RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 23. 1 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20130018

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Educação Médica

Analogias em medicina: parte V

Analogies in medicine: part V

José de Souza Andrade Filho

Médico Patologista. Professor de Patologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Membro da Academia Mineira de Medicina. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

José de Souza Andrade Filho
E-mail: labjsouzandrade@terra.com.br

Recebido em: 01/08/2011
Aprovado em: 12/08/2011

Instituição: Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Trata-se de compilação de verbetes que, por analogia, passaram a ser utilizados como termos das diversas especialidades médicas. Neste ensaio, descreve-se a origem dos conceitos de garrafa de champanhe invertida e crânio em tacho de cobre batido. O primeiro foi originado por analogia com a forma da garrafa do vinho espumante conhecido como champanhe, em certos distúrbios dos membros inferiores. O segundo resulta da semelhança do crânio com o tacho de cobre artesanal em doenças que provocam o fechamento precoce das suturas cranianas. Interessantes aspectos históricos e culturais dessas analogias são apresentados.

Palavras-chave: Medicina; Terminologia; Educação Médica.

 

INTRODUÇÃO

Várias locuções e termos comparativos estao presentes nas diversas especialidades médicas, sendo criados em acelerada velocidade com o progresso da ciência. A compilação desses termos tem sido trabalho de investigação e pesquisa há cerca de 10 anos.1 Sempre que possível, busca-se fazer a enxertia de aspectos médicos, históricos e culturais em cada tema, de modo a torná-lo mais interessante e atraente.

Além de fornecer elementos para a terminologia médica, as analogias em Medicina são de reconhecido valor como recurso didático, auxiliando em processos de aprendizagem e memorização2.

São aqui apresentadas duas analogias:

Garrafa de champanhe invertida

O champanhe ou champanha (Fr. champagne) é um vinho branco espumante, produzido na regiao de Champagne, Nordeste da França, a partir da fermentação da uva. A regiao administrativa é Champagne-Ardenne, cuja capital é Epernay. Segundo relatos históricos, foi próximo de Epernay, no povoado de Hautvillers, que os monges Dom Pérignon e Dom Ruinart se esforçaram para domar os vinhos que fermentavam novamente nas garrafas, fazendo-as explodir. A regiao de Champagne produz, em grande maioria, vinhos espumantes (brancos ou rosados) à base das uvas chardonnay, pinot noir e chamados simplesmente de champanhe.

Um dos motivos que elevaram a fama desse vinho foi o fato de que, em Reims, cidade mais importante de Champagne, foram coroados quase todos os grandes reis da França. A coroação ocorria na catedral de Notre-Dame de Reims, construída em 1225, e o champanhe era servido nas comemorações. Por esse motivo ficou conhecido como o vinho dos reis.

O caráter espumante do vinho se deve à fermentação associada à produção de gás carbônico (dióxido de carbono).

Garrafa, como se sabe, é vaso de vidro cilíndrico, com gargalo estreito e destinado a conter líquidos. A de champanhe, tradicionalmente, tem forma peculiar, com gargalo estreito, sem ombros, de curvas suaves e de vidro grosso para suportar a pressão interna. É bastante conhecida da população como "marca registrada" do famoso vinho espumante.

Em algumas doenças que se manifestam principalmente por alterações nos membros inferiores, as deformidades instaladas foram comparadas ao formato de uma garrafa de champanhe. Uma dessas condições é a doença de Charcot-Marie-Tooth ou atrofia muscular peroneal. É a neuropatia periférica mais comum, acometendo cerca de 1:2.500 indivíduos e de herança autossômica dominante. O início dos sintomas acontece geralmente na segunda ou terceira década de vida, isto é, em adolescentes e adultos jovens. O distúrbio é predominantemente motor, caracterizando-se pela atrofia progressiva dos músculos distais dos membros inferiores. Há atrofia dos pés (pés cavos) e dos músculos fibulares das pernas, que se tornam finas e desproporcionais ao volume das coxas, relativamente preservadas3. O aspecto, à ectoscopia, lembra a forma de uma garrafa de champanhe invertida (Figura 1). Outra condição em que se verifica esse quadro clínico é em úlceras crônicas da perna e na lipodermatosclerose, resultantes de distúrbios de vascularização do membro inferior4. Os tecidos edemaciados podem ser invadidos por fibroblastos, com colageinização e endurecimento do terço inferior da perna e com edema acima da área de constrição.

 


Figura 1 - Garrafa de champanhe invertida. Fonte: Rook. Textbook of Dermatology.

 

Tacho de cobre batido

Em certas doenças, como em algumas anomalias congênitas, o fechamento precoce das suturas cranianas (sinostose) e a continuação do crescimento cerebral provocam compressão da superfície interna do crânio.

O crânio mostra, ao exame radiológico (radiografia simples), impressões digitiformes/marcas convolucionais na tábua interna, que se assemelham às feitas por martelo contra o cobre. Esse aspecto de metal ou cobre batido é o que se observa em tachos artesanais, tanto no Brasil como em outros países (ingl. "copper-beaten skull or beaten-metal appearance").

As condições patológicas que elevam a pressão intracraniana são a causa primária desse tipo de alteração, como craniossinostose, hidrocéfalo obstrutivo e massas intracranianas. A imagem de cobre batido é bem mais evidente na síndrome de Crouzon5 (disostose craniofacial) (Figura 2), na síndrome de Apert (acrocefalossindactilia) e na rara síndrome de Proteus.

 


Figura 2 - Síndrome de Crouzon (disostose crânio-facial).

 

REFERENCIAS

1. Andrade Filho JS, Pena GP. Analogies in medicine. Int J Surg Pathol. 2001 Oct;9(4):345-6.

2. Pena GP, Andrade Filho JS. Analogies in medicine: valuable for learning, reasoning, remembering and naming. Adv in Health Sci Educ Theory Pract. 2010 Oct;15(4):609-19.

3. Office of Communications and Public Liaison. National Institute of Neurological Disorders and Stroke. National Institutes of Health. Bethesda, MD 20892, 2011.

4. Rook W, Ebling Textbook of Dermatology. 6th ed. New York: Blackwell Science; 1998. p.2256

5. Andrade Filho JS, Pena GP, Aymoré IL. Brasileiro Filho G. Editor. Bogliolo Patologia. 8ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011. p.1027.