicia-se progressivamente a destruição de hemácias fetais, levando à anemia do concepto por hemólise. O feto responde com aumento da eritroblastose, promovendo focos medulares e extramedulares de hematopoese, gerando hepatoesplenomegalia e aumento da pressão na circulação portal. Essa situação associa-se à queda de pressão oncótica e resulta em ascite, seguida de insuficiência cardíaca que agrava o surgimento de efusões pleurais e pericárdicas. Estabelece-se a hidropisia fetal imunitária, que poderá evoluir para óbito caso o processo não seja interrompido.30
Ainda que exista recurso imunobiológico para impedir a formação de IgG antiDu materna e a sua disponibilidade para acesso a todas as gestantes que dela necessitarem, o mesmo não é alcançado por muitas delas e a afecção fetal por esse agravo continua grassando em nosso meio.30 Essa informação alerta para a necessidade de qualificar a atenção técnica e logística prestada ao problema da aloimunização em nosso meio, a qual pode ser indicador da persistência de problemas assistenciais que fazem com que o cuidado pré-natal no Brasil, de modo geral, ainda demande progresso em vários aspectos, especialmente na atenção à gestação de alto risco.
Infecção pelo HIV
A prevalência da infecção pelo HIV entre gestantes no Brasil encontra-se ao redor de 0,4%.31 Em 95% das crianças que vivem com o HIV no mundo a infecção foi contraída por ocasião da gravidez, do parto ou do aleitamento materno.31
Sem intervenção médica, a transmissão vertical do HIV ocorre em 25,5% das gravidezes de mães infectadas. Entretanto, por meio do uso de antirretrovirais no pré-natal, contraindicação à amamentação e definição da via de parto baseada na carga viral determinada no terceiro trimestre da gestação, a transmissão pode ser inferior a 2%.31
A patogênese da transmissão vertical do HIV está relacionada a múltiplos fatores, como: carga viral materna, condição clínica e social da mãe, uso de antirretrovirais durante a gestação, ocorrência de agravos gestacionais e às condições de amamentação. De todas as medidas preventivas, a mais eficaz é a redução da carga viral materna por meio do uso de antirretrovirais no pré-natal.1,31
O fato é que há evidências de que carga viral materna inferior a 1.000 cópias/mL no momento do parto é preditor de baixa transmissibilidade vertical. Como é comum cargas virais elevadas na fase aguda da infecção pelo HIV, a gestante que adquire o VIH junto com a respectiva gravidez demanda mais atenção contra a transmissão vertical.31
No outro extremo, degeneração imune avançada pelo HIV numa mulher grávida, também costuma cursar com carga viral elevada, o que aumenta significativamente a probabilidade de transmissão vertical e do desencadeamento de outras complicações à gestação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Problemas de ordem biológica, psicológica ou social vividos pela gestante podem colocar em risco a saúde ou a vida materno-fetal. Os profissionais da assistência à grávida, ao parto e ao recém-nascido precisam oferecer abordagem integral e transprofissional centrada na pessoa. Nos casos caracterizados como gestação de alto risco, é importante que se garanta o acesso da gestante a recursos, profissionais e serviços especializados por meio de modelo assistencial hierarquizado, organizado num sistema capaz de garantir a integralidade do cuidado em todos os níveis de complexidade necessários.32
No ambiente da atenção primária de saúde, é estratégico e factível o rastreamento de potenciais agravantes da gestação, com destaque para a condição social, ambiental, psicológica e de saúde orgânica da gestante e para seus antecedentes pessoais e familiares.
Igualmente importante é o acompanhamento da evolução clínica da gestação em si, correlacionando essa evolução com os aspectos destacados anteriormente e valorizando a promoção da saúde não menos que os outros aspectos do cuidado.
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Este trabalho contou com o apoio financeiro do CNPq por meio de uma bolsa de iniciação científica com duração de um ano.
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